RB Investiga a Ferrogrão e a soja: lavouras ‘são’ o 6º maior estado do Brasil

Projeto da Ferrogrão prevê construir 933 km de trilhos entre a zona de produção de soja e milho do ‘Nortão’ do Mato Grosso até o distrito de Miritituba, em Itaituba, no Pará, às margens do rio Tapajós, onde há dezenas de portos de exportação
Por Diego Junqueira
 20/06/2024
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A ÁREA PLANTADA DE SOJA no Brasil vai bater novo recorde com a safra 2023/2024, com 45,7 milhões de hectares, segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Se fosse um estado, essas lavouras seriam o sexto maior território do Brasil – atrás apenas de Amazonas, Pará, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia.

Até o começo da década de 1980, o Brasil plantava mais  arroz e feijão somados do que soja, mostra a série histórica da Conab. Mas isso se inverteu na década seguinte, até o grão alcançar o posto de principal commodity agrícola brasileira neste século.

Em volume, a soja é o produto mais exportado do país, com 101,8 milhões de toneladas exportadas no ano passado. Isso rendeu US$ 53,2 bilhões, ou 15,7% das exportações brasileiras de 2023.

E é no coração da soja que se prevê um dos projetos mais importantes de infraestrutura do país, que deve melhorar ainda mais os números do agronegócio. Contudo, é visto como ameaça por povos e comunidades tradicionais que vivem ao longo do trajeto e não fazem parte da economia da soja.

O RB Investiga desta semana analisa os pontos positivos e negativos  do projeto da Ferrogrão.

A chamada “Ferrovia da Soja” é um projeto elaborado há uma década pelas principais empresas exportadoras de grãos e que virou prioridade nos governos de Michel Temer (MDB), Jair Bolsonaro (PL) e, agora, Lula (PT).

A ideia é construir 933 km de trilhos entre Sinop, no “nortão” do Mato Grosso, região que mais produz soja no país, até o distrito de Miritituba, em Itaituba, no Pará, onde os grãos são embarcados para exportação.

Ponto de partida da ferrovia, apenas o Mato Grosso responde sozinho por 26,6% da soja produzida no país. Nos últimos 15 anos, as lavouras de soja no estado praticamente dobraram, passando de 6,2 milhões de hectares na safra 2009/2010, para 12,1 milhões de hectares na safra atual.

O traçado da ferrovia deverá correr paralelo à BR-163, rodovia também conhecida como Cuiabá-Santarém e que corta um bom pedaço do Cerrado e da floresta amazônica.

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é uma das grandes defensoras do projeto, argumentando que a Ferrogrão vai reduzir o preço do frete (tornando o produto brasileiro mais competitivo no cenário internacional), reduzir o número de acidentes de trânsito (já que uma locomotiva é capaz de transportar carga equivalente a 400 caminhões) e reduzir as emissões de dióxido de carbono na atmosfera.

“A Ferrogrão se instala lindeira à BR-163, na mesma faixa de domínio. Então, não haverá desmatamento. Não há nenhuma terra indígena muito próxima do traçado”, disse Elisangela Pereira Lopes, assessora técnica da CNA, durante audiência no Senado no ano passado.

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Resistência de indígenas e agricultores familiares

Diferentemente do agro, as comunidades afetadas pelo projeto temem que os trilhos tragam mais prejuízos para suas vidas, da mesma forma que ocorreu com o asfaltamento da BR-163, iniciada em 2012.

Agricultores familiares e povos indígenas contam que a facilidade para escoar a soja trazida pela estrada deixou de lado projetos de mitigação de impactos socioambientais, levando a um processo de especulação fundiária, disputa por terras e uso intensivo de agrotóxicos que prejudicam seus modos de vida.

“A plantação de soja vai aumentar. Isso a gente já está sentindo. Não é que vai trazer depois da construção da Ferrogrão. A gente já está vendo que o impacto já está grande”, diz a liderança kayapó Doto Tatak-Ire, do Instituto Kabu.

“Depois do asfaltamento da BR 163, foi um foco grande de vendas de terras, muito especulador para comprar terra, e com isso saíram muitos agricultores familiares das margens da BR. Também veio a questão da grilagem de terra, chegando pra pecuária e pra plantar soja”, conta a agricultora Francisca Barroso, da Rede Agroecológica do Trairão (PA).

“A gente exportava muito para a Holanda, mas hoje é muito veneno [usado na região em razão da soja]. O pequeno agricultor fica desmotivado de estar plantando e estar perdendo a produção”, continua.

Nas margens do rio Tapajós fica o distrito de Miritituba, em Itaituba, no Pará. Região abriga vários portos do Arco Norte (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Outro efeito colateral do avanço da soja seria o agravamento do desmatamento no Cerrado, bioma mais devastado do país em 2023. 

“Mais de 50% do Cerrado já foi desmatado. Antigamente tinha uma relação muito forte com a pecuária. Mas nos últimos anos, a razão principal é a soja”, explica Valéria Santos, coordenadora nacional da CPT e membro da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

“A soja está invadindo os  territórios de comunidades tradicionais, especialmente áreas de quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco, de fundo e fecho de pasto, comunidades tradicionais que ainda não têm seus territórios reconhecidos”, continua.

Ela diz que o desmatamento vem atingindo principalmente áreas de Cerrado ainda intactas. “Há um processo de invasão dessas terras, que são principalmente as áreas comuns das chapadas. São áreas públicas da União que não foram destinadas, mas são ocupadas por diversas comunidades, mas têm sido griladas e estão envolvidas hoje em conflitos de terras”, finaliza.

Sobre o RB Investiga

Podcast mensal da Rádio Batente, o programa está disponível no canal do Youtube da Repórter Brasil e nas principais plataformas de áudio. 

Ficha técnica 

Pesquisa, roteiro e apresentação: Diego Junqueira

Fotografia e edição de vídeo: Alex Duvidovich

Assistência de edição e de fotografia: Bruna Damin

Tratamento de roteiro: Carlos Juliano Barros

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