“Trago muita lembrança ainda, todo dia. Nunca esqueci o que aconteceu lá”, lamenta Laércio Guajajara. “Quando eu olhei para o lado — eu nunca esqueço: o meu companheiro já estava no chão. Eu acho que não deu tempo de ele dar nem um tiro. Por isso que a gente considera como emboscada mesmo”.
Laércio testemunhou o assassinato de seu companheiro, o líder indígena Paulo Paulino Guajajara, e sobreviveu ao ataque ocorrido em novembro de 2019, em seu território ancestral, no Maranhão.
Os acusados pela morte do jovem de 26 anos são dois homens apontados como madeireiros por Laércio, e classificados como invasores da Terra Indígena Arariboia pelo Ministério Público Federal (MPF). A expectativa dos procuradores ouvidos pela reportagem é de que o julgamento ocorra no primeiro semestre do ano que vem e entre para a história como o primeiro assassinato de uma liderança indígena analisado pela Justiça Federal.
O caso corre nessa esfera porque o MPF sustenta que o ataque representou uma agressão a toda a comunidade Guajajara e à cultura indígena de forma geral. “O tribunal [Regional Federal da 1ª Região] corroborou [a tese] de que se tratava ali da questão da defesa do patrimônio cultural e da floresta”, explica José Robalinho Cavalcanti, procurador do MPF. A defesa dos réus até tentou levar o processo para a Justiça Estadual, que geralmente se ocupa dos homicídios, sob o argumento de que o assassinato teria sido consequência de uma briga comum. Porém, não obteve sucesso.
“Foi muito tiro. Cinco armas de fogo contra uma”, conta Laércio . Ele foi baleado por quatro tiros, mas, durante uma pausa no tiroteio, conseguiu fugir depois de correr cerca de 11 quilômetros. “Me deu uma sede tão grande, que eu queria comer até terra. Tinha hora que eu caía no chão. Aí, para me levantar de novo, a maior dificuldade. O sangue saindo igual torneira”, relembra Laércio.
Ele relata que nem ele sabe como sobreviveu: “Tupã que me salvou, que eu não sei nem como foi isso. O nosso Deus todo-poderoso que não quis ainda que fosse meu dia. É sinal que tem que lutar até o fim”.
Nove meses antes do assassinato de Paulo, eu e o documentarista Max Baring havíamos entrevistado e acompanhado Paulo e Laércio em patrulha com os Guardiões da Floresta, filmando a destruição de acampamentos ilegais de madeireiros. Os Guardiões da Floresta são um grupo de indígenas Guajajara da Terra Indígena Arariboia que vão para a linha de frente com o objetivo de proteger suas terras ancestrais contra a extração ilegal de madeira, caça ilegal e outros crimes ambientais. Formado há uma década, o grupo também protege os Awá, caçadores-coletores que vivem em isolamento voluntário nas profundezas das florestas da Arariboia e são considerados o povo indígena mais ameaçado do planeta.
Em uma entrevista realizada em 1ºde fevereiro de 2019, e que mais tarde se mostraria profética, Paulo previu sua morte: “Lá no povoado tem em um karawi [homem] branco, que está jurando de me matar. E agora mesmo não está nem com um mês que ele andou atrás de mim para me matar por causa que eu defendo a floresta… Ele é pistoleiro pago por madeireiro”.
Paulo também nos mostrou um local de emboscada construído por madeireiros: “Isso daqui é o mutá [emboscada] que o madeireiro fez aí. Enquanto tem os que estão rachando estaca, o outro está vigiando aqui, com arma de fogo”, ele nos contou para o documentário. “Ele fica ali em cima, já sentadinho ali em cima, esperando… [para] quando o Guardião passar aqui [ele] atirar. Já aconteceu tiro já”.
Em agosto deste ano, voltei à Arariboia para conversar com Laércio e com a família do Paulo para trazer o caso à tona novamente, pois passados quatro anos, o crime ainda não foi julgado.
Em uma entrevista em vídeo no rio Buriticupu, Laércio se emocionou ao relembrar seus últimos momentos com Paulo naquele fatídico dia 1º de novembro de 2019. Não era uma patrulha dos guardiões; eles tinham ido só para caçar, atividade ancestral do modo de vida dos Guajajara, diz Laércio. Mas aí aconteceu “a tragédia” que eles não esperavam, conta Laércio, ao se depararem com motocicletas deixadas por madeireiros, que estavam identificando os locais para derrubada de árvores.
Laércio diz que ele e Paulo danificaram as motos e estavam apreendendo uma delas para enviar à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A ideia era rastrear o proprietário por meio da placa. “Como Guardiões, a gente tem que mostrar o crime, provar o local”, explica.
Quando estavam prestes a sair, pegando água em um poço, conta Laércio, os madeireiros chegaram de repente e anunciaram que eles estavam cercados. “Quando eu fui olhar por trás da árvore, o caçador já vinha com a espingarda e atirou”, narra Laércio. “Aí naquele momento eu percebi que o companheiro já estava morto. Olhei no olho dele e estava assim diferente, bem amarelinho… dentro”.
Laércio fica em silêncio diante da lembrança, permanecendo assim por vários minutos, visivelmente emocionado.
O pai de Paulo, José Maria Paulino Guajajara, relata como ficou “desesperado” quando recebeu a notícia da tragédia. Mas, ao mesmo tempo, ele queria ir até o local, que ele conhecia bem. Foi ele quem identificou o corpo de Paulo.
“Eu fui lá sozinho, acompanhando os polícias. Aí, chego lá, eu vi meu filho, lá, perto da cacimba, onde a gente tirava água para beber, todo machucado”, José Maria conta, no quintal da sua aldeia. “Machucaram ele muito. A cabeça estava toda machucada. Só eu mesmo e Deus, que estava mais eu, sabemos dessa dor que eu sinto até hoje”.
O assassinato ocorreu em uma área muito remota, o que dificultou a retirada do corpo de Paulo, explica José Maria. Primeiro tentaram colocá-lo em uma rede, mas, devido ao peso, tiveram de transportá-lo em um jumento. “Aí, meu filho veio derramando sangue até quando nós chegamos aqui”, conta ele em lágrimas. “Cheguei aqui, trouxe ele aqui, aí fomos, sepultar ele ali. No outro dia, os caras [do Instituto Médico Legal (IML)] vieram de novo, arrancaram ele aí, levaram para fazer a perícia. Muita emoção e muita tristeza. Eu não esperava acontecer um negócio desse com meu filho”.
Quatro anos depois, Laércio, José Maria e todos os Guardiões da Floresta se dizem indignados não só com a impunidade do assassinato de Paulo, mas também com a morte de todos os outros guardiões e Guajajara em sua luta para proteger a Arariboia.
“Pessoal [as autoridades] sabe quem matou meu filho. Eles não prendem porque eles não querem. Não sei se eles têm dinheiro”, diz José Maria. “Nós índios estamos morrendo. Não tem justiça. Eu nunca vi um branco, que matou índio, preso. Nunca. Porque minha mãe foi morta de madeireiro. Meu cunhado foi matado de madeireiro. E agora foi meu filho”.
Mais perto de se tornar um marco
Nos últimos 20 anos, 53 indígenas Guajajara foram mortos no Maranhão, sem que nenhum dos autores tenha sido julgado, afirma o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Desse total, 24 eram da Arariboia e seis eram guardiões, contabilizam os Guajajara.
Dois suspeitos foram indiciados pelo assassinato de Paulo e pela tentativa de assassinato de Laércio. Antônio Wesly Nascimento Coelho e Raimundo Nonato Ferreira de Sousa alegaram em sua defesa que estavam apenas caçando na Arariboia para alimentar suas famílias e que foram os dois guardiões que os atacaram primeiro.
“É simbólico e diz muito que o assassinato tenha ocorrido quando os índios verificaram que havia invasão de pessoas não autorizadas dentro da terra, e eles recorreram a motos como forma de investigar quem eram os donos daquelas motos”, diz o procurador federal Alfredo Falcão.
Ele também destaca que o local onde ocorreu o assassinato era remoto e somente aqueles que conheciam a área conseguiam chegar lá. “Isso torna muito claro — e isso ajudou que a investigação fosse concluída — no sentido de que aquele assassinato não era só uma briga entre particulares. Mas entre a comunidade indígena e pessoas que usavam a terra [indígena] sem autorização”.
Conversei com Falcão no final de setembro em seu escritório em Recife. O caso foi enviado para lá porque Falcão é um dos poucos procuradores que atuam perante o Tribunal do Júri Federal no Brasil.
Quando eu estava a caminho para entrevistar Falcão, Laércio me mandou uma mensagem e eu lhe disse: “Estou indo conversar com o procurador. Você quer mandar algum recado?”. Ele falou: “eu queria que você perguntasse para ele quando vai ser o julgamento”.
“O mais breve possível”, Falcão respondeu, destacando a importância do depoimento de Laércio. “A Justiça conta com ele, conta com o depoimento dele. Porque, afinal de contas, ele é a testemunha ocular daquele momento.”, diz o procurador.
Falcão também enviou uma mensagem à família de Paulo e ao povo Guajajara para que confiem que o Estado pode, sim, dar uma resposta aos pedidos de justiça.
Falcão diz que tem esperança de que o julgamento ocorra no primeiro semestre de 2024 e que está confiante em uma condenação.“É isso que eu tenho pra falar pra família do Paulo Guajajara. O sonho vale a pena e tem que continuar”.
Após a decisão que garantiu a análise do processo pela Justiça Federal, em março de 2022, o processo ficou parado por quase dois anos. Um dos réus, Raimundo Nonato Ferreira de Sousa, recorreu para que o caso fosse julgado por um tribunal estadual, argumentando que se tratava de uma briga particular. No entanto, no final de outubro, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, negou o recurso, preparando o terreno para que o assassinato finalmente fosse a julgamento.
“A tese de que as lideranças indígenas, Paulo Paulino Guajajara e Laércio Guajajara, teriam agredido primeiro é absurda, com todo devido respeito”, afirma o procurador federal José Robalinho Cavalcanti, que fez a sustentação oral perante o TRF-1. “Porque os outros perseguiram eles armados. E os laudos comprovam que Paulo Paulino foi morto com um tiro a longa distância. E, portanto, foi um tiro de arma de caça. E era isso que as pessoas que estão sendo acusadas tinham em mãos porque estavam caçando irregularmente ali dentro”.
Cavalcanti também destaca que o juiz de primeira instância que determinou que o caso fosse remetido a um júri federal “já tinha feito essa análise e o tribunal agora corroborou de que se tratava ali da questão da defesa do patrimônio cultural e da floresta. E, portanto, de algo essencial à vida e à cultura do povo indígena”.
Na avaliação de Cavalcanti, as ações dos Guardiões da Floresta são “uma forma de reação” aos ataques em suas terras, dada a falta de proteção do governo brasileiro. “Eles estavam ali, não em caráter particular, mas como Guardiões da Floresta. Fizeram uma defesa da floresta e, por isso, houve o confronto e eles foram mortos”, diz Cavalcanti, em uma entrevista de vídeo pela internet. “ É esse reconhecimento que traz a competência da Justiça Federal para o processo”.
O recurso ao TRF-1 foi feito pela Defensoria Pública da União (DPU), que representa Sousa. Caso não haja recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a data do julgamento dependerá apenas da conclusão de um laudo antropológico dos danos causados à comunidade indígena em decorrência dos crimes.
Em uma resposta por e-mail em 13 de novembro, a DPU informou que não recorrerá da decisão do TRF-1. “A análise da situação indica que a revisão do entendimento do tribunal demandaria o reexame da matéria fático-probatória, uma ação inviável em recurso especial, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”. O advogado de Coelho não respondeu aos pedidos de resposta da reportagem.
Se a DPU tivesse recorrido ao STJ, o recurso não teria prosperado, avalia o procurador Cavalcanti, uma vez que a decisão do TRF-1 é sólida e confirmou todas as provas da acusação. “Os argumentos técnicos da DPU foram bem feitos, acrescenta ele, mas eles perderam porque a verdade não estava do lado deles”, afirma.
Resistência de séculos
Ao contrário dos Awá, os Guajajara do Maranhão estão em contato com não-indígenas desde 1615, quando foi registrado o primeiro encontro com os colonizadores portugueses. Ao longo dos séculos, eles foram submetidos a proselitismo forçado por missionários, escravidão, doenças infecciosas, perseguição, conflitos e secas extremas que devastaram seu território tradicional. Ramo da família Tupi-Guarani, eles se autodenominavam Tenetehara, mas no processo de migração passaram a ser chamados de Guajajara no Maranhão; os que foram para o Pará são hoje chamados de Tembé. Esse contato com os não-indígenas ao longo dos séculos foi marcado por vários massacres dos Guajajara e pela devastação de suas terras.
A Terra Indígena Arariboia foi demarcada em 1990, o que significa que ela é oficialmente reconhecida pelo governo federal e deveria estar protegida contra invasores. No entanto, crimes como extração ilegal de madeira e caça ilegal ocorrem regularmente no local. Imagens de satélite mostram a Arariboia como uma ilha verde cercada por um mar de desmatamento.
Entre 2020 e 2022, 948 hectares foram desmatados ilegalmente na Arariboia, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Ao mesmo tempo, a violência contra os povos indígenas segue em escalada na região. Em setembro do ano passado, uma onda de assassinatos, supostamente ligados a disputas por terras, resultou em quatro pessoas mortas e duas feridas no espaço de apenas 10 dias .
“Esse julgamento vai ser um divisor de águas para a responsabilização de pessoas que assassinam indígenas”, garante Gabriel Mateus Serra, assessor jurídico do CIMI, que está atuando como assistente de acusação no julgamento dos réus do assassinato de Paulo. Serra diz que é preciso haver punição para acabar não só com a cultura da matança, mas também com os crimes ambientais em territórios indígenas. “Quando a Justiça não dá um retorno, uma sentença condenatória, uma resposta à sociedade para isso, os que praticam essas ações criminosas com frequência se sentem impunes e perseveram nesse tipo de ação de caça ilegal, desmatamento, retirada de estacas. É o mesmo grupo”.
Um caso proeminente de impunidade na Arariboia remonta a 2007, quando o cacique indígena Tomé Guajajara foi morto por madeireiros ilegais em sua casa, diz Lucimar Carvalho, advogada e ex-assessora jurídica do CIMI que atuou como assistente de acusação no caso de Paulo até o ano passado. Hoje, ela é assistente de acusação no processo sobre o assassinato do cacique Tomé, representando os Guardiões. “Esse é um caso que mexe muito com os Guardiões”, comenta Lucimar. Embora os guardiões ainda não existissem formalmente na época, diz ela, os líderes Guajajara já agiam contra a extração ilegal de madeira em seu território.
Lucimar afirma que o processo do assassinato de Tomé quase prescreveu devido ao que ela define como “clara omissão” do governo, especialmente da Funai, em não apresentar as testemunhas indígenas para depor nas audiências. Mas graças à mobilização dos guardiões e do CIMI, prossegue Carvalho, eles foram finalmente ouvidos pelo juiz em março de 2023. O caso continua em andamento.
Os guardiões também clamam por justiça para Janildo Guajajara, guardião assassinado em setembro de 2022. Sua foto em destaque em um banner na aldeia diz: “Os agentes do Estado são cúmplices da violência contra os povos indígenas”.
A Funai também não respondeu os questionamentos da reportagem.
Apesar de tantas ameaças, os guardiões são unânimes em afirmar que nunca desistirão de lutar por suas terras ancestrais. “Nós não podemos acabar com nossa mata porque, se acabar, aí acaba a nossa cultura também. Por isso, nós não deixamos de lutar na mata. Como o meu filho também, o Paulo”, diz José Maria às lágrimas, permanecendo em silêncio por um tempo.
“A mãe dele falava pra ele, pra ele largar desse negócio de lutar por aí, [contra] invasão. Aí, ele dizia: ‘Não, mãe, eu não estou roubando, eu não tô mexendo nada que [é contra] a lei. Apenas, eu estou protegendo a mata nossa aqui, porque nós temos que preservar a mata para o nosso filho, para o nosso neto, para o bisneto. Então, eu não deixo de lutar’”.
Na entrevista de 2019, Paulo fala de um colega guardião que foi assassinado por madeireiro e sua família vivia em dificuldade. As palavras de Paulo se mostraram proféticas novamente. Hoje, é José Maria, responsável pela criação do filho de Paulo, José Paulo Inamé Guajajara, de seis anos, que vive em dificuldades. Segundo José Maria, a mãe do menino o abandonou depois de um ano da morte de Paulo, mas continua recebendo uma pensão especial paga pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Entrei em contato várias vezes com o advogado que está à frente do processo de pensão do filho do Paulo, mas ele não respondeu aos pedidos de entrevista.
Um dos sonhos de José Maria é construir uma escola na aldeia com o nome do filho. “Meu sonho é fazer uma homenagem pra ele”, diz. O pai de Paulo é cantor — a escola ensinará as crianças a cantar os cantos tradicionais dos Guajajara para preservar a cultura de seu povo, finaliza ele.
A Associação Indígena Ka’aiwar dos Guardiões da Floresta da Terra Indígena Arariboia recebe doações para a construção da escola com o nome de Paulo Paulino Guajajara. A associação, criada três anos após o assassinato de Paulo, também recebe doações para a proteção da Terra Indígena Arariboia.
*Esta reportagem recebeu suporte do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center, do qual Karla Mendes é bolsista.