‘Ela tem família’: irmãos buscam reencontro com doméstica apontada como escravizada em SC

Irmãos biológicos de Sônia Maria de Jesus vão ao encontro da primogênita, após quatro décadas sem contato; Sônia foi encontrada em condições de escravidão na residência do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis, segundo operação feita por cinco órgãos públicos
Por Carlos Juliano Barros e Marina Rossi
 20/09/2023

Há quase quatro décadas, os irmãos biológicos de Sônia Maria de Jesus esperavam por notícias. Após descobrirem que a mais velha dos sete havia sido encontrada em situação análoga à de escravo em Santa Catarina, segundo uma fiscalização conjunta realizada por servidores de cinco órgãos públicos, eles têm vivido uma montanha-russa de sentimentos. Surpresa, felicidade e indignação.

Depois do resgate ocorrido em junho, Sônia — que tem deficiência auditiva e limitações de comunicação — foi conduzida a uma instituição de acolhimento para iniciar um processo de ressocialização.

O encontro com a família biológica estava sendo cuidadosamente preparado. Enquanto aguardavam que a Justiça determinasse um local apropriado para a reaproximação, os irmãos pesquisavam passagens de São Paulo (SP), cidade em que vivem, para Florianópolis (SC), onde a Sônia se encontra.

“Queremos mostrar que ela tem família, que estamos aqui”, afirma Marta de Jesus, irmã caçula. “Queremos abraçá-la, inclusive pela nossa mãe”, que faleceu sem retomar o convívio com a primeira filha.

Justiça autoriza Sônia a voltar à casa dos Borba

No começo de setembro, a ansiedade dos irmãos biológicos transformou-se em apreensão. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu aval para que a família do desembargador Jorge Luiz de Borba, acusado de manter Sônia em situação de escravidão doméstica, a visitasse no abrigo.

A decisão também permitia que Sônia fosse levada de volta para a casa onde tinha vivido por quase 40 anos, caso demonstrasse “vontade clara e inequívoca”. A medida foi confirmada pelo ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo um relatório dos órgãos públicos envolvidos no caso, a família do desembargador teria armado uma situação “estapafúrdia”, durante a visita, para constranger Sônia a regressar à residência dos Borba.

Apesar de a decisão judicial autorizar somente a visita do magistrado e de sua esposa, o casal foi ao abrigo acompanhado de advogados e diversos parentes, incluindo crianças com que Sônia tinha contato.

O relatório afirma que a visita foi “uma estratégia pensada de manipulação e controle psicológicos, típicos de relacionamentos abusivos”. O documento sustenta que Sônia teria sido “induzida” a tomar a decisão de voltar para a casa dos Borba.

“Essa decisão [da Justiça] nos surpreendeu e nos frustrou bastante”, diz Marcelo Silva de Jesus, um dos irmãos de Sônia. Ele ressalta que a família biológica estava respeitando as etapas do processo de ressocialização. As passagens para Florianópolis dos seis irmãos estão marcadas para a próxima sexta (22) — os bilhetes foram comprados antes da decisão do STJ.

Marta afirma que todos têm interesse em receber a primogênita da família. “Se isso for do interesse dela em algum momento, ela será super, ultra, mega bem recebida aqui dentro. Nós estamos aqui, essa família existe”, diz.

Jorge Luiz de Borba e sua família negam as acusações de trabalho escravo e afirmam que Sônia sempre foi tratada como membro da família. Em nota à imprensa, Borba informou que vai ingressar “com pedido judicial para reconhecimento da filiação afetiva” de Sônia, garantindo a ela direitos de herança. Também afirma que vai colaborar com as investigações, “para que não remanesçam dúvidas sobre a situação de fato existente”.

“Senti muita alegria por saber que ela está viva”, diz Marcelo de Jesus (Foto; Caue Angeli/Repórter Brasil)

Sônia chegou a perder dentes

“Quando eu recebi a ligação foi uma mistura de sentimentos”, conta Marcelo. “Foi chocante, mas ao mesmo tempo [senti] muita alegria por saber que ela está viva”.

Sônia foi resgatada após uma denúncia anônima. Ela vivia em um quarto nos fundos da residência da família do desembargador, num condomínio de luxo em Florianópolis. Segundo as investigações, ela era responsável pelas tarefas domésticas, mas não recebia salário e nem tinha descanso semanal fixo.

De acordo com depoimentos de outras funcionárias da casa ouvidas na operação, Sônia dormia em um cômodo mofado, não tinha vida social, usava roupas velhas e, quando precisava de cuidados médicos, era socorrida pelos próprios empregados. Por falta de atendimento adequado ao longo de anos, chegou a perder parte dos dentes.

Ainda segundo a investigação, o desembargador Borba afirmou amar Sônia “como se fosse sua filha”, mas não a adotou formalmente devido a “dificuldades documentais”. O CPF de Sônia só foi emitido em 2021.

Uma reportagem do UOL mostrou que, nas redes sociais, o desembargador e sua esposa postaram conteúdos incluindo Sônia na lista de “funcionárias” do casal. Ela também não aparece nas fotos das viagens internacionais feitas pela família Borba.

“A gente imagina que, numa família que tem uma condição financeira extremamente superior à nossa, a Sônia estaria de uma outra forma. E aí a gente descobre que não, que ela não teve acesso ao mínimo, ao básico, dentro de uma família que, teoricamente, ela teria condições para tudo isso”, diz Marta.

O desembargador responde a dois processos devido ao episódio: um processo disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outro no STJ, foro especial para desembargadores suspeitos de crimes que são competência da Justiça comum.

Irmã caçula, Marta de Jesus afirma que o acordo que retirou Sônia da família biológica não foi cumprido (Foto: Caue Angeli/Repórter Brasil)

Como Sônia foi parar na casa dos Borba

Sônia teria perdido a audição ainda muito nova, após agressões físicas do próprio pai biológico. Para protegê-la da relação abusiva, funcionárias da creche frequentada pela criança, na capital paulista, ofereceram abrigo provisório a Sônia. “Para a minha mãe, era uma a menos passando fome e sofrendo violência em casa”, relata Marta.

Segundo a investigação, a sogra do desembargador atuava na creche. Quando o desembargador Borba e a esposa tiveram o primeiro filho, Sônia foi viver com eles em Santa Catarina.

O acordo, de acordo com Marta, era que a irmã mais velha voltasse a viver com a mãe, assim que houvesse condições. Enquanto isso não fosse possível, Sônia visitaria regularmente os parentes, para que mantivessem contato. No entanto, só houve um encontro entre as duas, quando Sônia já era adolescente.

Depois disso, a família nunca mais encontrou a primogênita, apesar da insistência da mãe por notícias da filha. Os irmãos contam que ela passou a vida se martirizando e morreu sem realizar seu maior sonho: rever Sônia.

“Todo mundo quer muito abraçar, quer muito esboçar esse sentimento que nós temos e colocar isso para fora de alguma forma, inclusive pela nossa mãe”, diz Marta. “Mas a gente também tem um sentimento de muito respeito pela história da Sônia. Então, se ela tiver uma negativa para nós, e o desejo dela for viver a vida dela de forma autônoma, é isso que a gente preza”, finaliza.

O resgate de Sônia foi realizado em uma operação conjunta feita por servidores de cinco órgãos: Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, e Polícia Federal.

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