“Eles jogaram spray de pimenta na minha cara, botaram o saco de plástico na cabeça pra me sufocar. Bateram tanto em mim que saiu sangue do meu ouvido”. É assim, em voz baixa, que Romualdo*, morador da comunidade do Arroz de Salú, em Formosa do Rio Preto (BA), relata os acontecimentos da noite de 23 de março de 2021.
Segundo o camponês, seus algozes foram policiais militares que estavam a serviço de fazendeiros da região e que tentam expulsar a comunidade de suas terras. Uma perícia médica legal, realizada mais de um mês após a data, confirma que seu corpo ainda tinha marcas compatíveis com tiros de bala de borracha – que o rapaz diz ter tomado em um corredor de uma delegacia, naquela noite.
O laudo faz parte de uma investigação da Polícia Civil ocorrida após o episódio, mas a versão que consta nas quase 500 páginas é a da PM da Bahia: segundo os agentes da corporação envolvidos no caso, quem atacou foram os moradores do Fundo e Fecho de Pasto Arroz de Salú – o que resultou inclusive na prisão de integrantes da comunidade, logo revertida pela defesa. “O poder econômico e político em Formosa do Rio Preto ainda determina quem deve ser preso e processado, enquanto que as comunidades tradicionais são encurraladas e subjugadas pela força do mais forte como sempre, infelizmente”, lamenta o advogado da comunidade, Raimundo Ney de Souza Nogueira Paranaguá.
Procurada, a Polícia Militar da Bahia informou que “o fato foi objeto de inquérito que foi concluído e remetido ao Ministério Público”, mas não disse qual o resultado da investigação nem comentou a acusação de tortura. O MP não respondeu às perguntas da reportagem.
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Os moradores do Arroz de Salú afirmam que pastos comunitários utilizados há séculos estão hoje ameaçados por grileiros. A disputa de posse do território corre na Justiça há quase 40 anos, período no qual vários ataques e ameaças foram reportados à Justiça.
Em 2014, por exemplo, moradores relataram que o território “havia sido invadido por homens armados que, utilizando-se de tratores, derrubaram o curral, a casa e aterraram a barragem”. Eles também denunciaram bloqueios nas estradas: “o fazendeiro contratou aproximadamente 20 homens armados, impedindo o acesso dos demandantes ao imóvel”, registra uma queixa anexada ao processo judicial.
Entretanto, recentemente a violência escalou, segundo os moradores, acompanhando a expansão do agronegócio no oeste da Bahia e repetindo problemas reportados por outras comunidades de Fundo e Fecho de Pasto ouvidas pela Repórter Brasil.
“Eu fico nervoso porque a gente não pode nem andar até o campo. Os pistoleiros ficam lá dentro, rodando de moto, armados, querendo fazer qualquer maldade”, diz Luiz Pugas, 80 anos, um dos patriarcas da comunidade. A reportagem testemunhou motoqueiros circulando pelas estradas de terra da região que moradores apontam serem pistoleiros.
“Nascemos e fomos criados aqui. Meu pai nasceu e se criou aqui. Minha mãe nasceu e se criou aqui. Sem essa terra [os pastos comunitários] nós não temos nada o que fazer, porque nós vivemos dela”, observa Pugas.
* nome alterado para preservar a identidade do camponês
Expediente Faroeste Baiano
Reportagem: Gil Alessi
Fotografia: Fernando Martinho
Edição e checagem: Naira Hofmeister
Pesquisa: André Campos e Poliana Dallabrida
Coordenação: André Campos
Redes sociais: Tamyres Matos
Este especial foi produzido com o apoio da World Animal Protection (WAP)