Sete indígenas são resgatados da escravidão em fazenda de réu por massacre

Por Leonardo Sakamoto e Daniel Camargos
 18/12/2023
Galpão onde estavam alojados trabalhadores indígenas resgatados da escravidão em fazenda de réu pelo Massacre de Caarapó (Imagem: Inspeção do Trabalho)

Sete trabalhadores indígenas foram resgatados de condições análogas às de escravo na fazenda Marreta, em Dourados (MS), dos quais uma criança de 11 anos e um adolescente de 17. O empregador é Virgílio Mettifogo, um dos réus pelo que ficou conhecido como o Massacre de Caarapó, quando um indígena foi morto e outros seis feridos em 2016. Ele aguarda o julgamento em liberdade. Os resgatados são da mesma comunidade vítima do massacre.

A ação, realizada pela Superintendência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Mato Grosso do Sul e pela Polícia Militar Ambiental, encontrou os trabalhadores da etnia Guarani oriundos da aldeia Tey’i Kue, em Caarapó (MS), em condições degradantes. Atuavam na colheita manual de milho. A ação foi encerrada no mês de novembro.

De acordo com a fiscalização, estavam alojados em um pequeno galpão, sem janelas, onde dormiam e cozinhavam. Não havia camas, nem colchões, substituídas por tábuas, papelão ou palha. Para se proteger do frio, usavam sacos de embalagens de produtos da fazenda e algumas cobertas. Tampouco havia instalação sanitária – faziam suas necessidades fisiológicas no mato. O empregador não fornecia equipamento de proteção individual.

O auto de infração aponta que a atividade da criança e do adolescente se enquadra na Lista de Piores Formas de Trabalho Infantil. O Brasil é signatário da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), comprometendo-se com a erradicação prioritária desse tipo de atividade.

Mettifogo afirmou à reportagem que os trabalhadores não quiseram ir para o alojamento que havia sido disponibilizado inicialmente, que, segundo ele, era uma boa casa. “Preferiram ir para outro lugar para ficarem sozinhos entre eles. Eles falam outra língua”, disse.

Sobre a presença do menino de 11 anos, disse que não havia sido avisado sobre a idade. “Eu nem sabia que tinha esse menino lá. Você olhava e ele era maior do que os outros”, explicou.

Também ressaltou que quitou todos os valores calculados pelas autoridades. Foram pagas as verbas rescisórias e direitos trabalhistas aos resgatados no valor de R$ 20,5 mil. Os maiores de 17 anos receberão três meses de um salário mínimo do seguro-desemprego especial para as vítimas de escravidão.

O Ministério Público do Trabalho de Dourados também fechou um acordo para o pagamento de danos morais: R$ 5 mil para cada maior de idade e R$ 10 mil à criança e ao adolescente. Também foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para resolução de todos os problemas encontrados na propriedade.

Indígenas reunidos no velório do indígena Guarani Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, assassinado em ataque de fazendeiros no Mato Grosso do Sul (Imagem: Ana Mendes/ Cimi)

Empregador é réu pelo Massacre de Caarapó

Durante a fiscalização, o proprietário disse que havia ficado mais de 150 dias preso. O motivo: a acusação pelo Massacre de Caarapó.

Segundo o Ministério Público Federal, fazendeiros organizaram via WhatsApp e executaram um ataque a indígenas da comunidade Tey’i Kue em 14 de junho de 2016. Teriam participado cerca de 40 caminhonetes, com três pás carregadeiras e mais de 100 pessoas, muitas delas armadas. O objetivo seria retirar um grupo de 40 indígenas Guarani-Kaiowá de uma propriedade ocupada. O ataque ocorreu após a publicação, pelo governo federal, de um relatório antropológico que reconhecia o direito desses povos sobre uma área onde estavam produtores.

A ação armada resultou na morte do indígena Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, que era agente de saúde, com um tiro no abdômen e outro no tórax. Outros seis, inclusive uma criança de 12 anos, foram atingidos por disparos e ficaram gravemente feridos.

O MPF denunciou Virgílio Mettifogo, Nelson Buaianin Filho, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga ainda em 2016, e eles ficaram um tempo presos. Respondem, agora, em liberdade, pelos crimes de formação de milícia armada, homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado, dano qualificado e constrangimento ilegal. O processo já passou pela fase de alegações finais. A 1ª Vara da Justiça Federal em Dourados decidiu que os cinco serão levados ao Tribunal do Júri por conta do crime.

Em suas alegações finais, Mettifogo pediu anulação do processo por violação do princípio da ampla defesa em razão da não-individualização da conduta dos acusados e extinção da punibilidade pela prescrição dos delitos de lesões corporais e constrangimento ilegal qualificado.

De acordo com o MPF, Virgílio Mettifogo transportou na carroceria de sua caminhonete pessoas encapuzadas que estavam armadas e que efetuaram disparos contra indígenas que ocupavam a fazenda Yvu. Também teria gritado a um pistoleiro próximo ao local em que Clodiode foi atingido: “mata esse gordo, mata esse gordo”. Há testemunhas que apontam que os tiros partiram do próprio Mettifogo.

À reportagem, ele negou participação no massacre. “É um absurdo. Tem cinco pessoas acusadas de um crime só. O cara levou um tiro só e tem cinco pessoas acusadas. O laudo da Polícia Federal disse que não tem como culpar alguém por essa morte. Não tem balística do tiro. Não tem nada. É uma perseguição”, afirma.

“A maioria dos índios são trabalhadores. Só tem uma minoria que fica querendo invadir terra, tomar terra dos outros e aí ocasiona uma má fama para eles. Mas isso aí é uma minoria”, conclui Mettifogo.

Enquanto isso, a vida segue normalmente para o fazendeiro. Tanto que o produtor conseguiu assinar apólices de seguro para proteger suas plantações de milho e soja contra eventos climáticos com a Swiss Re, uma das principais seguradoras do mundo, como apontou investigação da Repórter Brasil.

Os fazendeiros seguem nas terras, disputando o território na Justiça.

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, trabalho doméstico, entre outras atividades.

A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

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