O resgate de 16 pessoas em condições análogas à escravidão em uma fazenda onde eram gerados de créditos de carbono, no Pará, expôs mais uma vez as fragilidades deste mercado, que avança a passos largos no Brasil – sobretudo na Amazônia.
A Fazenda Sipasa, palco de um caso de trabalho escravo em junho de 2023, estava inserida em uma área de 26 mil hectares do Projeto Maísa REDD+, que era remunerado por grandes empresas como Audi, Uber, Nike, Ifood e Giorgio Armani para manter a floresta em pé. Essas empresas adquiriram créditos de carbono do projeto para neutralizar suas emissões de gases de efeito estufa – como a Repórter Brasil revelou em outra reportagem. Os trabalhadores resgatados, no entanto, trabalhavam no desmate de uma parte da área.
“A implementação do mercado de créditos de carbono está tornando visíveis contradições e violações de direitos presentes de longa data na Amazônia”, alerta a coordenação executiva da Campanha contra o trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Negar isso seria consentir a uma vasta operação de greenwashing de cadeias produtivas marcadas por tais contradições e violações”, completa a nota enviada à Repórter Brasil. A íntegra pode ser lida aqui.
A derrubada de 477 hectares de floresta amazônica estava autorizada pelos órgãos ambientais e fazia parte de plano da proprietária, a Sipasa Seringa Industrial do Pará S/A, de produzir gado na área, segundo documentos da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará.
Os trabalhadores resgatados não tinham carteira assinada e dormiam em um alojamento precário, de acordo com o relatório de fiscalização.
O Projeto Maísa era certificado pela Verra, a principal empresa de certificação de créditos de carbono do mundo, e detinha selos que agregaram ainda mais valor aos créditos ali gerados. O projeto também passou por auditorias de empresas independentes.
“A Verra tem responsabilidade porque registrou o projeto e emitiu créditos de carbono. Quem comprou lá na ponta também”, avalia Shigueo Watanabe Júnior, do Instituto Talanoa e membro do comitê técnico da Gold Standard Foundation, empresa de certificação de créditos de carbono, assim como a Verra.
“Se você certificou um projeto e permitiu que ele gerasse receita emitindo créditos de carbono, mesmo que você não estivesse ciente dos abusos de direitos humanos, você está implicado”, corrobora Luciana Téllez Chávez, pesquisadora do programa de Meio Ambiente e Direitos Humanos da Human Rights Watch.
A certificadora informou à Repórter Brasil que vai “investigar e agir com relação a essas alegações muito graves”, mas confirmou que estava “inativando publicamente e de imediato o projeto”.
Após a publicação desta matéria, o advogado das empresas proprietárias das fazendas, Adalberto Silva, enviou manifestação. Nela, explica que as regras do projeto foram cumpridas “rigorosamente”, e que “somente depois do distrato [com outros sócios do projeto] foi que a Maísa e a Sipasa elaboraram projetos de supressão florestal […], cujo projeto foi elaborado e aprovado com todo o rigor das normas florestais e ambientais”. Silva havia sido procurado antes da publicação da reportagem, mas não enviou nenhum comentário, na época.
Leia os posicionamentos na íntegra aqui.
Desmatamento recente detectado
A Verra também informou em sua nota que o Projeto Maísa REDD+ já “estava a caminho da inativação formal” há mais tempo, mas que as revelações a respeito do caso de trabalho escravo levaram a certificadora a “agir imediatamente”.
Pelo menos desde fevereiro de 2022 havia motivos de alerta sobre a integridade do Maísa REDD+. Naquele ano, os satelites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais detectaram um desmatamento dentro da área em Moju (PA), caso revelado posteriormente em uma investigação dos portais Unearthed e Climate Home News.
À época da reportagem, uma das sócias da Sipasa Seringa Industrial do Pará SA na iniciativa – a Biofílica Ambipar – informou aos jornalistas que havia paralisado a venda de créditos de carbono do projeto assim que identificou a extração de madeira da área, que acontecia de forma legal, de acordo com a publicação. Este ano, em janeiro, uma área de 264 hectares dentro do projeto foi embargada pela secretaria estadual de Meio Ambiente do Pará por desmatamento ilegal.
Procurada pela Repórter Brasil, a Biofílica confirmou que encerrou o Maísa REDD+ em 2022 e comunicou a decisão a Verra no mesmo ano. A Verra, por sua vez, explicou que desde então o projeto não gera novos créditos.
Já o advogado das empresas proprietárias das fazendas, Adalberto Silva, informa que o distrato com a Biofílica ocorreu em 02/07/2021. Silva só respondeu às perguntas da reportagem após a publicação deste texto.
A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.
Nada disso impediu que empresas seguissem comprando os créditos de sustentabilidade e compensando suas emissões com eles mesmo após essa data. A Repórter Brasil conseguiu rastrear compensações feitas até dezembro de 2023 com créditos de carbono oriundos do Projeto Maísa – ou seja, quando os registros de desmatamento na área já mostravam que ele não cumpria o objetivo de manter a floresta em pé.
Consultada agora, a Biofílica informou que “os créditos vendidos após o encerramento do projeto são de safras antigas. Mesmo que a compra ou o uso dos créditos seja feita em 2023, ela não se refere a créditos deste ano”.
Já a Verra se disse “profundamente perturbada” pelas informações sobre o caso de trabalho escravo, mas reiterou que “nunca há dúvidas sobre a integridade climática dos créditos de carbono emitidos por um projeto certificado pelo nosso Verified Carbon Standard (VCS)”. “Os requisitos robustos do VCS significam que apenas os projetos e atividades da mais alta qualidade são creditados, e o seu longo histórico mostra que esta abordagem funciona”, justifica.
Em manifestação enviada após a publicação deste texto, o advogado das empresas Maísa e Sipasa questiona o critério da fiscalização do trabalhado para qualificar a situação encontrada no local como análoga à escravidão: “As instalações são condizentes com as condições de abrigo e de vida dos habitantes da própria Região Norte, não havendo, portanto, que falar em “trabalho escravo” nas áreas das Fazendas Maisa e Sipasa, ainda que os fiscais insistam em assim caracterizar.”
Leia as respostas na íntegra aqui.
Trabalho escravo na origem do projeto
Além do Verified Carbon Standard (VCS) – que determina que os projetos devem respeitar os direitos humanos e proíbe o uso de trabalho forçado e infantil –, o projeto fazia parte de um seleto grupo que ostenta o selo Climate, Community & Biodiversity Standards (CCB), que atesta impacto positivo para a comunidade onde está o projeto.
Apenas 45 projetos possuem esse selo – em comparação com os mais de 2 mil projetos registrados com o VCS. Em seu site, a organização destaca que projetos como esses são considerados de “alta qualidade” e que “provavelmente não se envolverão em controvérsias”. Tanto o CCB como o VCS são administrados pela Verra.
Mas o resgate registrado em junho do ano passado não é o primeiro envolvendo fazendas ligadas ao Projeto Maísa REDD+. O projeto teve início em 2012, mas em 2010, dois anos antes, um grupo de 11 pessoas foi resgatado de condições análogas à escravidão dentro da Fazenda Maísa – que também está na área do projeto de carbono – e pertence à Maísa-Moju Agroindustrial, que foi uma de suas proponentes, ao lado da Sipasa e da Biofílica Ambipar.
Depois disso, ainda em 2010, uma nova denúncia levou os proprietários da área a responderem na justiça federal pelo crime de submissão de dois trabalhadores à condições análogas à escravidão. A ação penal ainda tramita, sem decisão.
A Maísa-Moju entrou na ‘lista suja’ do trabalho escravo em setembro de 2015, já com o Projeto Maísa REDD+ em andamento. Desde então, 630 mil créditos de carbono foram emitidos pelo projeto.
Auditorias não identificaram problemas
Em 2014, a organização Imaflora esteve na área do Projeto Maísa REDD+ para realizar a única auditoria in loco da iniciativa. Em seu relatório, a organização destaca “uma substancial oportunidade de emprego para membros da comunidade local” e dá sinal verde para a emissão dos créditos de carbono. Nenhuma menção foi feita ao resgate dos trabalhadores em 2010 nem à subsequente denúncia.
Procurado agora, o Imaflora afirma que os casos de trabalho escravo violam as normas dos padrões dos selos – mas que o resgate de 2010 não constava ainda na “lista suja” durante a auditoria, em 2014. Em resposta a questionamentos da Repórter Brasil, a organização informou que deixou de atuar como certificadora da Verra em 2019, e que desde 2015 não acompanha o Projeto Maísa REDD+. Acesse aqui as respostas completas.
Uma segunda auditoria aconteceu em 2020, dessa vez à distância por conta da Covid-19, e levada à cabo pela empresa S&A Carbon, com sede em Estados Unidos. Novamente não há menção a qualquer irregularidade trabalhista. Pelo contrário, o relatório atesta “com um nível razoável de garantia” que o projeto está em conformidade com os requisitos do VCS. Procurada, a S&A Carbon não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
“É muito difícil responsabilizar os atores do mercado voluntário de carbono que estão envolvidos em abusos por ação ou omissão. Esse é um dos principais impactos do fato de o mercado não ser regulamentado”, observa Luciana Téllez Chávez, da Human Rights Watch. Ela explica que em outros setores, empresas de auditoria precisam seguir procedimentos claros, que possuem consequências se não forem cumprido. “Infelizmente, esse não é o caso das chamadas auditorias sociais que investigam se as empresas estão respeitando os direitos trabalhistas ou outros direitos humanos”, compara.
Amazônia em disputa
Um estudo publicado em 2023 pelo Instituto Talanoa sobre o mercado de carbono observa que a credibilidade de um projeto de geração de créditos de carbono é determinante para o cálculo de quanto vale o produto final da iniciativa. “A Verra vende confiabilidade. Se o mercado deixar de acreditar, eles desaparecem”, reforça Shigueo Watanabe Júnior, um dos autores do documento.
Em outubro do ano passado, a Biofílica Ambipar admitiu a dificuldade de levar adiante projetos de carbono na Amazônia, onde eles competem com outras oportunidades econômicas, como a produção agrícola. “O [projeto] Maísa mostra a realidade da região amazônica e ilustra as dificuldades que todos os atores interessados em conservação enfrentam para tornar os projetos de carbono financeiramente viáveis”, disse em reportagem publicada nos portais Unearthed e Climate Home.
A fala de Francisco*, um operador de motosserra de 70 anos que foi resgatado na Fazenda Sipasa em 2023, é outro alerta. Para ele, as condições precárias em que os trabalhadores estavam são cenas comuns na vida de quem trabalha em derrubadas de floresta na Amazônia. “Não existe coisa boa pra gente. Só no céu mesmo. Na terra, é difícil”, ilustra.
Edição: Naira Hofmeister
Atualização: Este texto foi atualizado em 28/02/2024 para incluir a manifestação enviada, após a publicação, pelo advogado das empresas Maísa Moju Agroindustrial e Sipasa – Seringa Industrial do Pará