‘Laranjas’ encobrem crimes ambientais no arco do desmatamento na Amazônia

O caso de um fazendeiro acusado de grilar e desmatar uma área pública no sul do Amazonas traz pistas sobre como funcionam os esquemas de fachada que dificultam a responsabilização de infratores
Por Fernanda Wenzel e Naira Hofmeister | Fotos Fernando Martinho | Edição Alexandre de Santi | Checagem Estúdio Fronteira e Alex Shawn
 22/04/2024

BUJARI, ACRE – Nome conhecido na Amazônia e nos corredores da capital federal, José Carlos Bronca, 71 anos, está dando trabalho a autoridades da República que tentam responsabilizá-lo por desmatamento ilegal em Lábrea, no sul Amazonas. Entre 2016 e 2019, o Ibama emitiu multas no valor de R$ 28,7 milhões por desmates que, somados, totalizam 5,3 mil hectares em uma fazenda chamada Nova Liberdade.

A Nova Liberdade está situada na Gleba João Bento, um terreno público que fica a meio caminho entre Porto Velho, em Rondônia, e Rio Branco, no Acre, na fronteira entre os três estados do norte que é um dos epicentros do chamado arco do desmatamento.

Os agentes ambientais levantaram evidências – assumidas também pelo Ministério Público Federal – de que Bronca seria o verdadeiro dono das terras. Mas, no papel, a fazenda teve sua área dividida em várias parcelas menores, que foram registradas no Cadastro Ambiental Rural em nome parentes ou empregados do proprietário, o que sugere o uso de “laranjas”.

O método supostamente usado por Bronca no sul do Amazonas é muito semelhante ao atribuído a Bruno Heller, no Pará – ele tem sido apontado por autoridades como o “maior desmatador da Amazônia” e foi alvo de uma operação da Polícia Federal em agosto de 2023. Assim como Bronca, ele supostamente falsificou registros de terras no âmbito do Cadastro Ambiental Rural, segundo o inquérito policial.

Grileiros podem burlar autoridades dividindo as propriedades no papel e colocando cada pedaço no nome de familiares ou funcionários
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Essa estratégia, comum na Amazônia segundo as autoridades, tem sido um obstáculo para os investigadores. Escondendo-se atrás de laranjas – geralmente pessoas humildes que não estão totalmente cientes das consequências – os grileiros podem burlar as leis de regularização fundiária e se proteger contra processos judiciais, prisão e multas ambientais.

Essas infrações nunca são pagas, pois os laranjas geralmente não têm dinheiro. “Você vai procurar os bens que estão no nome do cidadão multado e não encontra nada”, explica César Guimarães, superintendente do IBAMA no estado de Rondônia.

Mas com Bronca, a história parece estar mudando de figura. Recentemente, ele teve seus bens bloqueados e novas multas e embargos foram emitidos pelo Ibama em seu nome, conforme a investigação feita em parceria entre Repórter Brasil e Mongabay.

Procurado, Bronca enviou uma nota informando que nunca utilizou laranjas “para qualquer finalidade, muito menos para fraudar processo de regularização fundiária” – a íntegra pode ser lida ao final deste texto. Bruno Heller já se manifestou anteriormente sobre seu caso. Em nota enviada em março à Repórter Brasil, seu advogado informou que a família “desde os anos 70 exerce a posse mansa, livre e pacífica da propriedade rural familiar situada no Estado do Pará”. A íntegra pode ser lida aqui.

Contratos teriam sido forjados para enganar as autoridades 

A primeira ocasião em que Bronca teria se esquivado do Ibama ocorreu em agosto de 2016. Uma equipe do órgão ambiental flagrou vários homens desmatando a floresta com motosserras dentro da Nova Liberdade. Eles confirmaram que a área pertencia ao “Sr. Bronca”, conforme consta no relatório de fiscalização ao qual a reportagem teve acesso.

Cinco dias depois, no entanto, um funcionário de Bronca, Cheyenne Figueiredo de Souza, compareceu ao escritório do Ibama para mostrar um contrato em que afirmava ter comprado a Nova Liberdade de Bronca em 2014 – ele seria, portanto, o responsável pelo desmatamento. Mas, em uma ação trabalhista, de acesso público, que moveu em 2023 contra seu ex-chefe, Souza afirmou que o contrato foi assinado em um cartório no dia anterior à sua visita ao escritório do Ibama e “escancaradamente forjado com data retroativa”. Em junho de 2018, dois anos após o primeiro flagrante, o trabalhador assumiria novamente uma multa pelo desmatamento de 691 hectares na mesma fazenda.

“Se alguém apresenta um contrato de compra e venda firmado em cartório, eu tenho que basear meus atos neste documento”, observa César Guimarães, superintendente do Ibama em Rondônia, quando apresentado ao caso.

César Guimarães, do Ibama em Rondônia, explica como laranjas dificultam a reparação de infrações ambientais
César Guimarães, do Ibama em Rondônia, explica como laranjas dificultam a reparação de infrações ambientais

De acordo com o processo trabalhista, os esforços de Bronca para burlar as multas ambientais foram tão intensos que nenhum ativo, incluindo suas empresas, poderia ser mantido em seu nome e nenhum dinheiro poderia ser movimentado por ele. Para isso, ele usava cartões de crédito de seus parentes. “Nem mesmo um almoço era pago a partir da conta bancária do próprio Sr. José Carlos Bronca”, escreve o advogado de Souza em uma das peças processuais. 

Em sua defesa, Bronca argumenta que o funcionário “jamais foi obrigado” a assinar o contrato de compra e venda do terreno. Curiosamente, ele também diz em outro trecho que é o verdadeiro proprietário da fazenda, confirmando, portanto, que o contrato teria sido simulado.

Na justiça, Souza pede uma indenização por ter sido usado como laranja, além de encargos trabalhistas, totalizando R$ 22 milhões. Uma primeira decisão de dezembro de 2023 concedeu a Souza os direitos trabalhistas não pagos, mas não mencionou reparações relacionadas à acusação de ter sido usado como laranja. Ele recorreu.

Procurado, Souza disse que não faria comentários. Bronca não comentou o processo trabalhista.

Do faroeste amazônico aos corredores de Brasília

A gleba João Bento é um dos alvos mais fáceis dos grileiros, porque ela é uma terra “não destinada”, no jargão oficial. Isso quer dizer que ela ainda não tem um uso definido pelo governo, não é nem área indígena, nem unidade de conservação – e, por isso, está mais vulnerável a invasões. Mas é a última barreira antes de um vasto bloco de áreas protegidas já designadas, onde há inclusive indícios de existência de indígenas isolados. E já perdeu quase metade de sua cobertura florestal original, segundo o Greenpeace.

“É um verdadeiro faroeste”, observa Humberto de Aguiar Júnior, promotor do Ministério Público do Acre, referindo-se às frequentes disputas de terra na região, muitas das quais culminam em tiroteios. “Às vezes, seis pessoas alegam ser proprietárias da mesma área”, completa.

O promotor Aguiar Júnior precisa lidar com o “faroeste amazônico” para resolver investigações e responsabilizar culpados por danos ambientais
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O método atribuído a José Carlos Bronca, contudo, é distinto. Documentos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que entre 2021 e 2022 ele teve quatro reuniões com o Incra – duas delas foram com o presidente do órgão – para discutir o “georreferenciamento” e a “regularização fundiária da gleba João Bento”.

As reuniões foram organizadas por Márcio Bittar, um senador do Acre descrito por Bronca como um “amigo” e apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro. O senador foi procurado, mas informou que não iria comentar.

A dificuldade de perseguir laranjas

Descobrir quem é o verdadeiro desmatador por trás de laranjas não é tarefa fácil. 

Em 2021, por exemplo, a Polícia Federal solicitou à Polícia Militar de Lábrea que visitasse a fazenda de Bronca para verificar se ele era o real proprietário da terra. Mas não havia veículos, combustível ou dinheiro para pagar as diárias da equipe em uma viagem de 1.400 km – equivalente à distância entre a cidade do Rio de Janeiro e Porto Alegre – passando por “trechos com possíveis atoleiros, enlameados e lisos, em razão da precariedade das estradas de terra”.

Em outro episódio, um oficial de justiça relatou que, para cumprir um mandado judicial, precisou ir até um ponto na estrada onde um parente de Bronca ajudava a desatolar um caminhão para notificá-lo sobre um processo.

A violência em muitas partes da Amazônia torna o trabalho ainda mais desafiador, explica o superintendente do Ibama no Acre, César Guimarães: “São lugares extremamente hostis. Preciso de dois policiais para cada agente. Porque se o agente chegar lá sozinho, ele será perseguido e linchado”.

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No caso de Bronca, a coisa mudou de figura em outubro de 2019, durante uma fiscalização do Ibama, quando um gerente da fazenda o identificou como proprietário da Nova Liberdade e responsável por mais um desmatamento. Dessa vez, não houve saída: ele foi multado em R$ 10 milhões e teve seus bens bloqueados por um juiz. No ano seguinte, as autoridades começaram a rastrear possíveis laranjas, em uma investigação que segue em andamento.

Em abril de 2023, Bronca seria multado novamente. Desta vez, a conta foi de R$ 25,7 milhões por crimes ambientais – novamente, sem nenhuma fachada para assumir a culpa por ele.

O fato de que os parentes que alegavam ser os proprietários das terras trabalhavam em atividades completamente alheias à pecuária soou como um alarme para as autoridades. “Desde o início dessas apurações, o MPF sinalizou a possibilidade de José Carlos Bronca estar a utilizar-se de terceiros, laranjas, para ocultar a posse de áreas rurais no Município de Lábrea”, escreveu Ana Carolina Haliuc Bragança, procuradora federal do Amazonas, em agosto de 2022.

Íntegra da nota de José Carlos Bronca – enviada por meio de advogado

Eu, José Carlos Bronca declaro que estou atualmente com 71 anos de idade, com diversas sequelas da covid, inclusive debilitado e realizando tratamento médico. Declaro igualmente que nunca me utilizei de laranjas para qualquer finalidade, muito menos para fraudar processo de regularização fundiária. Quanto ao suposto descumprimento de embargo do IBAMA, informa que o departamento jurídico está tomando as providências perante o órgão ambiental competente.

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