“Ele foi puxado para dentro da máquina”: o relato trágico dos acidentes no ES

Recolhedoras de café sem dispositivos de segurança deixam rastro de amputações e mortes no Espírito Santo
Por Poliana Dallabrida | Fotos Lela Beltrão | Edição Naira Hofmeister
 04/03/2024

RECOLHEDORAS USADAS em lavouras de café conilon foram responsáveis por acidentes graves com amputações como a da agricultora Rogéria Silveira, de 42 anos. Ela perdeu parte do braço no equipamento, que não dispunha de sistema de proteção adequado.

O conilon é a principal matéria-prima usada na fabricação do café instantâneo. Para colher o grão, trabalhadores colocam os galhos carregados com o café em lonas estendidas entre os cafezais. O trabalho do maquinário é recolher a lona, que é enrolada em três cilindros, enquanto um triturador separa os grãos de café dos galhos e folhas. 

Acidentes podem acontecer, por exemplo, quando esse sistema de cilindros não fixa corretamente a lona que os acidentes acontecem. 

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Outro acidente que pode ocorrer é quando um galho fica preso no triturador da recolhedora e o trabalhador empurra o galho com o pé, resultando em amputação da perna. 

No dia do acidente de Rogéria, em maio de 2022, a lona estava mal posicionada e ela precisou colocar o braço dentro do equipamento para ajustá-la. Ao invés de prender a lona, a máquina agarrou um dos seus dedos. “No que pegou, eu me apavorei e soltei o comando [que controla o funcionamento]. O cilindro virou e arrancou o braço de uma vez”, conta. “A mão ficou na máquina. Ficaram só duas pontas de osso e um pedaço de pele que rasgou”. Em choque, Rogéria diz que não sentiu dor.

Rogéria Silveira perdeu o braço em maio de 2022 em acidente com máquina agrícola semelhante a da foto. O equipamento, originalmente desenvolvido para lavouras de feijão foi adaptado para separar grãos em cafezais, mas não dispunha de sistema de segurança

“Na hora que eu vi, eu já sabia que não tinha como reparar aquele fato. Não adiantava eu ficar me lamentando”, disse Rogéria. “A minha maior dificuldade é em casa, em fazer as coisas da casa. No início foi muito difícil, mas agora a gente vai se acostumando”. 

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Desde 2022, quando começaram a ser registrados os acidentes, ocorreram ao menos sete amputações de pernas, braços e dedos e duas mortes. No ano seguinte, ao menos outras duas amputações foram identificadas pela Secretaria de Saúde do Espírito Santo. O estado é responsável por 67% da produção nacional de café conilon.

Jovem morre após ter corpo esmagado pela máquina

Outro caso aconteceu com o trabalhador rural Pablo Henrique Souza Fabem, de 24 anos, que aparece na foto do celular no início desta reportagem. No dia do seu acidente, em junho de 2022,  a lona estava mais pesada e difícil de ser presa ao cilindro porque o café estava molhado pela chuva do dia anterior. Por isso, Pablo e o dono da propriedade amarram uma corda na lona para dar aderência ao material.

“Foi tudo muito rápido. A corda e a lona enrolaram na perna dele e ele foi puxado para dentro da máquina”, explica Claudio Rizzo, dono do Sítio Santa Luzia, em Nova Venécia (ES), onde o acidente ocorreu. O produtor correu para desligar o equipamento – que não tinha nenhum sistema de travamento imediato – mas já era tarde. “A perna dele foi decepada na hora e ele ficou todo ferido por dentro”, lembra. 

Pablo foi transferido para o hospital Roberto Arnizaut Silvares, em São Mateus, município de referência na região, mas não resistiu e morreu no dia seguinte. 

Cafezais do Sítio Santa Luzia, em Nova Venécia (ES), onde um jovem de 24 anos morreu após ser puxado para dentro da recolhedora

João dos Santos, enfermeiro do hospital,  contou que, no ano da morte de Pablo Fabem, a unidade atendeu outros 11 trabalhadores que sofreram acidentes na recolhedora de café. “O mais comum eram lesões nas falanges [ossos que formam os dedos das mãos]. Em alguns casos mais graves, foi necessário realizar a amputação”, explica.

Indenização e acordo informal

A cerca de 500 metros do Sítio Santa Luzia mora a viúva do trabalhador, Beatriz Fabem, de 23 anos. Ela era casada há 6 anos com Pablo quando aconteceu o acidente. Assim como ele, Beatriz é trabalhadora rural e colhe café e pimenta em propriedades da região. “Eu não sei bem o que aconteceu. Cada um diz uma coisa: que ele passou mal, que ele se enroscou na corda. Eu só sei que foi durante o trabalho com essa máquina”, diz.

Depois do acidente, Beatriz não recebeu indenização mediada pela Justiça. Mas em um acordo informal com dono da propriedade onde ocorreu o acidente ela ganhou a casa onde mora, no valor de R$ 30 mil, e o equivalente a R$ 12 mil pela venda de uma área de pimenta que pertencia ao produtor. Ele é parente do pai de Beatriz. 

À reportagem, a jovem mostra algumas fotos de Pablo. Em uma delas, sua preferida, ele aparece sorridente segurando a sobrinha no colo. “Ele sempre foi muito querido e trabalhador”, conta a mãe de Beatriz. 

Edição: Bruna Borges


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