“DEU UM ESTOURO alto e todo mundo começou a gritar, correr, tinha gente caindo em cima das cadeiras, foi uma correria só. E aquele cheiro forte, entrando goela adentro” – é assim que João*, que até o ano de 2022 trabalhava no frigorífico da JBS em Pimenta Bueno, Rondônia, se refere a um vazamento de amônia que deixou ao menos 25 funcionários intoxicados em fevereiro de 2021. “Foi a pior experiência da minha vida. Eu morri e ressuscitei”, conta, lembrando como sua garganta foi fechando no trajeto entre o seu posto de trabalho e a área externa da fábrica – e como desmaiou e só acordou, horas depois, no hospital.
A amônia é um gás tóxico usado para refrigerar as carnes nos frigoríficos. A intoxicação provocada pela substância pode causar dificuldades respiratórias, queimaduras na mucosa do nariz, faringe e laringe, dor no peito, edemas no pulmão, náusea, vômitos e inchaço na boca. Também pode levar à morte, provocando asfixia.
“Há grande preocupação com os recorrentes, e cada vez mais frequentes, episódios de vazamento de amônia, que em alguns eventos levam dezenas de trabalhadores aos hospitais, infelizmente com número considerável de óbitos”, afirma Leomar Daroncho, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT). As informações estão detalhadas no relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido pelo programa de Pesquisa da Repórter Brasil em parceria com a organização dos Países Baixos, SOMO.
Entre 2014 e o final de 2020, foram noticiados ao menos dez casos, com 316 trabalhadores atingidos. O acidente mais recente ocorreu em abril, no município de Paraíso do Tocantins (TO). Antes disso, em dezembro do ano passado, 11 funcionários da JBS em Nova Andradina (MS) foram socorridos após um vazamento, e em junho de 2023, dezenas de empregados da JBS tiveram que ser hospitalizados após outro escape de gás ser registrado na unidade de Marabá (PA) da empresa.
Procurada pela Repórter Brasil, a JBS afirmou que suas políticas internas seguem a legislação brasileira e são revisadas anualmente com base em indicadores de saúde e segurança.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Em outra ocorrência, em 2017, uma pessoa morreu e oito ficaram feridas após um vazamento na Minerva em Barretos (SP). A empresa diz que busca garantir um ambiente de trabalho seguro para seus funcionários, e destaca possuir certificações que atestam a saúde e segurança nas fábricas.
Nesse mesmo ano houve um caso na Marfrig em Bataguassu (MS): “Todos correram para fora, mas mesmo assim acabaram intoxicados. Parece que o gás persegue a gente”, conta Anderson*, que era funcionário da planta na ocasião e foi entrevistado pela Repórter Brasil para esta série. Ao todo, 21 trabalhadores foram atingidos. A empresa, entretanto, diz que o acidente não teve “maiores consequências para a saúde e a segurança dos colaboradores” e reforça que “adota todas as medidas para a prevenção e a detecção de vazamento de amônia”.
A resposta completa da empresa pode ser lida aqui.
Vídeo vazamento de amônia na JBS em Marabá (PA):
Por ser um método de refrigeração relativamente barato e eficiente, a substituição da amônia por produtos menos perigosos, como o uso do glicol, acontece a passos lentos.
Até que um novo sistema seja amplamente incorporado pelas empresas, o jeito é investir fortemente em medidas de prevenção e precaução, defende Daroncho. “Sinalização, detecção precoce, treinamento de utilização das rotas de fuga, incorporação do corpo de bombeiros na dinâmica dos treinamentos e, na hipótese de alguma ocorrência, que haja o socorro rápido e efetivo”, exemplifica.
Efeitos de longo prazo são pouco estudados
A maioria dos estudos sobre a saúde do trabalhador exposto à amônia se debruça sobre os efeitos imediatos de uma exposição aguda, mas há pouca literatura científica abordando sequelas de longo prazo, como as provocadas por exposição crônica – que ocorre por micro vazamentos que não são detectados pelos sistemas da empresa nem chegam a ser percebidos pelo nariz humano já que em pequenas quantidades a amônia é inodora. Já há indicações de que este tipo de exposição repetida à amônia pode causar bronquite crônica.
Também ainda não há informações sobre as sequelas de longo prazo de quem sofreu uma exposição aguda, como a que ocorreu em Pimenta Bueno.
Depois de inalar amônia, João ficou oito dias internado no hospital e até hoje sofre de falta de ar, pressão alta, fraqueza muscular e dores. “Meu coração acelera por qualquer coisa e tem dias que eu acordo com muita dor de cabeça”, conta. Meses depois do vazamento ele foi dispensado pela empresa e hoje trabalha como autônomo.
Pedro também afirma que enfrenta sequelas da intoxicação. “Sinto fadiga constante, fraqueza nos ossos. Antes desse vazamento eu não tinha esses problemas, não sabia nem o que era um hospital, o que era um remédio”, desabafa. Ele tem pouco mais de vinte anos.
Roberto Ruiz, médico do trabalho da Universidade Federal de Santa Catarina e consultor de saúde da União Internacional de Trabalhadores da Alimentação (Uita), não descarta que os problemas possam estar relacionados à intoxicação pelo gás tóxico na fábrica.
“As consequências dependem do grau de exposição que a pessoa sofreu. Pode ter quadros leves, apenas irritação na garganta e nos olhos, até quadros mais graves, como pneumonite, uma inflamação do pulmão que, dependendo do grau, pode se tornar perene”, explica o médico.
“Quais seriam as sequelas crônicas dessa exposição aguda? Precisa estudar mais”, conclui.
Excesso de peso na linha de produção foi causa
Em Pimenta Bueno, uma decisão judicial sobre o caso aponta que o excesso de peso das 150 carcaças de boi penduradas na câmara de maturação forçou as tubulações de amônia, levando ao seu rompimento por volta das 10h da manhã. “Se você não for ligeiro e correr para fora, você morre lá dentro”, contou Ítalo, que também foi vítima do acidente em 2021. Os relatos em Pimenta Bueno incluem trabalhadores com sequelas, crises de pânico e ansiedade.
No mês seguinte ao vazamento, o Ministério Público do Trabalho entrou com uma Ação Civil Pública pedindo uma série de ajustes na infraestrutura da planta, como o controle na quantidade e peso das carcaças armazenadas e o reforço nas estruturas das câmaras de resfriamento.
A Justiça acatou a demanda, e condenou a JBS, mas a empresa recorreu da decisão. À Repórter Brasil, a empresa comentou apenas que o pedido de indenização foi julgado improcedente pelo Tribunal de Justiça de Rondônia. As íntegras das respostas podem ser lidas aqui.
*Nomes fictícios para proteger a identidade do trabalhador
Leia também