DE BRASÍLIA (DF) – Votação após votação, o Congresso tem imposto derrotas ao governo e afrouxado a proteção ambiental, mesmo em meio à catástrofe climática no Rio Grande do Sul. Na semana passada, foi a vez da derrubada dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a nova lei dos agrotóxicos, a chamada “Lei do Veneno”, somar-se a outras investidas recentes da bancada ruralista.
O resultado não pegou o governo de surpresa, como reconhecem parlamentares da base e da oposição, além de analistas ouvidos pela Repórter Brasil. A esperança era a de adiar a votação, mas a estratégia não deu certo.
O que surpreende parte da base governista é o fato de a bancada ruralista não demonstrar constrangimento em votar projetos de implicação direta sobre o meio ambiente, enquanto o território gaúcho sofre com uma enchente histórica. Essas pautas têm avançado até com apoio do Ministério da Agricultura, pasta identificada com os ruralistas e com atuação contrária à ala ambiental do governo.
“A realidade é que hoje temos esse quadro do Congresso, em que a maioria é negacionista em relação às mudanças climáticas”, critica o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Nilto Tatto (PT-SP). “Quem sabe isso tudo que esteja acontecendo no Rio Grande do Sul possa vir a sensibilizar esse Congresso”, complementa.
No caso da nova lei de agrotóxicos, Lula tinha vetado, em dezembro do ano passado, 17 pontos do projeto aprovado pelo Congresso no mês anterior. O argumento era de que as novas regras chanceladas por Câmara e Senado seriam inconstitucionais, “por colocarem em risco os direitos à vida e à saúde”.
Indiferente, a maior parte dos parlamentares votou para restaurar os artigos de interesse dos ruralistas. O principal deles altera o sistema de aprovação de agrotóxicos, tirando o poder do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Com a derrubada dos vetos, a palavra final na liberação de pesticidas passa a ficar inteiramente nas mãos do Mapa (Ministério da Agricultura).
Não foi a única derrota da semana passada. Na quarta-feira (8), a Câmara também aprovou um projeto de lei que retira a plantação de eucaliptos da lista de atividades potencialmente poluidoras e a dispensa de licenciamento ambiental. Na votação, o governo jogou a toalha e liberou a bancada para votar. Foram 309 votos a favor e 131 contrários ao projeto. Como já tinha passado pelo Senado em 2022, o texto segue para sanção presidencial.
Um terceiro e mais radical afrouxamento das regras ambientais só não foi adiante por um acaso do destino. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado havia pautado a votação de um projeto de lei que reduz as áreas protegidas da Amazônia. Pelo texto, imóveis rurais localizados em áreas de florestas na Amazônia Legal poderiam reduzir sua cobertura mínima de vegetação original dos atuais 80% para até 50%. Uma licença médica do relator, senador Márcio Bittar (União-AC), acabou levando ao adiamento da votação.
Ministério da Agricultura tem ‘aval’ para apoiar ruralistas
No Senado, a bancada ruralista conta com 50 dos 81 senadores. Já entre os 513 deputados da Câmara, 309 estão ligados à Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Em nota, a frente nega a intenção de fragilizar a legislação ambiental, diz que não incentiva desmatamento e que trabalha pelo “desenvolvimento sustentável do setor, amparado no Código Florestal Brasileiro”. É fato, porém, que o código florestal mencionado pela FPA tem sido uma das leis mais atacadas pela bancada ao longo dos anos.
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O governo, ao menos a sua ala ambiental, busca sensibilizar o Congresso sobre o assunto. “O governo sempre teve que fazer alianças com o Centro para poder governar, [hoje] não é diferente. Agora, o contexto é diferente: está ficando claro que os eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e graves”, afirma o secretário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente (MMA), André Lima.
A percepção de emergência é reforçada pelo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. “Para o enfrentamento da crise das mudanças climáticas é essencial que o parlamento brasileiro participe, evitando aprovar matérias contrárias ao meio ambiente e colocando na pauta propostas que, de fato, contribuam com a agenda da transição ecológica e da conservação ambiental”, disse Agostinho.
Na prática, porém, os projetos que atacam a gestão ambiental seguem a galope, e com apoio do Ministério da Agricultura. Nos bastidores de Brasília, é sabido que o ministro Carlos Fávaro, ex-diretor da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT), uma das entidades mais fortes do setor, tem aval para seguir com a pauta ruralista, com alguma discrição.
No caso dos agrotóxicos, por exemplo, o ministro do Mapa defendeu a aprovação integral do projeto aprovado pelo Congresso que concentra a aprovação de pesticidas na pasta comandada por ele, batendo de frente com os vetos de Lula.
A reportagem questionou o Ministério da Agricultura sobre o fato de ser apontado como um braço do governo que atua na direção contrária do que orienta o Palácio do Planalto e o Ministério do Meio Ambiente. A Pasta não se pronunciou sobre o assunto e também não comentou se acredita numa mudança de postura do Congresso, por conta da tragédia climática no Rio Grande do Sul.
‘Governo cede mais do que deveria aos ruralistas’
Para Márcio Santilli, presidente e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), a dificuldade do governo em tocar a negociação sobre a pauta ambiental no parlamento não está restrita à estrutura política que se construiu em Brasília, mas ao poder sobre o orçamento que deputados e senadores passaram a ter.
“O Congresso Nacional, desde o governo passado, apropriou-se de uma parcela elevada dos recursos da União, através de várias modalidades de emendas parlamentares. Com isso, o Executivo perdeu a capacidade de priorizar investimentos e de influenciar decisões do Congresso”, avalia Santilli.
Ele acredita, porém, que a tragédia em curso no Rio Grande do Sul deve ampliar, em alguma medida, a pressão sobre os congressistas, tanto dos grupos de interesse, quanto da opinião pública, principalmente neste ano de eleições municipais em todo o país.
Na avaliação de Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), o Congresso está tomado pelo lobby, especialmente o ligado ao agronegócio. Ele não acredita na possibilidade de sensibilização do parlamento, sem intensa pressão social. “Só assim para demonstrar a existência dos conflitos de interesse que assolam as decisões do Congresso”, afirma.
A rede de entidades ambientalistas Observatório do Clima elencou 25 projetos de lei e três emendas à Constituição, que tramitam atualmente no Congresso, com alta probabilidade de avanço imediato e impacto direto na legislação ambiental. A relação do “Pacote da Destruição”, como essas propostas têm sido chamadas, inclui todo tipo de flexibilização, como redução de áreas protegidas, autorização de garimpos, exploração de terras indígenas e quilombolas, e anistia para grilagem de terras.
“A articulação política do governo no Congresso Nacional está muito fraca. Nesse quadro, o Poder Executivo acaba cedendo mais do que deveria para a bancada ruralista, ou não se impondo como precisava fazer em defesa da pauta socioambiental”, analisa Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.
A população brasileira, segundo Araújo, compreende a gravidade da crise climática, que tem ficado cada vez mais explícita, como na grande seca da Amazônia no ano passado e na tragédia histórica em solo gaúcho. “Se os políticos continuarem com visão negacionista, e isso é muito frequente, sem fazer a relação entre flexibilizar a legislação ambiental e a piora da crise climática e de seus efeitos, terão problemas para se reeleger. O estrago vindo do parlamento necessita ficar claro”, comenta.
Para Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o momento deve ter algum efeito sobre deputados e senadores. “Quem perde muito com as mudanças climáticas são os setores econômicos e o agronegócio, que hoje estão debaixo d’água no Rio Grande do Sul. Ao querer favorecê-los com a flexibilização das leis ambientais, estão na realidade empurrando-os para o precipício”, avalia.
Questionada pela reportagem, a assessoria da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) afirmou que “se utilizar de uma tragédia com a do Rio Grande do Sul para confundir a opinião pública sobre o papel do setor agropecuário brasileiro é de um oportunismo e de uma fragilidade intelectual assustadores”.
A FPA declarou que o setor agropecuário está focado em levar ajuda humanitária aos afetados e na retomada das atividades de vários setores destruídos pela tragédia. “Não há espaço para polarizações e ideologias neste momento”, finaliza a nota.
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