EMBORA NÃO SEJA O ESTADO com a maior população indígena do país, o Mato Grosso do Sul lidera com folga as estatísticas quando o assunto é flagrante de exploração de trabalho escravo de indígenas. Desde 2013, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, 363 indígenas foram resgatados desse tipo de situação em todo o Brasil. Quase 60% das vítimas, 205, eram do Mato Grosso do Sul.
O estado é conhecido por complexos problemas fundiários, atraso nas demarcações de Terras Indígenas e pelo confinamento e mistura de etnias em áreas pequenas, violentas e muitas vezes desconectadas de suas tradições.
Segundo procuradores e um auditor entrevistado pela reportagem, as ações de fiscalização costumam flagrar indígenas alojados em barracos precários ou em meio a matas, alojamentos sem água potável ou instalação sanitária, falta de documentação, atividades laborais realizadas sem equipamentos básicos de proteção e transporte inseguro, entre outras violações.
“Há muita injustiça. As condições de trabalho são precárias, eles precisam se embrenhar na mata em busca de alimentos, pescar ou caçar para conseguirem comer”, afirma Zélia Maria Batista, missionária e coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do Mato Grosso do Sul.
Os espaços mais frequentes de exploração do trabalho indígena estão no campo, principalmente em canaviais, relatam os procuradores. Os indígenas trabalham ainda na colheita da mandioca, em plantações de eucalipto e nos pastos.
“Estamos diante de um trabalhador submetido às piores condições possíveis. E, desde a colonização, vemos mais do mesmo”, denuncia Paulo Douglas Almeida de Moraes, procurador do trabalho e coordenador regional de erradicação do trabalho escravo no Mato Grosso do Sul.
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O problema não ocorre apenas dentro dos limites geográficos do estado. Muitos sul-mato-grossenses, de diferentes etnias, também estão indo colher maçã no Rio Grande do Sul, em condições “extenuantes”, conforme já alertou o Cimi.
Em dezembro de 2023, em um dos casos mais recentes, sete indígenas, entre eles uma criança de 11 anos e um adolescente de 17, foram encontrados em situação análoga à da escravidão em uma fazenda em Dourados, no centro-sul do estado, segunda cidade mais populosa do Mato Grosso do Sul. O empregador era Virgílio Mettifogo, um dos réus do chamado massacre de Caarapó, de 2016, quando um indígena foi morto e outros seis feridos.
“O Mato Grosso do Sul é um dos centros de fomento do agronegócio, que tem no seu perfil histórico a prática de escravizar, ou de colocar em trabalhos análogos à escravidão, seus trabalhadores”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Exploração histórica
Dos quase 1,7 milhão de indígenas do Brasil, segundo o Censo de 2022 do IBGE, 6,8% moram no Mato Grosso do Sul, o que faz do estado o terceiro no ranking dessa população. O maior contingente de indígenas está no Amazonas, 491 mil indivíduos. O levantamento oficial informa ainda que 1 milhão de indígenas vivem fora de terras demarcadas.
A política para indígenas adotada pelo estado brasileiro na primeira metade do século 20 teve uma particularidade no Mato Grosso do Sul. As autoridades concentraram grandes contingentes de diferentes etnias em algumas poucas áreas selecionadas sem conexões com as tradições culturais dos alojados. Demarcadas, essas áreas são hoje consideradas pequenas, excessivamente povoadas e repletas de problemas sociais. Não por acaso, são popularmente conhecidas como confinamentos.
Os que vivem em aldeias do Mato Grosso do Sul esbarram na falta de espaço para atividades agrícolas e, como costuma ser frequentemente reportado pelo Cimi, taxas alarmantes de violência. Os que deixam essas áreas enfrentam desafios para a inserção no mercado de trabalho, entre outras razões, pela baixa escolaridade e racismo. Muitos caem na miséria, não são raros os casos de alcoolismo e há os que, sem perspectivas, perambulam por áreas urbanas de municípios como Dourados. Outra cena comum no estado são acampamentos de lona com famílias indígenas inteiras vivendo na estreita faixa entre o acostamento de rodovias e as cercas de fazendas.
“Nas aldeias não há emprego, nem apoio para os indígenas sustentarem suas famílias. Eles precisam buscar o sustento em empresas e outros estados. Passam meses fora, as mulheres ficam sozinhas com os filhos, e ganham muito pouco”, afirma Eliseu Lopes Kaiowá, líder da etnia indígena Guarani-Kaiowá, a mais numerosa do Mato Grosso do Sul. “Os governos precisam criar oportunidades de emprego dentro das aldeias e nas cidades”, ele diz.
O elevado número de guaranis-kaiowás no estado e o contexto de pobreza ao qual estão submetidos também explicam o alto número de resgatados de origem sul-mato-grossenses. O preconceito, ressalta Zélia Batista, é outro aspecto danoso que favorece a exploração. “Em Dourados, não vemos indígenas trabalhando no setor de serviços, como vendedores, por exemplo. Eles trabalham como coletores, nos caminhões de lixo”, diz a representante do Cimi.
Parados no tempo
O auditor-fiscal do trabalho Antônio Maria Parron atua no Mato Grosso do Sul desde 1995. Ele afirma que, em quase 30 anos, não houve melhora nas condições de trabalho dos indígenas.
Quando começou, lembra ele, um dos aspectos que lhe chamavam a atenção era o discurso de empregadores para justificar a falta de registro nas contratações de indígenas. “Eles diziam que a comunidade indígena não queria registro para não perder sua identidade cultural. Hoje, trinta anos depois, alguns empregadores ainda querem utilizar essa mesma justificativa: ‘Não tem documento, como eu vou registrar?’”, explica.
A falta de documentação é uma das dificuldades no resgate dos trabalhadores. Para receber os valores devidos, os indígenas precisam ter documentação. Parron procura orientar cada resgatado neste processo. “Eles têm direito a ter direitos, nós precisamos auxiliar nisso”, diz. “Esses trabalhadores vivem em situação de pobreza, têm baixa escolaridade e não têm documentos: é uma porta aberta para a exploração.”
Cabeçantes agenciam indígenas
O aldeamento dos indígenas modificou a organização das comunidades. Nas relações entre empregadores e aldeias surgiu a figura do cabeçante, uma espécie de responsável pelas negociações trabalhistas. “Eles acabam sendo explorados pelos próprios indígenas, como os cabeçantes, que permitem que esses empregadores entrem nas aldeias, levem os indígenas para outros locais sem dizer ao certo as condições”, explica o procurador Jeferson Pereira, coordenador administrativo do Ministério Público do Trabalho de Dourados.
O cabeçante, alerta Moraes, recebe uma comissão prévia pelo agenciamento dos indígenas. Também cabe a ele acolher as denúncias sobre as más condições enfrentadas nos campos de trabalho, o que dificulta a comunicação da exploração às autoridades.
Juventude sem oportunidades
Os indígenas do Mato Grosso do Sul resgatados são, em média, mais jovens do que o observado em flagrantes desse tipo. A maioria tem entre 18 e 24 anos, ante a faixa de 30 a 39 anos no demais casos.
Para Moraes, essa característica está relacionada ao caráter extenuante dos trabalhos aos quais os indígenas são submetidos. “As atividades são extremamente fatigantes. O cabeçante faz essa seleção e os mais jovens são mais demandados porque os mais velhos sequer teriam condições físicas para esse tipo de trabalho”, explica.
A falta de oportunidades e de apoio para a juventude indígena também colaboram para essa exploração, na opinião de Eliseu Kaiowá. “Muitas famílias não têm como comprar as roupas, os materiais e, muitas vezes, os jovens abandonam os estudos e têm que sair para trabalhar.”
Essa falta de escolaridade dificulta a inserção dos indígenas no mercado e os expõe à exploração, conforme ratificam os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), informados pelo Ministério do Trabalho e Emprego à Repórter Brasil.
Na Rais de 2022, os indígenas apresentaram a maior taxa de analfabetismo entre todas as raças, considerando apenas quem tinha ocupação formal. Três em cada cem eram analfabetos. Naquele ano, entre 52,7 milhões de postos de trabalho formais, 90,3 mil foram ocupados por indígenas.
“É preciso começar pela alfabetização, com educação de qualidade, para depois passar para a qualificação profissional. As comunidades indígenas estão há muitos anos alijadas desses acessos à educação e à melhoria das condições sociais”, ressalta o procurador Pereira.
Demarcar e respeitar
A questão da terra, é consenso entre os seis especialistas ouvidos para esta reportagem, é a causa da exploração e também poderia ser sua solução. “A população indígena cresceu e a terra destinada para eles é pouca, além de não ser o território ancestral do qual eles foram expulsos pela colonização. Eles estão confinados em reservas, onde há superlotação”, analisa Batista.
Relatório do Instituto Socioambiental publicado em 2002 já mostrava a perda gradativa das terras dos guarani-kaiowá ao longo dos anos. Naquela época, a população guarani do Mato Grosso do Sul estava distribuída em 22 terras indígenas e era estimada em 25 mil pessoas.
“Precisamos demarcar as terras indígenas como política para dar autonomia econômica e cultural aos povos, que deixariam de ser submissos”, pede Dinamam Tuxá, da Apib.
Eliseu Kaiowá completa: é preciso demarcar e oferecer condições para que os indígenas possam viver da terra. “Para produzir, nós precisamos de apoio, de políticas para a sustentabilidade e para o fortalecimento da agricultura familiar”.
“A forma como eles lidam com a terra é muito diferente. Não é exploração. É convivência”, diz o procurador Moraes. “A terra é a mãe”, finaliza Batista.
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