Laranja, morango, goiaba, bisnaguinha, bolacha, suco de caixinha e até fórmula infantil. Comuns no dia a dia e nas lancheiras das crianças, esses alimentos podem estar contaminados com agrotóxicos proibidos ou acima dos limites considerados seguros para a saúde.
No Brasil, quem determina o limite máximo dessas substâncias é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O órgão federal também calcula o risco de esses agrotóxicos causarem malefícios imediatos ou por longos períodos após o consumo.
No entanto, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Anvisa, o PARA, leva em consideração apenas consumidores a partir dos 10 anos de idade. Ou seja, ignora o risco a crianças de zero a 10 anos.
Diferente dos adultos, o sistema nervoso e o corpo das crianças ainda estão em desenvolvimento. Há evidências científicas associando a exposição a agrotóxicos nessa idade ao desenvolvimento de diversos tipos de câncer, puberdade precoce e até mortalidade infantil.
“As crianças são ainda mais suscetíveis [aos efeitos dos pesticidas] por conta do peso corporal e por estarem com o sistema imunológico e cognitivo em desenvolvimento”, afirma Rafael Rioja, nutricionista e coordenador de consumo sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Outro problema é que a Anvisa analisa apenas os alimentos in natura, e não determina limites máximos de resíduos para produtos ultraprocessados como bolachas e cereais matinais, bastante comuns no cotidiano dos brasileirinhos.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a agência argumenta que, se os alimentos in natura estiverem dentro dos limites de segurança, não há riscos para o consumidor. Além disso, afirma que o processamento industrial pode degradar as moléculas de agrotóxicos, diminuindo a sua presença em produtos ultraprocessados [leia o posicionamento na íntegra aqui].
Contudo, não há nenhuma etapa no processamento dos alimentos que seja capaz de eliminar os resíduos de agrotóxicos, explica Angélica Castanheira, pesquisadora e especialista em saúde pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
“Os alimentos in natura são a matéria-prima dos produtos industrializados. Uma vez que o agrotóxico entra na cadeia produtiva, ele vai até o produto final”, afirma.
Reportagem publicada pela Repórter Brasil e Agência Pública mostra doses de agrotóxicos acima do recomendado ou proibidos no Brasil em 42% das amostras de goiaba, por exemplo. Outras frutas, como a laranja, tinham quantidades de agrotóxico suficiente para provocar intoxicação aguda logo após o consumo.
Como os adultos, as crianças estão expostas aos efeitos dos agrotóxicos de diversas fontes, por meio do consumo de alimentos e da água. Mas os limites fixados pela Anvisa só consideram cada produto de modo isolado.
Por exemplo, o cálculo de risco para o glifosato, agrotóxico mais vendido no Brasil, considera a presença do produto em cada fruta ou legume isoladamente. Mas a criança vai comer diversos alimentos em uma mesma refeição, além de consumir água, que também pode estar contaminada.
Para especialistas, a interação dessas substâncias pode aumentar os riscos à saúde. “Quando há três, quatro, cinco, dez resíduos numa mesma amostra [produto], eles têm alguma interação entre eles? Podem ter. A gente precisa ter mais estudos nesse sentido”, afirma Castanheira.
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Até o leite
A exposição das crianças a pesticidas pode ocorrer desde o nascimento, por meio de fórmulas infantis – produtos fabricados para alimentar bebês de zero a seis meses de idade quando a amamentação não é possível ou suficiente –, e até pelo próprio leite materno.
Em 2022, uma pesquisa realizada na zona rural do Paraná identificou glifosato no leite materno de todas as 67 mulheres que participaram do estudo.
Já um estudo realizado pela Universidade Federal do Mato Grosso, em 2011, encontrou agrotóxicos no leite materno de 62 mulheres de Lucas do Rio Verde (MT), um dos principais municípios produtores de grãos do país.
Mas não é preciso ter nascido em uma área rural para estar exposto. Pesquisadores brasileiros também encontraram glifosato em fórmulas infantis à base de soja.
De acordo com o Guia Alimentar Para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, a indicação é manter seis meses de amamentação exclusiva e, a partir do sexto mês, iniciar a introdução alimentar, evitando açúcar e alimentos ultraprocessados.
A nutricionista e residente em Saúde da Família na Fiocruz, Maria Birman, explica que, nos casos em que a mulher não pode amamentar, a alternativa mais segura é a fórmula infantil, dando prioridade à fórmula à base de leite – e não de soja.
Merenda contaminada
A Fiocruz analisou os cardápios de refeições de escolas no Rio que atendem crianças de seis meses até seis anos: mais de 80% das amostras avaliadas continham resíduos de agrotóxicos. No caso de alimentos como maçã, laranja e mamão, todas as amostras acusaram a presença de algum pesticida.
O agrotóxico mais detectado foi o carbendazim. Associado a diversos tipos de doenças, como o câncer e problemas para o sistema reprodutivo, a substância foi proibida pela Anvisa em 2022.
A presença de agrotóxicos em alimentos do lanche das crianças não é exclusividade do Rio. Em 2021, um estudo do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) revelou a presença de pesticidas em ultraprocessados como bisnaguinhas, bolachas e cereais matinais de marcas vendidas em todo o país.
Em 14 dos 27 produtos analisados, foi identificado glifosato, classificado como provavelmente cancerígeno pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 2022, o Instituto analisou produtos ultraprocessados de origem animal, como salsicha, hambúrguer e nugget. A pesquisa encontrou agrotóxicos em 58% das amostras.
Hoje o Programa Nacional de Alimentação Escolar determina que 30% dos alimentos consumidos nas merendas tenham origem na agricultura familiar, produção que, ao contrário de cultivos em larga escala, tende a utilizar menos agrotóxicos.
Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o programa prioriza a aquisição de alimentos orgânicos e restringe os ultraprocessados nas escolas públicas. Leia o posicionamento na íntegra.
Outras formas de exposição
Ao calcular o valor máximo de resíduos de agrotóxicos seguros na água usada para beber, o Ministério da Saúde considera um consumo de 2 litros por dia e o peso de um adulto de 60 kg. As crianças, mais uma vez, não são levadas em conta.
Um em cada 4 municípios brasileiros tinham um coquetel de agrotóxicos na água que saía das torneiras entre 2014 e 2017, conforme dados divulgados pelo Ministério e analisados pela Repórter Brasil. Em São Paulo, foram encontradas 3 substâncias que geram riscos à saúde acima do limite de segurança na água.
“É necessário que os valores máximos permitidos sejam mais protetivos para este grupo [crianças], pois nesta etapa do desenvolvimento os danos podem ser graves e potencialmente irreversíveis”, alerta a Fiocruz em parecer técnico lançado durante a revisão da norma do Ministério da Saúde para qualidade da água.
Uma forma de reduzir as implicações que os agrotóxicos podem ter na saúde das crianças é consumir alimentos orgânicos e procurar adquirir frutas e verduras diretamente de pequenos produtores, que tendem a usar menos dessas substâncias [veja aqui um Mapa de Feiras Orgânicas do Idec]. Outra recomendação é priorizar alimentos regionais e da estação, que exigem menos pesticidas para serem produzidos e possuem valores mais acessíveis para os consumidores.
A higienização adequada é outro ponto importante. Apesar de não retirar os resíduos químicos, a recomendação do Ministério da Saúde é lavar os alimentos com água e sabão e deixá-los de molho por 20 minutos em um recipiente com uma solução de uma colher de sopa de água sanitária para cada litro de água.