Caso de grilagem liga frigoríficos a rede de corrupção e lavagem de dinheiro

Autoridades relacionam invasão e desmatamento de parque estadual em Rondônia a quadrilha acusada de crimes contra a ordem financeira do país. Vários integrantes fizeram negócios com JBS, Marfrig e Frigon
Por Naira Hofmeister e André Campos | Fotos Alessandro Falco
 23/05/2024

DE NOVA MAMORÉ (RO) – Protegidos por um esquema de vigilância armada provido 24 horas por dia pelo governo de Rondônia, 605 cabeças de gado pastavam até abril dentro do Parque Estadual de Guajará Mirim, uma unidade de conservação de proteção integral da Amazônia onde a pecuária é proibida.

Os animais estavam ali após serem tomados pelo Estado. Seu dono, segundo a Polícia Militar  de Rondônia, é um pecuarista apontado como invasor da área de preservação – ele foi preso em novembro durante uma megaoperação que retirou suspeitos de grilagem do local. O rebanho acabou apreendido para evitar eventual venda, já que, segundo as autoridades, cúmplices do homem detido seguiam soltos e rondavam o local para tentar retirar o gado de lá.

“Identificamos uma organização criminosa atuando no parque que envolve proprietários de fazendas que são vizinhas à unidade de conservação”, explica o promotor de Justiça de Rondônia Pablo Hernandez Viscardi, que atua nas investigações. “Essas propriedades são usadas para lavar o gado, que na verdade é criado dentro do parque. Sem essa manobra, não é possível vender para os frigoríficos”, completa.

O fio que conecta pecuária, desmatamento e grilagem no Parque Estadual de Guajará Mirim vai além dos crimes ambientais: investigações feitas por autoridades nos últimos dois anos, às quais a Repórter Brasil teve acesso, sustentam que integrantes da quadrilha estariam envolvidos com casos de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, falsidade ideológica, extorsão e estelionato.

O gado é o elemento que conecta as irregularidades. E documentos inseridos nos autos processuais ou obtidos diretamente pela Repórter Brasil mostram negócios feitos entre os acusados dos crimes e alguns dos maiores frigoríficos do Brasil, nos últimos anos – a exemplo de JBS, Marfrig e Frigon.

CORREDOR ECOLÓGICO E INDÍGENA

O Parque Estadual de Guajará-Mirim abrange uma área de aproximadamente 200 mil hectares e é uma unidade de conservação de proteção integral. Segundo a legislação brasileira, este tipo de unidade de proteção ambiental tem as regras mais rígidas de uso, sendo permitido apenas uso indireto dos recursos naturais. Já as unidades de uso sustentável podem comportar atividades econômicas e de subsistência, desde que manejadas dentro de um conceito de respeito ao meio ambiente.

O parque faz parte de um importante corredor ecológico em Rondônia que conecta várias unidades de conservação e terras indígenas. Ao norte, se limita com o território Karipuna, que por sua vez está ligado à Reserva Extrativista de Jaci-Paraná. Ao sul, estão a terra indígena Eru-Eu-Wau-Wau, várias outras reservas extrativistas e parques nacionais. “É um corredor não só rico de biodiversidade, mas de cultura, de identidade”, observa a indigenista Neidinha Suruí, da Associação Kanindé.

Mas várias dessas áreas têm sido alvo de invasões. “O parque foi invadido, nosso território também, a Resex Jaci Paraná, que fica ao lado, também está invadida. Aí fica difícil porque não tem mais floresta, não vai ter mais floresta em pé”, alerta o cacique-geral do povo Karipuna, André Karipuna.

Em incursões recentes à borda sul de seu território, exatamente onde a terra indígena faz fronteira com o parque, a liderança encontrou vestígios da existência, nessa região, de povos tradicionais isolados. “Se nós estamos ameaçados, imagina os parentes isolados”, preocupa-se.

Suruí, que participa de expedições em busca de vestígios, corrobora. “Acreditamos que esses indígenas estão num grupo extremamente reduzido, ou foram mortos ou expulsos dali [por conta das invasões]”.

Um juiz preso

Em agosto do ano passado, as várias pontas de atuação do grupo acusado dos crimes começaram a ser conhecidas quando o Tribunal de Justiça de Rondônia decidiu que o então juiz da comarca de Buritis (RO), Hedy Carlos Soares, deveria perder a função porque teria vendido sentenças em troca de propina.

O caso que deu origem à decisão descortinou investigações que apontam a participação de Soares no esquema de grilagem de terras e criação de gado dentro do Parque Estadual de Guajará Mirim.

Entre as sentenças colocadas sob suspeita, estava uma decisão do então juiz tomada dois anos antes, em março de 2018. Na ocasião, Soares autorizou um homem chamado Erivan da Silva Teixeira a permanecer na posse de quase mil hectares de terra de uma fazenda chamada Cantão. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente de Rondônia (Sedam), a área estava dentro do Parque Estadual de Guajará Mirim.

Nos cálculos da Sedam, naquela altura, Teixeira já havia desmatado 780 hectares dentro do parque. “Essa circunstância o transforma em um dos maiores invasores e degradadores da citada unidade de conservação”, diria o Ministério Público (MP) de Rondônia alguns anos depois, ao analisar o caso durante o julgamento do juiz. Na área desmatada, Erivan Teixeira plantou pasto, conforme deixou registrada a sentença de Soares.

Acontece que, pelo menos desde janeiro daquele ano, o juiz possuiria um contrato com Teixeira para o arrendamento da Fazenda Cantão, conforme revelado por uma reportagem da Agência Pública em 2022. E as investigações do MP também demonstraram que, no ano seguinte, o então juiz teria emitido Guias de Trânsito Animal (GTAs) movimentando quase 300 cabeças de gado entre a Cantão e a Fazenda Prosperidade, em Buritis, de sua propriedade.

Hedy Carlos Soares também foi flagrado por servidores da Sedam saindo de um churrasco na fazenda, no feriado de 7 de setembro de 2018.

Áreas desmatadas no interior do Parque Estadual Guajará Mirim deram lugar a imensas pastagens de gado, tudo articulado por quadrilhas organizadas (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)
Áreas desmatadas no interior do Parque Estadual Guajará Mirim deram lugar a imensas pastagens de gado, tudo articulado por quadrilhas organizadas (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

Na visão do Desembargador Marcos Alaor Diniz Grangeia, que mandou investigar a conduta de Soares, havia “interesse do próprio magistrado no deferimento do pleito de manutenção de posse, dada a relação negocial que possuía com o proprietário da Fazenda Cantão.”  Soares ainda decidiria restituir um trator, uma carreta e outros bens ao infrator ambiental em outros processos judiciais nos quais suas decisões foram questionadas.

Mas, segundo as autoridades, Teixeira não era mero arrendatário, nem eventual parceiro de negócios de Hedy Carlos Soares. Uma investigação sobre outra sentença do ex-juiz, tomada em 2020, revelou a existência de um “grupo de pecuaristas” no qual ele estaria incluído e sobre os quais recaem suspeita de fraude, sonegação de impostos e ocultação de patrimônio, “configurando, em tese, crimes de falsidade ideológica, sonegação fiscal, associação criminosa e possível lavagem de capitais”, segundo concluiu um investigador em 2022. Esse caso ainda não possui decisão final e corre em sigilo de justiça.

Entre os integrantes de tal grupo, segundo as investigações, estão tanto Erivan da Silva Teixeira como seu cunhado, Walvernags Cotrin Gonçalves – o homem preso em novembro de 2023 por invasão do Parque Estadual de Guajará Mirim e de quem a polícia confiscou as 605 cabeças de gado que estavam na unidade de conservação.

A reportagem procurou os advogados de Hedy Carlos Soares, Walvernags Cotrin Gonçalves e Erivan da Silva Teixeira para ouvir suas explicações – mas apenas a Defensoria Pública de Rondônia, que está atuando em nome de Teixeira nos processos, respondeu. O órgão explicou, no entanto, que apesar de ter sido designado para esta função, “não teve qualquer contato com o réu”, e que a legislação brasileira impede o compartilhamento de contatos diretos dele. A íntegra pode ser lida aqui.

Gado vendido para São Paulo​

Nesta outra decisão elencada como evidência da parcialidade do juiz, Hedy Carlos Soares liberou um caminhão carregado de gado que havia sido parado por fiscais da Secretaria Estadual de Finanças (Sefin) em Vilhena, na fronteira entre Rondônia e Mato Grosso. O caminhão não havia pago o ICMS, imposto obrigatório em transações interestaduais. A justificativa de Soares era que a remessa de bois estava sendo feita entre fazendas de um mesmo contribuinte, uma pessoa chamada Marcos da Cunha Coelho – tese depois questionada por autoridades da Sefin de Rondônia, do Ministério Público e da Justiça. A sentença liberando o trânsito do gado foi dada em novembro de 2020.

A GTA que acompanhava o caminhão não mencionava a Fazenda Cantão, mas o endereço fornecido como origem dos animais – BR 421, km 221, Jacinópolis –  era o mesmo que aparece vinculado a essa propriedade em outras transações a que a Repórter Brasil teve acesso. O MP de Rondônia também localizou nos sistemas do Idaron inúmeras transações de gado entre Marcos da Cunha Coelho e Hedy Carlos Soares e rastreou repasses financeiros entre eles.

Servidores da SEDAM patrulham uma área invadida por fazendeiro no Parque Estadual Guajará-Mirim (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)
Servidores da SEDAM patrulham uma área invadida por fazendeiro no Parque Estadual Guajará-Mirim (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

“Os elementos informativos e provas produzidos nos autos evidenciam que a decisão judicial proferida pelo Juiz de Direito Hedy Carlos Soares visou satisfazer interesse pessoal, na medida em que há indícios robustos de que a carga retida pela Sefin, ou ao menos parte dela, lhe pertencia ou era de seu interesse”, concluiu o MP em 2022, depois de uma investigação.

Já o caminhão que transportava a carga estava registrado no nome de Walvernags Cotrin Gonçalves – supostamente o dono dos bois apreendidos no parque em novembro do ano passado, com quem Soares também teria feito “transações expressivas de compra e venda de gado”, segundo documentos da investigação.

“As provas produzidas demonstraram, sem sombra de dúvidas, que um grupo de pecuaristas tem utilizado o nome de Marcos da Cunha Coelho nas movimentações de bovídeos e transporte para o estado de São Paulo, dentre eles aparece o juiz investigado”, explica o MP, nominando tanto Hedy Carlos Soares, como Gonçalves e Teixeira.

A decisão de Soares teve efeito multiplicado: segundo dados da Secretaria da Fazenda de Rondônia, depois desse dia, o grupo teria realizado diversas remessas de gado para São Paulo usando o nome de Marcos da Cunha Coelho – o volume de animais cresceu ano a ano. Foi rastreado o trânsito de pelo menos 1.110 cabeças de gado, cujo valor total pode ter gerado a sonegação de R$ 348,6 mil em ICMS. “É provável que todo gado enviado em nome de Marcos da Cunha Coelho para a Fazenda Arabiri, situada em Birigui/SP, não tenha sofrido a incidência do ICMS, escorada na decisão proferida por Hedy Carlos Soares”, observa o MP nos autos.

Procurado pela reportagem, o advogado de Marcos da Cunha Coelho não enviou comentários.

Negócios com frigoríficos

As investigações sobre as remessas de gado dos acusados para São Paulo apontaram também a existência de três contratos assinados em janeiro de 2021 pelo ex-juiz Hedy Carlos Soares e por Marcos da Cunha Coelho com a Fazenda Chaparral, no município de Rancharia. A propriedade – um confinamento que se dedica à engorda de bois e vacas próximos ao abate – é fornecedora de importantes frigoríficos e recebeu animais de ambos.

GTAs consultadas pela Repórter Brasil revelam que em dezembro daquele mesmo ano, a Fazenda Chaparral forneceu animais à unidade de Lins da JBS, em São Paulo. A JBS informou que a propriedade “encontra-se atualmente bloqueada” pela empresa e que “todas as aquisições estavam de acordo com o Protocolo de Monitoramento do Ministério Público Federal e com a Política de Compras” do frigorífico. 

Já a unidade da Marfrig em Promissão (SP) adquiriu animais da Fazenda Chaparral entre 2022 e 2024. Procurada, a empresa ressaltou não ter recebido gado da propriedade em 2021, ou seja, no ano em que as investigações mencionam seus negócios com Soares e Coelho.

Sob ameaça, Parque Estadual de Guajará-Mirim é lar de espécies em extinção e pode ser área habitada por indígenas isolados (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)
Sob ameaça, Parque Estadual de Guajará-Mirim é lar de espécies em extinção e pode ser área habitada por indígenas isolados (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

Uma das peças dos inquéritos sigilosos aos quais a Repórter Brasil obteve acesso mostram planilhas de contabilidade e inclusive extratos bancários do grupo ligado ao ex-juiz Hedy Carlos Soares – acusado também de lavagem de dinheiro. Os documentos fazem menção à JBS tanto no contexto de emissão de GTAs, como também registram depósitos que o frigorífico fez em contas de pessoas ligadas ao então magistrado.

Além disso, várias propriedades e pessoas investigadas pelas autoridades aparecem fazendo remessas de gado direta e indiretamente para os grandes frigoríficos brasileiros.

Um exemplo é Andréia de Lima Sinotti. Entre 2021 e 2022, ela encaminhou animais para serem abatidos pelo matadouro da JBS em Vilhena, conforme GTAs acessadas pela Repórter Brasil. A fazenda fornecedora, segundo os documentos, seria a Chácara Mãe e Filha, localizada em Buritis (RO).

Acontece que, em declarações prestadas às autoridades, Sinotti admitiu não ser pecuarista de fato. Apontada como “laranja” do ex-juiz nas investigações, ela disse que todas as GTAs emitidas e vendas realizadas em seu nome eram feitas por seu marido, que, por sua vez, realizava as operações em nome de Hedy Carlos Soares. O marido de Sinotti também confirmou, em depoimento, que os lucros das negociações eram revertidos ao magistrado.

A JBS é mencionada explicitamente em um balanço de movimentação de animais atribuído à quadrilha e anexado ao inquérito que investiga o ex-juiz. O documento descreve a venda de 13 bois e 5 vacas ao frigorífico em 19 de março de 2021. Nesta mesma data, 13 bois e 5 vacas foram encaminhados à JBS numa venda registrada em nome de Sinotti e da Chácara Mãe e Filha, de acordo com uma GTA obtida pela Repórter Brasil

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Em outra coincidência semelhante, o balanço informa a venda de 20 vacas ao frigorífico no dia 25 de março de 2022 – mesma data em que registros de GTAs apontam a JBS como destinatária de uma remessa de animais da Chácara Mãe e Filha com as mesmas características.

O balanço de animais que descreve essas transações não menciona a Chácara Mãe e Filha, mas apenas a Fazenda Prosperidade, localizada também em Buritis e, esta sim, oficialmente registrada em nome do ex-juiz Soares. Em 2019, ela teria recebido, segundo o MP, centenas de animais para engorda oriundos da Fazenda Cantão, localizada dentro do Parque Estadual de Guarajá Mirim.

O próprio Walvernags Cotrin Gonçalves, o homem do gado apreendido em novembro dentro do parque, forneceu animais diretamente para a JBS de Vilhena e de Pimenta Bueno em 2021 e 2022, e para a Marfrig de Ji-Paraná entre 2020 e 2021.

Nesse período, o Sítio Oliveira – fazenda de Gonçalves registrada como fornecedora dos frigoríficos – recebeu repetidamente remessas de gado de propriedades cujo endereço as situam no limite do Parque Estadual de Guajará-Mirim e também da Fazenda Prosperidade e da Chácara Mãe e Filha.

A JBS informou que tanto o Sítio Oliveira como as propriedades em nome de Andréia Sinotti – Chácara Mãe e Filha e a Fazenda Sombra da Mata – “encontram-se atualmente bloqueadas” e que os negócios feitos no passado seguiram os protocolos de compra responsável do frigorífico. A Marfrig também admitiu ter comprado animais de Walvernags Cotrin Gonçalves em 2020 e 2021, mas também afirma que a propriedade “não possuía nenhuma inconformidade com os critérios socioambientais” – e ressaltou ainda que “encerrou suas atividades em Ji-Paraná (RO) em setembro de 2021”.

“As eventuais irregularidades apontadas pela Repórter Brasil eram praticadas em elos anteriores da cadeia”, acrescenta a JBS, o que, na opinião do frigorífico, “reforça a urgência de endereçar o desafio setorial de monitorar toda a movimentação de gado bovino, visto que as empresas processadoras de proteína não têm acesso às GTAs de outros elos da cadeia produtiva, impedindo que tenham visibilidade sobre práticas irregulares como as apontadas pela reportagem”. As notas podem ser lidas integralmente aqui.

Andréia de Lima Sinotti não quis comentar. Os demais pecuaristas mencionados não enviaram respostas aos questionamentos enviados a seus advogados.

Unidade da JBS em Porto Velho aparece como uma das destinatárias de gado criado em fazendas relacionadas às investigações (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)
Unidade da JBS em Porto Velho aparece como uma das destinatárias de gado criado em fazendas relacionadas às investigações (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

A Frigon, por sua vez, aparece como destino de animais remetidos por Gonçalves via uma fazenda chamada Recanto, em Nova Mamoré, entre 2018 e 2019 – situada na borda do Parque Estadual de Guajará Mirim. Essa fazenda está registrada em uma base de dados do Incra, mas aparece como “cancelada” por “sobreposição parcial com Glebas Públicas devidamente certificadas”. 

A localização do imóvel registrada nos sistemas públicos coincide com o local apontado pelos policiais como a sede da Fazenda Cantão, no Parque Estadual de Guajará Mirim. O frigorífico não respondeu às tentativas de contato da reportagem.

Bitcoin e pirâmide financeira

Não são poucas as vezes em que as autoridades que investigam Hedy Carlos Soares consideram, nos diversos processos em que ele está envolvido, a hipótese de que o ex-juiz teria participado de esquemas de lavagem de dinheiro. Um exemplo seria o uso da ficha de pecuarista de outras pessoas para movimentar seu próprio rebanho, como no caso de Andréia Sinotti. “Evidencia o crime de falsidade ideológica e traz indícios de possível ocultação patrimonial, elemento caracterizador do crime de lavagem de capitais”, observa o MP em uma das peças da investigação.

Também aparecem entre as peças de investigação movimentações bancárias nas contas de pessoas ligadas ao grupo dito criminoso que não condizem com os rendimentos pessoais: Marcos da Cunha Coelho, por exemplo, é pedreiro de profissão, mas movimentou 77 milhões de reais entre 2019 e 2021, segundo apurou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). “O acervo probatório produzido nos autos não deixa dúvidas quanto à condição de “testa de ferro” de Marcos da Cunha Coelho”, conclui o relatório.

Segundo as investigações, Soares fez transações “expressivas” de dinheiro, que “aparentam não condizer com os rendimentos declarados pelo investigado à Receita Federal do Brasil”. “Vale registrar que o apuratório evidenciou ainda que o investigado Hedy Carlos Soares utiliza o nome de terceiros em seus negócios, o que além de demonstrar que seu patrimônio é maior do que o apresentado, indica possível ocultação de bens e lavagem de capitais, sem contar os investimentos realizados em criptoativos”, informa o MP na investigação.

Por fim, o MP levantou ainda repasses financeiros entre Soares e um casal que intermediava a venda de bitcoins – eles são investigados pela polícia por esquemas de pirâmides financeiras. Autoridades encontraram fotos do procedimento investigatório que corre em São Paulo salvas por Soares em suas contas virtuais. Segundo as autoridades, desde dezembro de 2019, o ex-juiz saberia do envolvimento das pessoas a quem repassou recursos “em esquemas fraudulentos”, conforme um relatório assinado pelo MP.

“Táticas de guerrilha”

A “sala de situação” do Batalhão de Polícia Ambiental de Rondônia dentro do Parque Estadual de Guajará Mirim fica num cantinho improvisado do refeitório na ampla casa de madeira com varanda recoberta de tela contra insetos que serve de base para as equipes de plantão. 

Foi nesse cantinho que o tenente-coronel Adenilson Silva Chagas colou um grande mapa na parede e sinalizou com marcadores coloridos os “alvos” da Operação Mapinguari, de desocupação do parque. “Walvernags” e “Baiano” (o apelido de Erivan da Silva Teixeira) são dois desses pontos assinalados no mapa em áreas onde estariam suas fazendas, vizinhas uma da outra.

Capitão Adenilson, do BPA-RO, mostra os alvos da Operação Mapinguari, que iniciou em agosto de 2023 e ainda mobiliza grande efetivo para evitar retorno de grileiros (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

O mapa foi preparado para acompanhar a desocupação do parque como se fosse uma guerra, com territórios a serem conquistados – no caso, reconquistados pelo estado depois de terem sido invadidos por grileiros. 

Estes, por sua vez, lançaram mão de táticas de “guerrilha”, nas palavras de Chagas, o comandante do Batalhão de Polícia Ambiental e também da Operação Mapinguari, de desocupação do parque. Ele relata eventos como árvores derrubadas propositalmente nas estradas de terra, que impediam a passagem das viaturas (em um caso, precisaram trabalhar a noite toda para serrar os troncos e abrir novamente passagem), emboscadas e ataques a tiros, inclusive com um servidor da Sedam ferido. Em uma ocasião, houve um levante popular para evitar a apreensão de uma máquina que ajudava os invasores a abrir estradas e derrubar a mata.

Sede da fazenda que policiais indicam ser de Walvernags Cotrin Gonçalves – ele, entretanto, não possui registro válido de propriedade nos sistemas públicos
Sede da fazenda que policiais indicam ser de Walvernags Cotrin Gonçalves – ele, entretanto, não possui registro válido de propriedade nos sistemas públicos (Foto: Alessandro Falco/Repórter Brasil)

Walvernags Cotrin Gonçalves seria, segundo as autoridades, um desses invasores insistentes. Ele teve a prisão preventiva decretada depois de ter sido detido em três oportunidades anteriores – em todas, liberado pelo delegado de plantão. “Não bastasse isto, Walvernags inicialmente destruiu e, após, com a inserção de gado, que utilizava parte dessa importantíssima Unidade de Conservação como pastagem, impediu ou ao menos dificultou a regeneração natural de aproximadamente 459,11 hectares de floresta”, registra uma decisão judicial negando sua soltura.

A área antes ocupada por Walvernags, segundo as autoridades, tem sinais visíveis do que seria sua atividade: uma cerca antes destruída pela polícia que ele teria reconstruído, parafusando plaquinhas de metal para unir as partes serradas pela autoridade, pasto plantado, e os bois, que até abril eram vigiados 24 horas por dia pelo batalhão de choque de Rondônia.

“Esta noite ouvimos gente chamando o gado para tentar levar e, uma semana atrás, um drone ficou sobrevoando a área para contar quantos bezerros haviam nascido”, explica o sargento Francinei Mendes, que estava de plantão na tarde em que a Repórter Brasil esteve por lá.

Em abril, o comandante Chagas conseguiu uma autorização judicial para retirar os bois da área. Mobilizou o efetivo, percorreu com o rebanho três quilômetros entre essa área do parque e o curral do invasor, onde estavam esperando os caminhões que levariam os animais para uma entidade assistencial, que os receberia como doação.

Os vaqueiros que conduziram o gado estavam com o rosto coberto para não serem identificados e foi preciso desligar o sistema de câmeras de propriedades do entorno “pois os mesmos temiam pela sua integridade física”, relata o boletim de ocorrência da ação. 

O temor tinha uma razão, segundo o documento: uma tentativa anterior de retirada dos animais havia sido feita ainda em 2023. “Na última hora, a empresa de transportes contratada recuou. O proprietário disse que havia recebido telefonemas com ameaças de morte, caso levasse embora os bois”, lamenta Chagas.

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