DE ALMAS (TO) – Domingos Crisóstomo Fernandes, 39, vive sozinho em uma casa de taipa, sem energia elétrica, que acomoda apenas uma pequena pia, um fogão e uma cama de solteiro. Mas o que perturba mesmo o agricultor são os barulhos de explosão nas redondezas. “Antes, tinha hora para acontecer. Agora, é de surpresa, até de noite”, queixa-se. A poucos quilômetros dali, Benvinda Fernandes Cardoso, 54, também anda sobressaltada. “Estamos próximos demais dela. Se romper, não temos saída: vai ser lama descendo e a gente subindo”.
Domingos e Benvinda compartilham o sobrenome porque têm a mesma origem familiar, a dos quilombolas que vivem na comunidade Baião, no município de Almas, no sudeste do Tocantins. Os dois dividem a angústia porque têm o mesmo vizinho: a companhia Aura Minerals, que desde o ano passado explora ouro na região.
Domingos se incomoda com os estrondos de explosão das rochas, inerentes à atividade minerária. Já Benvinda teme pelo rompimento da barragem construída para armazenar os rejeitos da operação. “Eles falam que não tem perigo, mas nós nunca nem vimos a barragem”, diz a agricultora.
No fim do ano passado, a Defensoria Pública do Tocantins, em conjunto com a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO), entrou com uma Ação Civil Pública (ACP) pedindo a suspensão das atividades da Aura Minerals em Almas, a 300 quilômetros da capital Palmas.
O processo foi movido não só contra a empresa, mas também contra o governo do Tocantins e o Naturatins (Instituto Natureza do Tocantins), órgão estadual responsável pela emissão de licenças ambientais.
A ação cita a falta de consulta prévia às comunidades quilombolas diretamente afetadas, como determina a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário, além de supostas falhas no processo de licenciamento ambiental da mina. “Nunca ninguém nos procurou para falar sobre rota de fuga, programa de segurança, nem nada”, diz Benvinda.
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Licenciamento ambiental da mina é alvo de críticas
A barragem da Aura Minerals em Almas tem duas classificações na ANM (Agência Nacional de Mineração): “baixo risco” e “baixo dano potencial associado”. A primeira diz respeito à probabilidade de um acidente, enquanto a segunda calcula o impacto em caso de rompimento ou mau funcionamento. As categorizações são feitas pela ANM com base em relatórios realizados por auditorias contratadas pelas próprias mineradoras, e podem mudar de acordo com o envio de novos dados.
No entanto, moradores ouvidos pela Repórter Brasil afirmam que essas informações nunca foram repassadas às comunidades quilombolas que vivem no entorno da mina, localizada a cerca de 300 quilômetros de Palmas.
Além disso, de acordo com a ação movida pela Defensoria Pública e pela COEQTO, a mineradora não teria apresentado todos os documentos necessários à obtenção da licença ambiental. “Apuramos que havia irregularidades no estudo de impacto ambiental que foi realizado em 2011”, explica o defensor público Arthur Pádua.
Segundo a Defensoria, a Aura apresentou um estudo realizado há mais de uma década pela mineradora Vale que, na época, respondia pelos direitos minerários da área. Pádua argumenta que o documento está desatualizado e, por essa razão, deveria ser refeito.
Em maio de 2021, a Justiça chegou a suspender a autorização de operação da Aura, após um pedido do próprio governo do Tocantins que, por meio da PGE (Procuradoria-Geral do Estado), alegou possíveis danos ambientais causados pelo empreendimento. A proibição saiu na véspera da data prevista para o lançamento da pedra fundamental da companhia, que acabou cancelando o evento.
No início de dezembro do mesmo ano, o então governador em exercício, Wanderlei Barbosa (Republicanos), entregou a licença ambiental em uma cerimônia pública, apesar de decisão judicial em contrário. Durante o evento, um porta-voz da empresa informou ao G1 que “houve um entendimento comum” entre a Aura e o governo estadual para que o projeto saísse do papel.
Para o defensor público Arthur Pádua, o imbróglio jurídico levanta dúvidas. “Houve um atropelo”, diz. “O estado entrou com uma ação contra a Aura para suspender [a operação] e depois desistiu do processo”.
Defensoria diz que estudo de impacto ambiental está obsoleto e incompleto
A advogada Bruna Balbi, da organização Terra de Direitos, que assessora comunidades quilombolas, afirma que a lei não determina um prazo de validade para estudos de impacto ambiental. “Mas, se formos considerar o próprio objetivo do estudo, que serve para subsidiar o processo de licença ambiental, e pelo princípio da razoabilidade, ele tem que ser realizado próximo às datas de licenciamento”, ressalva. “O meio ambiente pode ter sido modificado, e a própria legislação pode ter mudado no período”, complementa Balbi.
Para a Defensoria Pública do estado, o estudo não está somente obsoleto, como também está incompleto. Isso porque três outras comunidades quilombolas, além da do Baião, podem ser atingidas pela mina, mas não foram citadas.
A lei determina a necessidade de estudos específicos para o licenciamento de empreendimentos em locais com potencial de impacto em terras quilombolas. No caso, trata-se do Estudo de Componente Quilombola (ECQ) e do Projeto Básico Ambiental Quilombola (PABQ) – ambos devem ser analisados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “A licença-prévia saiu sem que fosse feito o estudo de componente quilombola”, diz Pádua. “E isso é vedado pela OIT.”
A Convenção 169 OIT, da qual o Brasil é signatário, recomenda que seja realizada escuta prévia, livre e informada das comunidades tradicionais sobre medidas administrativas e legislativas com potencial para afetá-las diretamente. De acordo com a ação da Defensoria e com moradores ouvidos pela Repórter Brasil, essa consulta não ocorreu.
À Repórter Brasil, a Aura Minerals afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “apresentou à Justiça manifestação formal referente à ação civil movida pela Defensoria Pública do Tocantins, reiterando seu compromisso com uma atuação ética e transparente”. O texto diz ainda que a companhia “atua em conformidade com a legislação brasileira, e dentro dos mais rigorosos padrões éticos e de boas práticas de mercado”.
Em nota, o Naturatins, órgão estadual responsável pelo acompanhamento do licenciamento ambiental, informou que “a análise processual foi conduzida com base nas informações e documentos apresentados no processo, de acordo com a lista de documentos e termo de referência exigidos para obtenção do licenciamento ambiental, visando a regularização ambiental da atividade”. Leia todas as manifestações na íntegra.
‘Negligência escalonada’
Enquanto o processo corre na comarca de Dianópolis (TO), município vizinho a Almas, a comunidade do Baião segue esperando que outro processo – o de certificação do seu território, iniciado em 2010 – seja concluído. “Nós somos um número de protocolo no Incra”, critica Maryellen Crisóstomo, nascida e criada na comunidade Baião e hoje coordenadora da COEQTO. “E essa morosidade nos deixa muito expostos”.
De acordo com o Incra, existem hoje 33 processos de regularização de territórios quilombolas abertos no Tocantins. Desses, apenas 12 tiveram alguma movimentação. Baião, Lajeado, São Joaquim e Poço Dantas não estão contemplados nessa uma dúzia de processos. “A gente integra uma fila de mais de 1.800 comunidades em todo o Brasil, sem a perspectiva de ser demarcada, infelizmente”, afirma Maryellen. De acordo com o censo de 2022, 12.881 pessoas se autodeclararam quilombolas no Tocantins, pouco menos de 1% da população total do estado.
Para Maryellen, há uma “negligência escalonada” em relação à comunidade, que não é ouvida nem pelos governos municipal e estadual, nem pela mineradora.
“Nós já estávamos aqui quando a mineradora chegou, mas não fomos consultados nem por ela, nem pelo governo”, afirma Eliene Fernandes Crisóstomo de Almeida, 51, presidente da Associação de Remanescentes Quilombolas. “O que fizeram com a gente foi uma falta de respeito. Não temos o território demarcado, mas isso é culpa do estado, não é culpa nossa”.
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