‘Me sentia uma aberração’: ex-funcionária trans ganha ação contra rede de óticas

Trabalhadora impedida de usar banheiro feminino relata assédio no banheiro masculino da empresa; TST condenou Luxottica a pagar R$ 25 mil de indenização à ex-funcionária
Por Daniela Penha | Edição Bruna Borges
 20/03/2024

QUER QUE EU CONSTRUA um banheiro para você?” Essa foi a resposta que a auxiliar de almoxarifado Nicolly*, 38, conta ter escutado quando procurou o seu supervisor para denunciar que havia sofrido assédio sexual no banheiro masculino da Luxottica, empresa de Campinas (SP) onde trabalhava. Ela é uma mulher trans e passava pelo processo de transição de gênero à época. 

No último dia 8 de março, o Dia Internacional da Mulher, a Luxottica foi condenada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) a pagar R$ 25 mil de indenização a Nicolly por danos morais. “A identidade de gênero tem sido reconhecida como sendo um direito de personalidade que encontra respaldo, antes de tudo, na proteção da dignidade da pessoa humana”, diz trecho da decisão.  

A Luxottica é uma empresa de origem italiana e responsável por marcas de luxo como a Ray-Ban, Oakley e Vogue. Desde 2017, a companhia faz parte do grupo ElissorLuxottica, numa fusão com a empresa francesa de lentes de contatos Elissor, que construiu um império no setor hoje avaliado no mercado em US$ 92,3 bilhões.

A condenação chega onze anos após Nicolly ter sido demitida da empresa, em um ciclo de discriminação que ela conta ter começado quando iniciou seu processo de transição de gênero, em 2011, aos 25 anos.

Em seu site, a Luxottica afirma que está comprometida “em promover uma cultura inclusiva onde todos os colaboradores se sintam capacitados para fazer o seu melhor trabalho, porque se sentem aceitos, respeitados e possuem aquela sensação de pertencimento. […] Respeitamos e incentivamos a diversidade e não toleramos qualquer forma de discriminação, intimidação ou assédio”. 

Questionada pela reportagem, a EssilorLuxottica afirmou que a decisão do TST diz respeito a uma questão ocorrida há 12 anos. “A empresa ressalta que reconhece a importância da diversidade e inclusão, implementa medidas internas em seu ambiente de trabalho e tem dedicado esforços contínuos para fomentar uma cultura organizacional inclusiva e respeitosa”, diz o posicionamento da companhia.

A auxiliar de almoxarifado Nicolly, que sofreu assédio moral e sexual quando trabalhava na Luxottica (Foto: Acervo pessoal)
A auxiliar de almoxarifado Nicolly, que sofreu assédio moral e sexual quando trabalhava na Luxottica (Foto: Acervo pessoal)

Assédio sexual no banheiro

Nicolly trabalhava na empresa desde 2008. Depois que iniciou a transsexualização, no entanto, relata que os problemas com a equipe passaram a ser constantes. Mesmo já em processo de transição e se identificando como mulher, ela diz que continuou a ser chamada pelo nome masculino, além de ter sido impedida de usar um crachá com seu nome social. 

Quando começou o processo de transição, Nicolly trabalhava de noite e podia usar o banheiro feminino, pois poucos funcionários estavam ali naquele turno. Com o passar do tempo, ela foi transferida para o turno diurno e a empresa a proibiu de usar o banheiro feminino, alegando reclamações de colegas. 

Com a aparência de mulher, ela não foi reconhecida pelos colegas de trabalho. “Quando eu entrei no banheiro masculino, a equipe começou a gritar: ‘Moça, o banheiro feminino é do outro lado’. As lágrimas escorriam no meu rosto”. 

Foi então que a supervisora do setor avisou aos demais funcionários quem era Nicolly.  “Depois disso, todo mundo passava por mim como se eu fosse uma coisa diferente, uma aberração. Pessoas saíam do seu setor de origem para me ver ou me falar alguma coisa. Eu chorava muito”. 

Impedida de usar o banheiro feminino, ela afirma ter sofrido assédio sexual por um colega no masculino.

Ela afirma que comunicou seus supervisores antes de começar o processo de transição. “Eles me falaram: ‘Não importa quem você seja. O que importa é seu trabalho’”. Mas, na prática, a conduta foi diferente, diz ela. 

De acordo com a ex-funcionária, a empresa justificava que, para usar o banheiro feminino e ser tratada como mulher, era necessário que a sua identidade de gênero fosse alterada em seu registro civil. Nicolly chegou a procurar o Centro de Referência LGBT de Campinas para mediar a situação, mas diz que não houve abertura da companhia à época. 

Nicolly foi demitida sem justa causa dois anos após iniciar a transição. Em 2014, as advogadas entraram com um processo administrativo e, em 2015, ingressaram na Justiça do Trabalho. Na esfera trabalhista, o pedido foi negado em 1º e 2º graus. A decisão só foi favorável à Nicolly pela análise pelo TST, após seus recursos.

“É uma conquista, não só pelo reconhecimento desse direito humano, presente nas relações de trabalho, como pelo reconhecimento da mulher trans”, afirma a advogada de Nicolly, Monique Marchesi, sobre a decisão favorável no TST.

Com dificuldade em conseguir empregos, a ex-funcionária da Luxottica interrompeu o processo de transexualização dois anos após sua demissão. Depois disso, voltou a se apresentar como um homem.

“Eu fiz um curso de cabeleireira, mas ninguém me aceitava. Tudo o que me ofereciam era prostituição”, diz ela. “Foi mais difícil voltar a ser menino do que transicionar. Mas eu tinha que colocar comida em casa. Tive que me sacrificar”. 

Agora, ela vive fora do país. Com a indenização, pensa em retomar o processo de transição de gênero.

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Trabalhadores trans e o mercado de trabalho

Uma pesquisa realizada pelo projeto Transvida aborda as dificuldades de inserção profissional das pessoas trans. “A transfobia e a discriminação dificultam o proceso de formação profissional. Elas não finalizam o Ensino Médio, deixam a escola”, diz a  advogada Maria Eduarda Aguiar, coordenadora do estudo e primeira mulher trans a ocupar um cargo na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro. 

Na visão de Aguiar, para mudar esse quadro é necessário que as empresas estejam comprometidas com a diversidade e que as políticas públicas sejam efetivas.

Também um estudo da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), publicado em 2020, mostra que a informalidade é forma de ocupação predominante para a população trans da capital paulista. A pesquisa mostra ainda que os homens trans têm uma chance nove vezes mais alta de estarem inseridos no mercado formal quando comparados com as mulheres transexuais e travestis. 

Aguiar sugere que os órgãos públicos promovam ações para estimular a diversidade nas empresas. A criação de comitês de diversidade dentro das grandes corporações também é outro caminho sugerido. 

*Nicolly pediu para ser apresentada apenas com o primeiro nome para não ser identificada.

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Auxiliar de almoxarifado era impedida de usar banheiro feminino e sofria assédio no masculino (Crédito: Freepik)