DE ITANHANGÁ (MT) – José Romanzzini é um empresário de sucesso de Lucas do Rio Verde (MT), dono de supermercados, postos de combustíveis e de uma incorporadora imobiliária. Também é produtor de soja, já tendo fornecido para grandes empresas, como a Fiagril, controlada pela chinesa Pengadan, e a brasileira Caramuru, dona da linha de produtos “Sinhá”.
Por trás do sucesso empresarial, contudo, há uma investigação da Polícia Federal (PF) que aponta Romanzzini como invasor de 17 lotes da reforma agrária. Em outros nove, ele teria burlado a legislação para se apropriar de terrenos públicos situados no Projeto de Assentamento (PA) Tapurah/Itanhangá, no norte de Mato Grosso.
Com extensão comparável à do município do Rio de Janeiro, o assentamento está entre os maiores do Brasil, com 115 mil hectares. Contudo, tornou-se símbolo do desvirtuamento da reforma agrária e da devastação ambiental nos últimos 30 anos na Amazônia. O que era para ser uma área de produção agrícola familiar, com lavouras diversificadas, converteu-se em um deserto de gente: não há trabalhadores, só plantações de soja.
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Das 1.169 famílias originalmente assentadas em 1995, pouquíssimas permanecem. O assentamento foi tomado desde então por grandes produtores de soja, como Romanzzini, a partir de um esquema ilegal de apropriação de terras públicas, segundo investigações da PF e do Ministério Público Federal (MPF), e de acordo com decisões da Justiça Federal que já determinaram a retomada das áreas pela União.
No final de julho, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) começou a cumprir as decisões para recuperar 170 lotes. Até o momento, seis áreas foram reincorporadas ao patrimônio público e destinadas a famílias sem terra acampadas no PA Tapurah/Itanhangá e cadastradas em um edital da reforma agrária.
A operação do Incra, no entanto, gerou forte reação. Nos dias seguintes, foram disparados tiros contra o acampamento dos sem-terra. Ameaças foram compartilhadas em grupos de WhatsApp, conforme revelou a Repórter Brasil. Diante dos ataques, o MPF e a Defensoria Pública da União (DPU) solicitaram ao governo de Mato Grosso policiamento ostensivo no assentamento.
Fazendeiros também passaram a acionar a Justiça Federal para paralisar a retomada das áreas pelo Incra. Romanzzini e sua esposa, por exemplo, impetraram um mandado de segurança preventivo para impedir a reintegração de posse de 16 lotes. Apesar de morarem em Lucas do Rio Verde, a 100 km do assentamento, o casal alega na ação que a medida viola os direitos constitucionais de posse e moradia.
Procurada, a advogada de Romanzzini disse que seu cliente tem contratos para exploração de algumas terras dentro do PA Tapurah, mas que não tem a posse, nem a propriedade dos 16 terrenos dentro do assentamento.
“Ele (Romanzzini) está totalmente comprometido com a conformidade legal e está cooperando plenamente com as autoridades para esclarecer quaisquer dúvidas sobre sua atuação”, disse a defesa, em nota. Alegou ainda que as acusações não correspondem à realidade.
Questionada sobre o motivo de ter impetrado um mandado de segurança alegando ser dono de 16 lotes, a defesa disse que desistiu do recurso, pois havia um “uso inadequado de terminologia” (leia a íntegra da resposta).
Influência de sojeiros dificulta recuperação de áreas invadidas
Desde a criação do assentamento em 1995, mais de mil lotes foram transferidos ilegalmente para cerca de 80 fazendeiros e grupos familiares, segundo a PF e o MPF. Desde a primeira operação, em 2014, mais de 50 pessoas foram presas e dezenas de ações civis e penais foram instauradas.
A hesitação do Incra em recuperar essas terras públicas pode ser explicada pela articulação política desses produtores, que contaram com o respaldo de figuras influentes no governo de Jair Bolsonaro.
Uma delas foi o ex-secretário de assuntos fundiários de Bolsonaro, Luiz Antonio Nabhan Garcia, a quem o Incra era subordinado. A Repórter Brasil seguiu os passos de Nabhan na série de reportagens “Ogronegócio: milícia e golpismo na Amazônia”.
Acesse a página especial da série de reportagens
Em julho de 2022, quando ainda estava no cargo, Nabhan visitou o assentamento e defendeu os fazendeiros, alegando que as investigações dos órgãos públicos eram injustas.
Embora procuradores e policiais federais acusem esses fazendeiros de atacar assentados rurais para tomar seus lotes, Nabhan prometeu interceder por eles. Durante encontro na Câmara Municipal de Itanhangá (MT), o “vice-ministro” da Agricultura de Bolsonaro afirmou que iria mobilizar o governo e as instituições para reverter as decisões da Justiça.
“[É possível] regularizar o que está irregular às vezes”, declarou para uma plateia de sojeiros. “Vou fazer o possível e o impossível para fazer justiça para aqueles que merecem ter justiça”, continuou.
Nabhan declarou ainda que estava discursando na condição de produtor rural, por ser proprietário de terras em Mato Grosso. “Eu sei como é difícil abrir um sertão bruto sem nada. Só na raça e na coragem”, bradou.
A visita de Nabhan a Itanhangá em 2022 ocorreu às vésperas da eleição presidencial daquele ano, quando o auxiliar de Bolsonaro passava o chapéu entre os “agrobolsonaristas”. Dois meses após aquela visita, Romanzzini fez uma doação de R$ 50 mil para a campanha, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A Caramuru Alimentos (dona da marca Sinhá) informou que José Romanzzini não tem irregularidades ambientais ou de compliance detectadas pela empresa. A Fiagril disse que respeita a legislação brasileira e que não compra grãos de áreas embargadas ou com irregularidades ambientais (leia a íntegra das notas).
Procurado, Nabhan não respondeu.
Ameaças e uso de laranjas: o modus operandi dos sojeiros
Os sojeiros que invadiram o PA Tapurah/Itanhangá atuavam de duas formas, segundo as investigações da Polícia Federal. Caso os assentados concordassem em vender os lotes, eles entregavam um termo de desistência ao Incra e eram substituídos por “laranjas” nos registros do órgão federal.
Já em casos de discordância, eles eram coagidos ou tinham suas assinaturas falsificadas. A coação, segundo a PF, envolvia ameaças com armas de fogo e até incêndios em casas e plantações.
Para o esquema dar certo, era preciso conivência de servidores do Incra para que os “laranjas” fossem beneficiados com os títulos de propriedade. Dessa forma, ocultavam-se os nomes dos fazendeiros e dos empresários que realmente exploravam as terras.
Mas havia outras formas de se apossar das terras. O inquérito da PF destaca o relato de um assentado que saiu do lote para fazer um tratamento de saúde. Ao retornar, meses depois, o terreno estava ocupado. Há casos ainda de assentados que venderam os lotes em parcelas, mas receberam apenas os primeiros pagamentos.
Conexões em Brasília
Outros réus importantes investigados pela PF e acusados pelo MPF de participação no esquema ilegal são os irmãos do ex-secretário de política agrícola do governo Lula (PT), Neri Geller (MDB): Odair e Milton Geller.
Em 2014, Odair e Milton chegaram a ser presos na operação Terra Prometida da PF. Outros membros da família também são réus nas ações. A concentração de lotes nas mãos dos Geller foi identificada por uma vistoria do Incra, que motivou as investigações da PF e as denúncias da Procuradoria.
Quando os irmãos foram presos, Neri Geller era ministro da Agricultura do governo Dilma Rousseff (PT). Desde então, ele manteve sua influência política em Brasília, com cargo no governo de Michel Temer (MDB) e vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária durante a gestão Bolsonaro.
O ruralista chegou a ser cogitado para a vaga de ministro da Agricultura de Lula e participou do governo de transição, mas acabou em um cargo de segundo escalão, até ser demitido em junho passado, por suspeitas envolvendo o leilão para a compra de arroz importado.
Quando ainda estava no cargo, Neri Geller ligou para o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, pedindo que o prefeito de Itanhangá e outros produtores de soja fossem recebidos para uma reunião com o ministro. O Incra está subordinado à pasta de Teixeira. Neri Geller, contudo, negou que tenha pedido uma intervenção do ministro e não quis comentar a respeito das suspeitas de envolvimento de seus irmãos no esquema.
O advogado de Odair Geller informou que seu cliente foi absolvido do processo que motivou a prisão em 2014. A respeito de outros processos que tramitam na Justiça Federal apontando Odair como invasor de lotes no assentamento, a defesa disse que “será comprovado que os fatos imputados não são verdadeiros, e que jamais teve posse ou propriedade”.
Milton Geller é atual secretário de obras da prefeitura de Sorriso (MT). Após a publicação da reportagem, Milton enviou nota afirmando que já atuou como agricultor arrendando terras em Tapurah, mas que “em nenhum momento explorou áreas do assentamento de Itanhangá” (veja a nota completa).
Bilhões em jogo
As terras do norte de Mato Grosso são valiosas. O assentamento está próximo de municípios como Sorriso, Campo Novo dos Parecis, Sapezal, Nova Ubiratã, Novo Mutum e Diamantino, todos entre os dez maiores produtores de soja do Brasil.
Uma área de 100 hectares dentro do assentamento vale até R$ 3 milhões, segundo estimativa feita há três anos pelo MPF. Ao todo, o que está em jogo é um território com valor estimado em mais de R$ 3 bilhões.
“Lotes grandes, planos e com altos índices de produtividade, gerando a cobiça de um sem número de produtores rurais e de políticos locais, todos dispostos ao uso da força para estender seus domínios sobre as terras dantes voltadas à implementação da reforma agrária”, descreve o MPF em ação civil pública que pede a reversão da posse dos lotes para o Incra.
Segundo os procuradores responsáveis pela ação, a região enfrenta “um sistemático e articulado mecanismo de apropriação indevida de terras públicas, violência contra assentados, ameaça, expulsão e reconcentração de lotes”.
Além da retomada do assentamento, os procuradores pedem o pagamento de indenizações e a condenação dos réus ao pagamento dos custos da recuperação ambiental das áreas devastadas de reserva legal e de preservação permanente.
A Horta
Quem insiste para que a área do assentamento seja novamente destinada à reforma agrária são cerca de 70 famílias sem-terra que desde 2014 vivem em um único lote: o Acampamento Nova Aliança.
Morando em barracos com telhado de palha e paredes de lona, as famílias produzem nos 100 hectares do lote alimentos variados – e não somente soja e milho, como todo o entorno. Por isso, passaram a ser conhecidas como ”os moradores da Horta”.
Entre elas estão várias famílias com crianças pequenas e a esperança de receberem um pedaço da terra. “Eu sonho com coisas maiores. Lá na frente quero pensar que sofri muito, mas que tenho meu sítio e posso tirar o sustento da família”, diz uma agricultora, que pede para não ser identificada.
Já são seis anos morando sob o calor da lona e pisando no chão de terra batida, desde que entraram para uma lista de espera de possíveis beneficiários de um lote no assentamento.
Como são a resistência em uma região dominada econômica e culturalmente pela soja, a acampada relata episódios de discriminação quando vai à área urbana de Itanhangá. “Alguns olham torto e dizem: ‘a fulana é da Horta’. Como se eu fosse uma pessoa mal vista”, relata. “Aqui tem homens e mulheres lutando por um objetivo. Não tem invasores, nem baderneiros”, acrescenta.
As ameaças ficaram mais intensas após a visita de Nabhan Garcia, em 2022, dizem os moradores. Além de se reunir com os sojeiros, o ex-secretário de Bolsonaro foi pessoalmente confrontar os acampados da Horta, como mostra um vídeo publicado em rede social. Após a agenda, dois acampados passaram a integrar o programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos.
“Somos a maior dor de cabeça dos fazendeiros”, define um dos líderes do acampamento, que pede para não ser identificado.
* A reportagem foi atualizada em 20 de agosto de 2024 para incluir o posicionamento de Milton Geller.
Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.
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