UMA FISCALIZAÇÃO do poder público federal resgatou 84 trabalhadores de condições análogas às de escravo no cultivo de cebola, em Água Fria de Goiás (GO), na fazenda São Paulo. Ela é administrada por Marcos Rogério Boschini, que tem um contrato de parceria com o dono da propriedade, Antério Mânica, seu sogro, condenado como um dos mandantes da Chacina de Unaí.
Em 28 de janeiro de 2004, os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira foram executados em uma fiscalização rural de rotina em fazendas no Noroeste de Minas Gerais. Por conta disso, nessa data celebra-se anualmente o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
De acordo com a equipe de fiscalização, formada por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal, o alojamento estava superlotado, com mofo e forte odor. Abrigava os 84 resgatados, apesar de comportar não mais que 30 pessoas. Por vezes, a fossa transbordava espalhando o mau cheiro.
Não havia sanitários e garantia de água potável na frente de trabalho. Parte dos trabalhadores não tinha descanso semanal. Reclamavam da qualidade e da quantidade de comida disponibilizada.
A ação na fazenda São Paulo foi a segunda maior em número de trabalhadores da Resgate 3, uma megaoperação que resgatou 532 pessoas em 22 estados e no Distrito Federal no mês de agosto (a maior, com 97 vítimas, ocorreu em uma fazenda de cultivo de alho em Minas Gerais).
Segundo o auto de infração, a fazenda São Paulo pertence à Terra Bela Agropecuária, de propriedade de Antério Mânica e filhos. Há um contrato de parceria agrícola entre eles e Marcos Rogério Boschini, que é casado com Márcia Mânica, filha de Antério.
Boschini e a esposa, por sua vez, são sócios da empresa ADF Distribuidora de Hortifrutigranjeiros, que administra o cultivo de cebola. O registro dos trabalhadores estava no CPF dele.
O empregador pagou o valor das verbas rescisórias determinadas pela Inspeção do Trabalho e danos morais individuais a cada um dos trabalhadores, segundo Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado com o MPT. Os auditores e procuradores identificaram condições degradantes e jornada exaustiva, dois caracterizadores de escravidão contemporânea.
À reportagem, Marcos Rogério Boschini manifestou discordância com o resultado da fiscalização e com informações veiculadas sobre ela. Diz que o acordo com o MPT “não se refere à trabalho degradante ou análogo à escravidão”.
Ainda ressalta que “desconhece o conteúdo de eventuais autos de infração, uma vez que até a presente data não os recebeu”. E afirma que pode vir a acionar a Justiça, caso discorde deles.
Questionado sobre o resgate na fazenda São Paulo, o advogado de Antério Mânica afirmou que eles não têm “nenhuma informação por desconhecer o auto de infração ou o procedimento”.
Condenados ainda não cumprem pena pela chacina
Os irmãos Antério e Norberto Mânica foram apontados como os mandantes da Chacina de Unaí pela Polícia Federal seis meses após o crime. Desde então, entre ida e vindas, julgamentos e anulações, eles foram condenados. Porém, aguardam recursos em liberdade.
O motorista Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel parou o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Os auditores fiscais morreram na hora.
O inquérito apontou que a motivação do crime foi o incômodo provocado pelas multas impostas à família de fazendeiros, sendo que o auditor fiscal do trabalho Nelson José da Silva era o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações por sistematicamente descumprirem as leis.
Mesmo após ser vinculado à chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí, em 2004, com 72,37% dos votos válidos. E reeleito em 2008. Em novembro de 2008, chegou a ser um dos condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Antério foi condenado 100 anos de prisão, em 2015, mas teve o julgamento anulado. Em maio do ano passado, foi condenado novamente a 64 anos.
Aguardando o processo em liberdade, ele pediu votos à reeleição de Jair Bolsonaro no ano passado através de um vídeo que circulou pelas redes sociais.
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades. Em 2021 e 2022, 30 pessoas foram resgatadas por ano do trabalho escravo doméstico.
A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.