DE MANAUS (AM) – O que antes era rio, agora é imensidão de lama. “Tenho 68 anos e nunca vi uma seca como essa. Os peixes estão morrendo e as cacimbas estão sumindo”, conta o cacique Manuel Munduruku, da Terra Indígena Kwatá-Laranjal, no município de Borba (AM).
Manuel lidera as 22 aldeias situadas às margens do rio Canumã, um afluente do rio Madeira, a cerca de 150 km ao sul de Manaus. Além de meio de transporte, essas águas fornecem os peixes que são a base alimentar das comunidades e fonte de renda para vários parentes.
Mas o rio “está queimando”, diz o cacique, e quase dá para ver o seu leito seco. Há lama em toda parte. Os igarapés também secaram. “Está pior que a pandemia”, ele conta.
Em meio à seca histórica dos rios e igarapés do Amazonas, lideranças indígenas alertam que as comunidades estão em situação de vulnerabilidade. Falta água potável e alimentos, principalmente. Mas também combustível e energia.
Segundo as lideranças ouvidas pela Repórter Brasil, seus alertas contra um “modelo de desenvolvimento insustentável” na Amazônia foram ignorados. Agora, são os povos originários quem mais sofrem com a seca. Eles dizem que a situação exige resposta urgente das autoridades, mas isso está demorando a acontecer.
Seria esse o presságio anunciado pelo líder indígena Ailton Krenak no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”? Na obra, o autor faz um alerta para o desaparecimento dos indígenas, por ação dos homens que enxergam a natureza como mercadoria, e não como parte de nós. O que se sabe é que o “verão amazônico” não foi o mesmo este ano, com os rios atingindo seus piores níveis em mais de um século.
Cavando pela água
O Amazonas é o estado com a maior população originária do Brasil, uma diversidade de 490.854 indígenas registrada pelo Censo de 2022. E a seca afeta todas as terras indígenas, afirma Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam).
“Os parentes precisam caminhar grandes distâncias para conseguir água, que não é de qualidade. Já não era antes, agora piorou”, ela diz. Mariazinha conta que está recebendo muitos relatos de doenças causadas pela falta de água potável, como diarreia.
Para terem acesso a água, os Munduruku da Terra Indígena Kwatá-Laranjal chegam a cavar cacimbas com as próprias mãos.
“Para a gente se defender dessa seca e fazer a comida, o café, o chá, temos que cavar esse tipo de buraco que a gente chama de cacimba. Tem umas que dão água bonita, e outras que dão uma água enferrujada que não dá para beber”, diz Manuel.
Em frente à casa dele, uma cacimba abastece o posto de saúde da aldeia e outras casas próximas. Mas, com a seca, “algumas cacimbas estão sumindo”. As imagens enviadas pelos Munduruku mostram reservatórios com água turva.
Durante a entrevista, Manuel pediu a visita das autoridades nas aldeias e para que olhem com urgência para as comunidades. O filho do cacique, Estélio Munduruku, universitário e atualmente vivendo em Manaus, encaminhou ofícios pedindo ajuda ao governo estadual. Até a segunda semana de novembro, porém, nada chegou.
Em São Gabriel da Cachoeira, terceiro município mais indígena do país (93% da população se declara como tal), a seca afeta mais as aldeias que vivem do pescado e da roça. A cidade fica no extremo oeste do estado, a 850 km de Manaus.
“A grande vazante aqueceu muito as águas e causou a morte dos peixes”, diz Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Além da insegurança alimentar, há igualmente mais episódios de diarreia, pela baixa qualidade da água.
Procurado pela Repórter Brasil, o governo do Amazonas não respondeu.
Sem rio, sem barco
A seca dos rios impacta também o transporte de pessoas e mercadorias, que agora precisa ser feito por embarcações menores, como as rabetas, cuja capacidade de carregamento é mais baixa.
Mas algumas rabetas também têm dificuldade de locomoção, segundo Manuel Munduruku, da TI Kwatá Laranjal. Isso afeta a busca por alimentos no município.
“Para pegar alimentação é um sacrifício. E não podemos comprar uma quantidade grande (em razão do tamanho do barco), só um pouquinho. A gente está ficando isolado aqui, senhora, e ninguém olha para nós”, diz o cacique.
A Secretaria Municipal de Assuntos Indígenas de Borba informou à Repórter Brasil que está averiguando as demandas das famílias indígenas que ainda não receberam cestas básicas.
”Defesa Civil, Funai e Secretaria irão montar uma força tarefa para entregar as cestas nas comunidades ou na cidade. Ainda estamos aguardando a resposta da prefeitura de Borba para a programação de entrega”, diz a nota.
Racionamento de energia
O evento extremo levou São Gabriel da Cachoeira a racionar energia, que agora chega aos bairros apenas 12 horas por dia.
A energia na cidade é gerada por usinas termelétricas, que dependem de insumos enviados pelos rios. Segundo a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, o racionamento se deu por falta de planejamento das empresas fornecedoras de energia, que não estocaram combustível suficiente para o período de estiagem.
Além disso, a chamada “balsa pulmão” não chegou em tempo hábil, ocasionando o interrompimento da energia. A estrutura armazena combustível em larga escala.
O racionamento também paralisou aulas escolares, prejudicando alunos que, desde a pandemia, buscam se adaptar ao ensino híbrido, segundo Marivelton.
“Em tempos normais já é difícil garantir as aulas remotas. E ainda têm a questão da merenda. Como vão enviar para as comunidades nessa seca? Se antes já não tinha, imagine agora”, destaca o presidente da Foirn.
Com a situação, Marivelton duvida até se o governo do Amazonas será capaz de cumprir a promessa de entregar água potável e alimentos na região.
“Pela via aérea até têm condições de chegar, mas apenas em aviões de grande porte, porque eles precisam estar abastecidos para ir e voltar, pois temos um comprometimento também de combustível de avião”, diz o líder Baré.
Ele critica a demora da prefeitura de São Gabriel em publicar o decreto de emergência, ocorrido apenas no dia 19 de outubro, e afirma que as três esferas de poder (municipal, estadual e federal) não têm um plano de enfrentamento a eventos extremos. “Quem acaba pagando são as populações que estão na linha de frente, povos indígenas e ribeirinhos”, diz.
A prefeitura de São Gabriel e o governo estadual foram procurados, mas não comentaram. O Ministério dos Povos Indígenas também não respondeu.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que criou o Comitê de Respostas a Eventos Extremos na Saúde Indígena para acompanhar a situação.
“Por meio da Secretaria de Saúde Indígena, a pasta dará apoio logístico, como a ampliação de contratos de horas voo aos locais inacessíveis e reforço no combustível para lugares que precisaram aumentar o consumo. Também serão oferecidas orientações, instrumentos de monitoramento e equipe in loco, quando houver necessidade, além de cestas básicas, equipes de combate a incêndio, ações para recuperar a navegabilidade dos rios e antecipação de benefícios sociais. Ainda haverá repasse pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) no valor de R$ 8,12 milhões, para compra de produtos de agricultura familiar nos municípios em situação de calamidade pública ou emergência. O recurso vai possibilitar a compra de 1,72 mil toneladas de insumos para toda região amazônica”, diz a nota.
Nós por nós
A Apiam em conjunto com a Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab) estão tentando captar recursos para atender as comunidades indígenas afetadas. Além da campanha “SOS povos indígenas”, as organizações estão elaborando um plano de enfrentamento à seca.
“Estamos articulando com os apoiadores e financiadores da Coiab para que se crie essa rede de solidariedade e apoio aos povos indígenas afetados pela emergência climática. O objetivo é tentar comprar alimentos, água potável e remédios, além de criar uma estrutura para chegar aos territórios”, diz Mariazinha Baré.
Ela diz que a Apiam faz parte do GT (grupo de trabalho) de enfrentamento à seca na Amazônia, do qual também fazem parte órgãos do governo federal, como MPI e Funai, e do governo estadual, como a Fundação Estadual dos Povos Indígenas, a Defesa Civil e outras instituições. A Apiam foi convidada para pensar em estratégias de como levar a ajuda humanitária para dentro dos territórios.
Por meio de uma carta aberta direcionada aos governos da Amazônia, a Apiam e a Coiab cobram “medidas sérias, concretas, sustentáveis e urgentes, de curto, médio e longo prazo”.
“Não nos ouviram, mas somos resilientes e insistimos para que parem de nos matar. Pedimos aos governos da Amazônia, do Brasil e do mundo que declarem emergência climática e façam algo urgentemente”, diz a carta.
El Niño e Atlântico
O pesquisador Jochen Schöngart, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), atribui a seca à junção de dois fatores: a presença do El Niño nas águas do Pacífico neste ano, além do aquecimento anormal das águas do oceano Atlântico.
“Como os dois atuam simultaneamente, tanto o El ninõ e também o Atlântico, acredito que isso tenha causado essa magnitude da seca que abrange praticamente toda a Amazônia”, ele diz.
Segundo o pesquisador, o El Niño atrasa a cheia dos rios e provoca um fenômeno chamado de “repiquete”, pelo qual o nível das águas sobe e desce várias vezes. “O rio Negro em Manaus chegou em 26 de outubro no seu mínimo, encheu um pouco, mas agora já está vazando de novo. Ele vai passar por vários repiquetes até começar a encher para a próxima cheia. Mas esse processo vai ser bastante atrasado por causa das condições meteorológicas que temos”.
Schöngart diz que o atraso das chuvas é resultado também “do desmatamento, da fragmentação florestal e dos incêndios”. O cenário deve continuar até o início de 2024.