ENQUANTO cresce a tensão entre fazendeiros e o povo Guarani Kaiowá em Douradina (MS), onde três ataques a bala já deixaram onze indígenas feridos, uma comissão especial montada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tenta resolver o impasse sobre a aprovação da lei do chamado “marco temporal”. Os trabalhos da comissão, no entanto, são vistos com desconfiança por movimentos indígenas.
Promulgada em janeiro pelo Congresso Nacional, depois da derrubada do veto do presidente Lula, a lei federal 14.701/2023 só permite a criação de um território indígena se comprovada a presença, em outubro de 1988, dessa população na área.
Na avaliação de antropólogos, advogados e representantes indígenas ouvidos pela Repórter Brasil, a nova legislação aprovada pelos parlamentares, após pressão da bancada ruralista, encoraja a violência de grupos armados contra povos originários, como os Guarani Kaiowá.
A lei é alvo de ações de inconstitucionalidade no STF, que já havia decidido pela não validade da tese do marco temporal, antes da aprovação da nova lei. Diante do impasse, o ministro Gilmar Mendes suspendeu em abril a tramitação dos processos e instalou uma comissão composta por representantes de indígenas, ruralistas e do poder público para tentar costurar uma solução.
A primeira reunião aconteceu nesta segunda-feira (5). A reportagem apurou que, durante a audiência, os indígenas foram informados de que um acordo deverá ser chancelado, mesmo que eles eventualmente não concordem com os termos finais ou até mesmo desistam de participar da comissão. “O STF é um lugar de negócios”, protestou Alessandra Munduruku, uma das lideranças presentes na audiência.
Em coletiva de imprensa logo após a reunião, representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também criticaram o formato do grupo de trabalho.
“Nós nos sentimos violados com a informação de que qualquer posicionamento do movimento indígena na comissão de conciliação seria levado pela Funai, acolhido pela Funai. Remete novamente à tutela do Estado, que foi superada pela Constituição de 1988”, afirmou Kleber Karipuna.
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Ataques a indígenas no MS usaram munição exclusiva de forças policiais
Em Douradina, o que está em disputa é a Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, em um imbróglio criado pela União. Na década de 1950, os indígenas foram removidos do local e o território, repassado a fazendeiros. Já em 2011, boa parte da mesma área foi delimitada como terra indígena pela Funai.
No último dia 14, indígenas Guarani Kaiowá montaram um acampamento para retomar 150 hectares, abrangendo trechos de pelo menos três propriedades rurais. A ocupação foi, então, cercada por caminhonetes com homens armados pelos fazendeiros. Um primeiro ataque ainda em meados de julho deixou dois indígenas feridos, mas o confronto foi controlado por equipes da Força Nacional e também do Ministério Público Federal (MPF), que passou a organizar reuniões para mediar o conflito – sem, no entanto, chegar a um consenso.
No sábado (3), após a saída de equipes da Força Nacional, um novo ataque deixou dez indígenas feridos – três deles foram levados para hospitais em estado grave. À noite, a 20 km dali, um acampamento do Movimento Sem Terra (MST) foi alvo de um incêndio.
Já no domingo (4), houve novo conflito entre fazendeiros e indígenas, com disparos de armas de fogo que feriram mais um Guarani Kaiowa. De acordo com autoridades ouvidas pela reportagem, os ataques usaram munição exclusiva de forças policiais e ocorreram mesmo sob a presença de representantes do Ministério dos Povos Indígenas, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Força Nacional e Polícia Militar do estado. A Força Nacional dispersou o conflito com uso de gás lacrimogêneo e disparos de balas de borracha, que feriram um agricultor.
A escalada da violência surpreende até mesmo quem está acostumado a lidar com conflitos de terra na região e preocupa autoridades pela dificuldade de controlar a situação.
“Assim como os indígenas, muitos dos proprietários rurais também não acreditam no Estado, que foi o criador do atual conflito. Então você tem dois grupos em guerra e nenhum acredita no Estado”, resume a deputada estadual Gleice Jane (PT).
Deputado líder do Pró Armas apoia fazendeiros
Três parlamentares ligados ao agronegócio também visitaram a região nas últimas duas semanas: os deputados federais Marcos Pollon (PL-MS) e Rogério Nogueira (PL-MS), além da senadora Tereza Cristina (PP-MS). Eles participaram de reuniões com os fazendeiros e também dialogaram com o Ministério Público Federal.
Armamentista e fundador do movimento Pró Armas Brasil, o deputado federal Marcos Pollon foi citado por fazendeiros como um dos principais apoiadores em vídeos gravados pelos próprios ruralistas.
“O desforço imediato é direito de todo legítimo possuidor”, afirmou o deputado à Repórter Brasil, em referência à tese segundo a qual os fazendeiros teriam direito de expulsar os indígenas imediatamente após uma ocupação. “Repudio a forma que o governo federal, MPF, Funai e a Força Nacional têm não só apoiado ideologicamente, mas participado ativamente dos atos criminosos de invasão de propriedade”, acrescentou.
Sua equipe ressalvou, por mensagem, que o deputado e a Frente Parlamentar Invasão Zero são “contra a violência”. Criada em outubro do ano passado, a Frente reúne congressistas ruralistas para defender o marco temporal
Questionada sobre o apoio à ação dos fazendeiros de pegar em armas, a senadora Tereza Cristina (PL-MS) afirmou que “é óbvio que não [apoiam]”. Ela também ressaltou que não faz parte da Frente Invasão Zero, embora tenha participado do seu lançamento.
Já para o mandato do deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS), membro da Frente, os ataques se acirraram por conta da decisão do STF contrária ao marco temporal. De acordo com a assessoria de Nogueira, o STF “atirou um fósforo em um barril de pólvora”.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou que “a instabilidade gerada pelo marco temporal para terras indígenas tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas”.
A assessoria do deputado Rodolfo Nogueira não respondeu sobre sua posição diante dos ataques. Em sua página no Instagram, no entanto, Nogueira republicou postagens de perfis que apresentavam os fazendeiros como vítimas dos ataques.
“Quem invade terra é bandido”, afirmou Nogueira em 19 de julho, em vídeo gravado ao lado do proprietário rural Cleto Spessato, cuja área é alvo da retomada e foi palco dos ataques no último final de semana.
Grupos ligados a fazendeiros em outras regiões do país têm usado o lema ‘invasão zero’ para articular ataques contra indígenas em áreas de disputa de terras. Nas últimas duas semanas, um acampamento da etnia Avá-Guarani, no oeste do Paraná, também foi alvo de conflitos violentos com fazendeiros.
Entretanto, a complexidade do conflito no Mato Grosso do Sul coloca seu cenário e seus personagens no centro do debate sobre o marco temporal em Brasília. O governador do MS, Eduardo Riedel (PSDB), representa os estados brasileiros na comissão especial criada pelo ministro Gilmar Mendes (STF) para buscar uma conciliação entre as decisões da Suprema Corte, que decidiu contra a tese do marco temporal, e a do Congresso, que, sob forte influência da bancada ruralista, aprovou no último ano uma lei que institui o marco.
Na segunda-feira (5), o STF realizou a primeira reunião da comissão, que deve concluir os trabalhos até dezembro.
Lideranças Guarani Kaiowá também viajaram a Brasília nesta semana para se posicionar contra o marco temporal, após terem se reunido com o presidente Lula em Corumbá (MS) na última semana.
De acordo com pessoas que acompanharam a reunião, o presidente teria se comprometido a considerar a possibilidade de a União comprar terras dos fazendeiros para devolvê-las aos indígenas.
Outro representante do agronegócio sul-mato-grossense também participa da comissão proposta pelo STF: Marcelo Bertoni, presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul). Por nota, a Famasul afirmou que “produtores rurais e indígenas são vítimas de um erro da União ocorrido há mais de 150 anos”.
Entenda a disputa pelo território
O extinto SPI (Serviço de Proteção aos Índios) já identificava a presença de indígenas Guarani Kaiowá no final do século XIX na região da Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica.
Na virada do século, o Estado iniciou um processo de arrendamento das terras indígenas para a companhia Mate-Laranjeira, transferindo as populações originárias para reservas em outros locais, com territórios reduzidos. Mais tarde, nos anos 50, o governo Vargas criou a colônia agrícola de Dourados (MS), distribuindo títulos de terras para agricultores.
Atualmente, os indígenas da região estão confinados em uma área de 366 hectares, com poucas matas e matérias-primas, de acordo com a Funai, que concluiu em 2011 o estudo de delimitação da Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica. A área total delimitada é de 12 mil hectares.
De acordo com antropólogos que estudam os Guarani Kaiowa na região, muitas das famílias que estão nas retomadas vêm de situações de grande vulnerabilidade social na área onde viviam confinadas, com dificuldade de garantir sua subsistência e dependentes de benefícios sociais.
Enquanto o confinamento ameaça a sobrevivência indígena, a possibilidade de conclusão da demarcação é motivo de temor para os produtores da região – que perderiam uma área muito superior aos 150 hectares em disputa na retomada atual.
De acordo com interlocutores dos parlamentares ruralistas, uma solução para o conflito em Douradina também é temida pelo setor, pelo potencial de provocar outras retomadas de terras indígenas pelo país.
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