UM GRUPO DE 50 TRABALHADORES em condições análogas à escravidão foi resgatado em uma área de desmatamento ilegal no sul do Amazonas. O resgate foi um dos maiores do ano – atrás apenas de uma ação que encontrou 54 pessoas em um garimpo em Maués, também no mesmo estado.
Os responsáveis pelo desmatamento instalaram em meio à floresta uma antena para acessar a internet através da Starlink – serviço de banda larga via satélite provido pela SpaceX, empresa fundada pelo bilionário Elon Musk.
“Hoje a Starlink é um dos maiores gargalos para as ações de fiscalização do Ibama e fonte rápida de solicitação de suprimentos, por parte dos garimpeiros e desmatadores, além de avisos de que a fiscalização está chegando”, comenta Jonathan Paixão dos Santos, agente ambiental do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que participou da operação.
A Repórter Brasil procurou a Starlink para saber se a empresa possui algum mecanismo de controle de venda dos equipamentos e uso do sinal de internet em atividades ilegais. A empresa não retornou até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
A fiscalização aconteceu na zona rural de Manicoré, dentro de um território tradicional de 15 comunidades ribeirinhas concedido por meio de uma CDRU (Concessão de Direito Real de Uso).
Os trabalhadores atuavam como operadores de motosserras e ajudantes na derrubada de 3,7 mil hectares de floresta. Este foi o maior desmatamento detectado pelo Ibama no Amazonas desde o começo do ano.
Eles estavam há mais de um mês em barracos de lona e sem acesso à água potável. Os resgatados cozinhavam, tomavam banho e bebiam a água de um igarapé próximo, que segundo o trabalhador João* era “avermelhada e tinha gosto de folhas podres”. Ele é um dos 50 resgatados na operação. Os trabalhadores atuavam sem equipamentos de segurança e um deles fraturou a clavícula após ser atingido por um galho de árvore.
Com 3,7 mil hectares desmatados desde 2022, a destruição avançava numa velocidade de 10 hectares por dia – só neste ano 1,3 mil hectares de floresta foram derrubados. “Nunca vi algo nessa proporção, do tamanho do desmatamento e da quantidade de trabalhadores. É [um processo] muito agressivo e tem que ter uma resposta do Estado”, afirma Magno Riga, auditor fiscal do Trabalho que coordenou a operação deflagrada no último dia 24.
“Não deram nenhum equipamento de proteção. O trabalho de derrubada é muito arriscado, são árvores caindo para todo lado”, conta João. Ele veio da cidade amazonense de Apuí para fazer o serviço. Experiente no desmatamento da floresta, ele se espantou com a quantidade de contratados: “com mais gente é mais arriscado, você trabalha perto do outro. Quando cai uma árvore ela pode derrubar outra na frente e causar um acidente, é perigoso demais”, disse.
Os trabalhadores já foram retirados do local e encaminhados para suas cidades de origem no Amazonas e em Rondônia. Lucinei Soares da Vitória foi identificado como o gerente responsável pela atividade, mas informou à Repórter Brasil, por meio de seu advogado, que não tem interesse em se manifestar.
As investigações seguem para apurar se existem outros responsáveis.
A operação foi coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em conjunto com o Ibama e contou com a participação da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Investimento milionário
Verbas salariais e rescisórias superam R$ 1 milhão a serem pagas para os empregados, segundo estimativa do MTE. Isso sem contar os gastos com logística e infraestrutura para o desmatamento, como motosserras, balsa, tratores e alimentação.
“É um investimento muito alto em uma atividade ilícita. São pessoas muito capitalizadas e que trabalham na lógica do investimento, então esperam um retorno”, explica Riga.
Mais R$ 31,8 milhões em multas foram lavrados pelo Ibama em nome de Lucinei. “O desmatamento foi avassalador. É a maior área de desmatamento conhecida no estado do Amazonas”, alerta Santos, do Ibama.
“O desmatamento é ilegal, não é possível contratar pessoas para desmatar uma terra que é protegida. Então, necessariamente são trabalhadores arregimentados de forma clandestina que ficam numa situação de total ausência de direitos”, explica Gabriela Menezes Zacareli, procuradora do MPT e coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do Amazonas.
Gado e grilagem
Mais de 12 motosserras foram destruídas no local do alojamento, onde também foram encontrados toneis de combustível, freezer e gerador. “Tem mais de 30 motosserras [dentro da mata] que não conseguimos acessar”, ressalta Santos, do Ibama.
Os operadores de motosserras foram orientados a deixar “tudo bem aparado para fazer pastagem”, conta João. Essa modalidade de desmatamento é conhecida como “corte raso”, um método que derruba a maioria ou totalidade das árvores no caminho. “Querem abrir o máximo que puder para fazer a grilagem e num futuro próximo colocar gado”, alerta o fiscal.
Em março, ribeirinhos avistaram uma balsa com quatro tratores e escavadeiras subindo o rio Manicoré, segundo uma reportagem da Amazônia Real. Desde 2022 eles denunciam o avanço das derrubadas na região, que vem se consolidando como uma “nova frente de desmatamento”, avalia o fiscal do Ibama.
O desmatamento já destruiu castanhais e açaizais de ribeirinhos que vivem nas comunidades na beira do rio Manicoré, concedidas em 2022 por meio de uma CDRU (Concessão de Direito Real de Uso).
“A floresta tem copaíba, cipó, palha e caça que as pessoas tiram para seu sustento. Precisamos da floresta em pé. Se for derrubada, o que vai acontecer? Como as futuras gerações vão sobreviver?”, alerta uma liderança comunitária que preferiu não se identificar.
Água barrenta
João conta que a viagem de Apuí até Manicoré foi difícil. Atraído com a promessa de ganhar até R$ 600 em uma diária como operador de motosserra, ele encarou o trajeto pela estrada e rio até a frente de desmatamento.
Na última etapa por água, a mais sofrida, ele e mais 26 pessoas viajaram por 14 horas pelo rio Manicoré em uma embarcação com capacidade para apenas 15: “tinha gente dormindo no teto do barco”, lembra.
Da beira do rio, os trabalhadores tinham que percorrer oito quilômetros a pé ou de trator até o alojamento. Chegando lá, João foi informado que a diária de trabalho seria reduzida e o valor da motosserra – cerca de R$ 3 mil – descontado do pagamento final. Isso só não aconteceu porque o equipamento foi destruído pelo Ibama.
Nos primeiros dias o igarapé era límpido, mas à medida que o desmatamento avançava em direção às nascentes, a água se tornou barrenta e “as pessoas começaram a adoecer da barriga”, conta o trabalhador.
Além dos empregados, o alojamento comportava mulheres e crianças que acompanhavam seus familiares. Entre os resgatados estavam três mulheres, que trabalhavam como cozinheiras e um adolescentes de 16 anos. Ele era filho de um dos empregados e atuava como ajudante na operação da motosserra, contrariando um decreto que proíbe o trabalho de menores na extração de madeira, por ser considerada uma atividade prejudicial à saúde e à segurança.
Sul do Amazonas sob pressão
O desmatamento também pressiona as comunidades ribeirinhas que vivem no município de Humaitá, uma viagem de 1500 quilômetros de Manicoré pelo rio Madeira.
Ali, o gado e a extração de madeira impulsionam a derrubada da floresta e a invasão de assentamentos da agricultura familiar. O desmatamento já impacta uma centena de unidades de conservação e terras indígenas na área de influência da BR-319, estrada que liga a capital amazonense Manaus a Porto Velho (RO). Só em fevereiro deste ano, 700 hectares foram desmatados nos municípios nas imediações da estrada.
“Nosso castanhal acabou tudo. Onde a gente andava tinha água e topava bicho de todo jeito. Hoje, nós não conseguimos mais achar uma caça para matar, para comer”, lamenta Valdino Mota, agricultor que vive na comunidade Santa Rita, também conhecida como Pirapitinga, uma das localidades que enfrenta o avanço do desmatamento na região.
Pressionados pela perda de território e sem opção de trabalho, alguns ribeirinhos já atuam no desmatamento de áreas para abertura de pasto. A Repórter Brasil foi até a região e conversou com duas pessoas que trabalharam na derrubada da floresta e ambos relataram péssimas condições de alojamento, alimentação e segurança durante a empreitada.
Sem a floresta, roça, açaí ou castanha, as comunidades temem o futuro. “Se não for dado um basta neles [invasores] vai acabar, vai voltar o tempo escravo”, contou um ribeirinho, sob condição de anonimato.
*Nome fictício para preservar a identidade do trabalhador
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