UMA DAS três maiores produtoras de maçã do país, a Rasip demitiu no último dia 11 de março 265 indígenas que trabalhavam em um pomar da empresa no município de Vacaria (RS). A dispensa ocorreu dias antes do final da colheita, após a polícia militar ser acionada para conter uma discussão entre safristas indígenas – das etnias Guarani Nhandeva e Guarani Kaiowá – e não indígenas em um alojamento dentro do pomar.
Indígenas denunciam que a ação da polícia, solicitada pela própria Rasip, foi violenta – falam inclusive em tortura. A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul admite “o uso moderado da força, com armamento menos letal”, e o Ministério Público Federal aponta que houve uso de balas de borracha dentro do alojamento.
Imagens divulgadas nas redes sociais mostram corpos de indígenas com marcas de disparos e sangramentos. Três pessoas foram presas por atirar pedras contra as viaturas, segundo a polícia.
“Foi uma cena de terror. Vários dos nossos patrícios perderam sangue nessa richa. Nós, indígenas, sofremos primeiro o ataque dos trabalhadores brancos, aí chegou a polícia e ajudou eles”, afirma um dos indígenas que estava no alojamento, em mensagens enviadas com exclusividade à Repórter Brasil. Ele pediu para não ser identificado porque teme represálias.
A Rasip é fornecedora da rede de hipermercados Carrefour, líder varejista no Brasil.
Procurada pela Repórter Brasil, a produtora de maçãs informou que “está comprometida em conduzir uma investigação completa do incidente e em tomar as medidas apropriadas. “Reafirmamos nosso compromisso com a manutenção de um ambiente de trabalho seguro e respeitoso para todos”, diz a empresa, em nota.
Já Carrefour informou ter notificado a Rasip ao tomar conhecimento do caso. “Todos os nossos fornecedores devem atuar de acordo com as políticas de governança exigidas pelo Grupo Carrefour Brasil em sua Carta de Ética, sendo passível da rescisão de contrato e exclusão do sistema. Continuaremos acompanhando este caso e futuras conclusões dos órgãos públicos responsáveis pelas averiguações”.
A polícia militar informou que não será aberto procedimento para investigação interna sobre a conduta dos agentes, mas o Ministério Público Federal está ouvindo os envolvidos e pode instaurar um inquérito sobre o caso.
O MPT do Rio Grande do Sul diz que está averiguando a regularidade das rescisões dos contratos, bem como eventuais outras situações relacionadas ao ambiente de trabalho. Um procedimento para esclarecer se a empresa poderia ter evitado o incidente também foi aberto. E auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego agendaram uma vistoria no alojamento.
A íntegra das manifestações pode ser lida neste link.
Indígenas são 10% dos safristas no Sul
Este não é o primeiro caso de denúncias trabalhistas envolvendo trabalhadores indígenas na Rasip. Em 2021, a empresa foi investigada pela procuradoria regional do trabalho, depois que um indígena contraiu covid nos alojamentos da Rasip e disse que não havia como fazer distanciamento físico no local. Segundo o MPT do Rio Grande do Sul, o inquérito sobre este caso ainda está em andamento. Outras gigantes da maçã com atuação no sul do país também estiveram recentemente envolvidas em denúncias de violações de direitos humanos e até de trabalho escravo.
Em 2023, a Rasip anunciou o maior faturamento de sua história, R$ 225 milhões. Parte desse resultado provém do trabalho nos pomares executado por indígenas. Segundo o Ministério Público do Trabalho, a mão de obra indígena representa 10% do total de trabalhadores na safra da maçã, sendo a maioria contratados por empresas localizadas em Vacaria, município do Rio Grande do Sul.
“Todos os anos, indígenas de várias etnias e regiões do Brasil são arregimentados para as atividades de colheita de maçãs nas serras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Tem sido a mão de obra mais barata”, explica Roberto Liebgott, da equipe Porto Alegre do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade de apoio ao movimento indígena.
Neste ano, um grupo de indígenas veio dos municípios de Japorã e Paranhos, no Mato Grosso do Sul – cerca de 800 km de distância de Vacaria. O contrato foi intermediado pelo MPT de Dourados, em uma iniciativa criada recentemente para melhorar as condições de trabalho na lavoura.
Eles trabalhavam na colheita da variedade gala, em jornadas de oito horas por dia de segunda a sexta e mais quatro horas aos sábados. A empresa pagava aos trabalhadores R$ 1.691,80 por mês, mais um bônus por produção – o valor final poderia chegar a até R$ 4.500 em um período de 45 dias, tempo que dura a safra, segundo cálculos do procurador de Dourados, Jeferson Pereira.
Após o conflito, o MPT disse que os contratos de todos os trabalhadores indígenas foram rescindidos e que eles tiveram seus valores rescisórios pagos ainda no domingo. Como a colheita já estava se encaminhando para o final, ao longo da semana passada todos os trabalhadores temporários também foram desligados, conforme a assessoria de imprensa da Rasip.
“Já estava previsto no cronograma de trabalho acordado a conclusão de suas atividades [na semana do conflito]. Dessa forma, a empresa apenas adiantou a liberação desses colaboradores, uma medida que visa assegurar a harmonia e a segurança de todos no ambiente de trabalho’, explica a Rasip. A íntegra pode ser lida aqui.
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Alojamento para 1300 pessoas
O alojamento abrigava cerca de 1,3 mil trabalhadores temporários da safra da maçã. Ao todo, eram nove pavilhões, cada um com 150 camas divididas em 15 quartos – o que dá uma média de 10 pessoas alojadas por quarto.
Segundo o procurador do trabalho de Dourados Jeferson Pereira, os alojamentos de indígenas e não indígenas eram separados, e as discussões se deram após alguns trabalhadores terem feito uso de bebidas alcóolicas. “Não há mistura entre indígenas e não indígenas nos pavilhões. Tampouco entre etnias. É terena com terena e guarani kaiowá com guarani kaiowá”, garante. “Mas os pavilhões são próximos uns dos outros”, explica Pereira.
De acordo com o indígena que estava no alojamento no dia da briga e que trocou mensagens com a Repórter Brasil, houve também desrespeito dos encarregados dos alojamento em relação aos indígenas. “Antes desse caso passamos racismo e isso não foi relatado. Os responsáveis do alojamento não respeitavam os trabalhadores, falavam mal dos nossos parentes, comparando com os animais. Eu fui chamado de macaco”, exemplifica.
A Rasip diz que “dedica um planejamento cuidadoso à construção de uma infraestrutura acolhedora para os trabalhadores provenientes de diversas partes do país” e ressalta “que a contratação de membros de comunidades indígenas para a colheita de maçã em 2024 foi efetuada por meio de parcerias estabelecidas com as Casas do Trabalhador locais, aderindo rigorosamente às diretrizes definidas em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT)”.
Clovis Antonio Brighenti, que leciona História das Sociedades Indígenas na América Latina na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e acompanha de perto a situação de trabalhadores indígenas, diz que as empresas podem ir além. “É preciso criar mecanismos e condições mais dignas de trabalho e sistemas de organização interna para que os indígenas possam ter um pouco ‘a aldeia no local’”, observa.
O Cimi também elenca medidas para conter os abusos contra trabalhadores temporários indígenas em lavouras (íntegra aqui). Além de uma maior presença da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, pede a presença de intérpretes, de agentes de saúde da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a proibição de venda de bebidas alcoólicas e alojamentos separados de indígenas e não indígenas.
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