RB Investiga: tem trabalho escravo no seu cafezinho?

Em 2023, o cultivo de café foi a atividade econômica com o maior número de resgatados de condições análogas à escravidão no Brasil. O quinto episódio do podcast da Repórter Brasil ouve especialistas para discutir as causas e quais as ações devem ser tomadas para erradicar o problema no setor
Por Poliana Dallabrida
 26/07/2024
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ALÉM DE MAIOR produtor e exportador mundial, o setor cafeeiro nacional também é destaque em outro ranking. Em 2023, o cultivo de café foi a atividade econômica com o maior número de trabalhadores resgatados de condiçõas análogas à escravidão no Brasil. No período, foram registradas 316 vítimas, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego.

Descontos ilegais nos salários, não fornecimento de água potável e equipamentos de proteção e oferta de alojamentos sem condições de uso são algumas das características comumente encontradas nos flagrantes no setor cafeeiro. “Não precisa ninguém ser encontrado pela fiscalização ou pelo Ministério Público amarrado a um tronco e sendo açoitado. Essa é uma visão estereotipada do que é o trabalho escravo contemporâneo”, explica Marcelo Campos, auditor fiscal e coordenador de equipes de fiscalização trabalhista.

“O trabalho escravo é a precarização levada ao caso mais extremo. Não é um vilão que sujeita trabalhadores a condições de trabalho análogas à escravidão. É como qualquer outro empregador que foi cada vez mais progredindo na precarização do trabalho”, complementa Gustavo Ferroni, Coordenador Justiça Rural e Desenvolvimento na organização Oxfam Brasil. 

O quinto episódio do RB Investiga discute as causas do trabalho escravo no setor cafeeiro e quais ações devem ser tomadas para erradicar o problema no Brasil.

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Conceito é contestado por setor patronal

O crime de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” é descrito no artigo 149 do Código Penal brasileiro, que lista quatro elementos que caracterizam a prática: a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho e à servidão por dívida. 

O conceito é frequentemente contestado por representantes do agronegócio, que acusam a fiscalização trabalhista de “causar pânico” entre produtores rurais. Além do setor patronal, o próprio poder Judiciário é resistente em considerar as condições descritas nos relatórios de fiscalização como provas suficientes para condenar alguém pela submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. 

Um estudo produzido pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais analisou ações penais referentes ao artigo 149 ajuizadas entre 2008 e 2019 contra 2.679 acusados. Desse total, 1.752 foram julgados e apenas 112 tiveram trânsito em julgado, ou seja, foram efetivamente condenados. Para alguns magistrados, as condições encontradas no campo são compatíveis com a “realidade do trabalho no interior”, como mostrou reportagem publicada pela Repórter Brasil.

“A legislação trabalhista brasileira não é uma novidade nem para trabalhadores e nem para empregadores. Todo mundo sabe que tem que registrar, que recolher FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço], que precisa garantir salário adequado, alojamento. Isso é do senso comum”, avalia Campos. “O que ocorre é que há no Brasil uma cultura patronal de não reconhecimento dos direitos laborais, cultura essa herdeira da escravidão dos períodos colonial e imperial”, complementa.

Falta de transparência e rastreabilidade

A cadeia produtiva do café também é pouco transparente e pouco rastreável. De uma fazenda, o grão colhido é misturado com o café de milhares de outros produtores. Na maioria das vezes, nem as próprias compradoras sabem dizer, ao certo, de qual propriedade vem o café que elas estão usando. 

“Se elas não sabem, é porque escolheram não saber, porque tecnologia e capacidade de gestão o setor tem”, afirma Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil. “Você nunca teve esses atores econômicos buscando, de fato, garantir a rastreabilidade da origem do café”.

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Para Ferroni, as empresas são capazes de atingir a rastreabilidade caso optem por diminuir o número de intermediários entre as fazendas de café e suas operações industriais. Em outros setores, compara, isso já é realidade. Um exemplo é a produção e comércio de soja não-transgênica, que precisa ter garantida a rastreabilidade e separação da soja convencional.

Limitações dos selos de certificações

Certificações socioambientais buscam garantir a rastreabilidade e padrões mínimos, tanto de condições de trabalho quanto de processos produtivos. As primeiras certificações no setor cafeeiro foram implementadas ainda nos anos 1980, com a crescente preocupação com a produção de cafés orgânicos, garantia de comércio justo e produção sustentável, sem o desmatamento de florestas nativas.

Trabalhador separa folhas dos grãos de café em fazenda no Sul de Minas Gerais (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)

Apesar da adesão a programas de certificação ser de caráter voluntário, alguns mercados, especialmente na Europa, só são acessados por produtores de café que possuem selos de boas práticas. 

“A certificação é um mecanismo de mercado para sinalizar uma coisa para os clientes, para os compradores ou para o consumidor final. Ela não é necessariamente pensada para beneficiar o trabalhador”, afirma Ferroni. “Ela foca no processo de gestão da fazenda. Supõe-se que essas medidas ajudam a diminuir o risco, mas não tem garantia que a propriedade estará com certeza livre de trabalho escravo”. 

:: Leia mais: Produtores da maior exportadora de café do Brasil entram na ‘lista suja’ do trabalho escravo ::

Para o coordenador de Justiça Rural da Oxfam, as auditorias contratadas para avaliar o cumprimento dos critérios das certificações possuem limitações, como a falta de diálogo com organizações locais, como sindicatos de trabalhadores rurais, e a realização de entrevistas com trabalhadores no ambiente da fazenda, o que acaba inibindo a apresentação de queixas. 

“O problema no setor é tão sistêmico que eu não confio em nenhuma marca de café e em nenhuma certificação”, comenta Ferroni. “Sem uma grande mudança na atitude do setor como um todo, não dá para confiar no café”.

Mudança de atitude do setor

A erradicação do trabalho escravo no setor cafeeiro deve incluir ações que se concentrem em combater as raízes do problema, avaliam os especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

Para Ferroni, a informalidade, a falta de negociação coletiva e o isolamento do trabalhador dentro da fazenda são facilitadores da ocorrência de trabalho escravo. “Eu digo muito para as empresas: não basta ter tolerância zero para o trabalho escravo, precisa ter tolerância zero com a informalidade, com o isolamento do trabalhador dentro da fazenda”.

Marcelo Campos avalia que uma medida simples seria a solicitação, por parte dos compradores regionais, como cooperativas de produtores, dos contratos formais de trabalho dos trabalhadores que colheram o grão comercializado. “Já é uma porta de entrada para garantir direitos. E é uma coisa simples que a cooperativa poderia fazer”, avalia.

Sobre o RB Investiga

Podcast mensal da Rádio Batente, o programa está disponível no canal do Youtube da Repórter Brasil e nas principais plataformas de áudio. 

Ficha técnica 

Pesquisa, roteiro e apresentação: Poliana Dallabrida

Fotografia e edição de vídeo: Alex Duvidovich

Assistência de edição e de fotografia: Bruna Damin

Tratamento de roteiro: Carlos Juliano Barros

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