Alvo do TCU, Belo Sun quer prisão de manifestantes contrários à maior mina de ouro do Brasil

Belo Sun tenta implantar mina de ouro em área que havia sido destinada para reforma agrária. Empresa recebeu terreno do Incra durante governo Bolsonaro, mas operação é alvo da Defensoria Pública e do Tribunal de Contas da União
Por Daniel Haidar
 12/01/2024

A mineradora canadense Belo Sun pediu à Justiça do Pará a prisão de 40 manifestantes e membros de organizações ambientais, contrários ao plano da empresa de instalar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Previsto para a Volta Grande do rio Xingu, no Pará, o projeto é cercado de críticas por conta dos riscos ambientais e pela forma como a empresa obteve terras da União para implantar o empreendimento.

O pedido de prisão foi feito em outubro passado, mais de um ano após 50 manifestantes montarem um acampamento em uma área de reforma agrária que foi repassada pelo  Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) à mineradora para instalação do projeto.

“Enfrentamos ameaças diárias pelo simples fato de não concordarmos com esse projeto de morte, de abrir a maior mina de ouro a céu aberto em plena Amazônia”, afirmou Amilson Cardozo, agricultor, ex-candidato a vereador pelo PT em Parauapebas e líder do acampamento “Nova Aliança”, que contesta o repasse das terras federais para a Belo Sun.

A área em disputa fica dentro do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, criado há mais de 20 anos para abrigar 600 famílias de agricultores entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no norte do Pará. O local é próximo à Volta Grande do Rio Xingu, região já afetada pela usina hidrelétrica de Belo Monte.

Em 2021, parte desse assentamento foi desmembrado pelo Incra e cedido à Belo Sun, que recebeu também outro terreno federal na região para instalar a mina de ouro. No total foram repassados 2.428 hectares de terras da União. 

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Na notícia-crime enviada à Vara Única de Senador José Porfírio, cidade-sede do projeto de mineração, a Belo Sun acusa os manifestantes de “esbulho possessório”, com pena prevista de seis meses a três anos de detenção. Entre os acusados pela mineradora estão Antônia Melo da Silva, coordenadora-geral do Movimento Xingu Vivo, Brent Millikan, ex-diretor da ONG International Rivers, e Ana Paula Vargas, diretora da ONG Amazon Watch. 

Pesquisadores alertam que o empreendimento poderia causar um impacto ambiental comparável aos desastres de Brumadinho e Mariana (MG).  

Na petição, a Belo Sun também pede que “seja realizada a identificação e quebra do sigilo bancário das ONGs e movimentos sociais e de seus representantes, para demonstração do financiamento do movimento criminoso de justiçamento agrário”. 

Cardozo disse que a ocupação foi feita porque a área estava reservada para reforma agrária e porque há riscos ambientais elevados no projeto. De acordo com um site desativado da empresa, o objetivo do empreendimento é produzir 5 toneladas de ouro por ano

“Somos trabalhadores rurais, vivemos da terra e não podemos concordar que a terra destinada para a reforma agrária seja dada pelo Incra a uma mineradora canadense. Não podemos ser coniventes com esse desastre ambiental iminente, caso esse projeto venha a ser executado”, acrescentou. 

Região das Terras Indígenas Arara da Volta Grande do Xingu e Paquiçamba - Foto: Funai
Além de atingir os assentados, o empreendimento da Belo Sun também afeta terras indígenas como a Arara da Volta Grande do Xingu e a Paquiçamba (Foto: Funai)

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‘Intimidação’

Ativistas e organizações ouvidos pela Repórter Brasil dizem que as atitudes da empresa buscam criminalizar movimentos sociais.

“Tem gente que nem se conhece nessa queixa-crime, mas é mais um passo na estratégia de firmar domínio sobre essa área. Não existe crime descrito, porque não existe intenção de esbulho. A Belo Sun não tem domínio ou posse sobre a área”, afirmou Ana Alfinito, assessora jurídica da Amazon Watch.

Alvo da Belo Sun, o ex-diretor da International Rivers Brent Millikan avalia que a empresa tenta praticar “intimidação”. “É uma forma de tirar atenção [do projeto], por aquela velha máxima de que a melhor defesa é o ataque. Só que é um ataque sem embasamento, em um contexto em que seus atos são indefensáveis”, afirmou à Repórter Brasil

Millikan já não é mais diretor da ONG desde junho de 2021, portanto, um ano antes da ocupação criticada pela mineradora. Mas ele vê legitimidade nas cobranças dos agricultores. “Não foi um movimento de se apossar de propriedade privada. Eram agricultores familiares, clientes da reforma agrária, fazendo uma ação de protesto sobre a apropriação indevida de um território destinado à reforma agrária. Foi uma ação absolutamente legítima. É importante contextualizar”, avaliou.

A Amazon Watch, também alvo da Belo Sun, coleta assinaturas para uma nota de apoio “aos movimentos sociais, organizações e defensores de direitos vítimas de tentativa de criminalização pela empresa Belo Sun Mineração”.

Procurada, a Belo Sun alegou que “tem feito tudo de acordo com as leis” e disse que só sugeriu a “eventual prisão em flagrante” em caso de “necessidade”. 

“Há decisão liminar reconhecendo o ilícito, ou seja, a existência de esbulho possessório, assim como determinando a reintegração de posse em favor da empresa, decisão esta irretocada até o momento” diz a nota da empresa, acrescentando que o processo de reintegração de posse segue em curso aguardando julgamento de mérito (veja a manifestação na íntegra).

Acampamento da Belo Sun no local do “Projeto Volta Grande”, no Pará (Foto: Divulgação)

’Indícios de burla’

Quando a ocupação foi feita por mais de 50 agricultores, com apoio de indígenas e ribeirinhos contrários ao projeto, a Defensoria Pública estadual e a Defensoria Pública da União já tinham protocolado ação civil pública contra a Belo Sun, na qual apontaram indícios de ilegalidades no repasse das terras federais para a mineradora. 

De acordo com as Defensorias, antes mesmo de receber os terrenos do Incra, a Belo Sun havia comprado lotes do Projeto de Assentamento Ressaca, entre 2012 e 2016. Porém, é proibida por lei a compra e venda de lotes da reforma agrária. 

Depois de supostamente comprar esses lotes de assentados, a Belo Sun conseguiu, no governo de Jair Bolsonaro (PL), o contrato de concessão com o Incra referente aos 2.428 hectares (24 km²) na Volta Grande do Xingu, trecho do rio localizado pouco após o barramento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Pelo contrato, assinado em 26 de novembro de 2021, o Incra terá participação direta nos lucros da Belo Sun. 

Os defensores públicos obtiveram documentos que mostram, na prática, que a Belo Sun adquiriu ao todo 3.495 hectares, o que indica “fortes indícios de burla”, segundo a ação, já que o Congresso Nacional precisa aprovar transferências de terras superiores a 2.500 hectares para estrangeiros.

A transferência de terras também é analisada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) desde o fim de 2021. Parecer da área técnica do TCU, obtido pela Repórter Brasil, mostra que o tribunal também suspeitou de ilegalidades no repasse de terras à Belo Sun e, por isso, cobrou esclarecimentos ao Incra e à Agência Nacional de Mineração (ANM).

“Os fatos apontam que, ante a irregular negociação dos lotes, o Incra buscou conferir validade jurídica à posse da área pela Empresa Belo Sun, por meio do Contrato de Concessão de Uso firmado, favorecendo a empresa em detrimento dos assentados que foram excluídos da Relação de Beneficiários da Reforma Agrária”, diz o parecer da área técnica do TCU. Procurado, o Incra não respondeu aos pedidos de esclarecimentos. 

População indígena e ribeirinha do Pará já sofre com os impactos socioambientais causados pela construção da barragem de Belo Monte, no rio Xingu (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Reintegração de posse

Além da ação judicial contra os críticos, a mineradora tenta conseguir também judicialmente que a polícia faça a reintegração de posse da área ocupada pelos manifestantes. Um juiz concordou com a retirada dos ativistas, mas determinou no ano passado que uma solução amigável fosse tentada pela comissão de conflitos fundiários do Tribunal de Justiça do Pará, o que não foi feito até agora. 

Enquanto tenta avançar a extração de ouro, a mineradora canadense sofreu uma derrota judicial em setembro passado, quando o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) negou recurso da empresa e obrigou que seja responsabilidade do Ibama o licenciamento ambiental do projeto de mineração na Volta Grande do Xingu. 

Antes da queixa-crime contra os manifestantes, a Belo Sun tentou uma “saída amigável”, de acordo com Clóvis Osmar Perleberg, um dos integrantes do acampamento “Nova Aliança”.

“Um advogado e um funcionário estiveram no acampamento para propor uma saída amigável, para que a gente não sofresse o vexame de ser expulso pela polícia à força. Mas estão jogando pesado e usando todos os artifícios para que a gente saia da área”, afirmou.

A empresa disse, em nota, que o processo de licenciamento é feito ”de acordo com as leis, regulações e decisões de tribunai”. “A empresa obteve a licença ambiental prévia (LP) em 2014 e a licença de instalação (LI) em 2017. Ainda em 2017, a LI foi suspensa e condicionada à aprovação do plano básico ambiental do componente Indígena (PBA-CI) pela Funai e pelo órgão licenciador ambiental competente, o qual foi apresentado à Funai em março de 2023. Desde então, a empresa está tratando do assunto com a Funai”.

A nota diz ainda que a licença ambiental final vem sendo discutida atualmente com o Ibama,  “O TRF1 reafirmou que as licenças emitidas no passado pela Semas continuam em vigor e que a empresa não precisará reapresentar seus pedidos dessas licenças ao Ibama” (veja a nota na íntegra).

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