A resistência é feminina: a luta de mulheres ameaçadas por defenderem a floresta

As ameaças de pistoleiros e grileiros são uma rotina na vida de Joelma, irmã Jane e Claudelice. Ainda assim, elas lideram a luta em defesa de trabalhadores rurais e da floresta amazônica
Por Daniel Camargos | Fotos Fernando Martinho | Edição Paula Bianchi e Carlos Juliano Barros
 02/09/2024

DE RONDON DO PARÁ, ANAPU E MARABÁ – Quando olha para o lado, Maria Joel Dias da Costa vê sempre a mesma imagem. Dois policiais militares fardados, com armas nas mãos. Essa paisagem se repete há 20 anos. 

“Não tenho mais liberdade de ir e vir. Se os netos me chamam para ir à praça tomar um sorvete, preciso recusar”, conta Joelma, como é conhecida pelos trabalhadores rurais de Rondon do Pará. A restrição de liberdade não se deve a nenhum crime que ela cometeu. Pelo contrário. Os policiais são onipresentes porque Joelma é ameaçada de morte.

Aos 51 anos, Joelma segue o trabalho do marido, José Dutra da Costa, o Dezinho, assassinado em novembro de 2000. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, ele lutava pela criação de assentamentos em terras públicas invadidas por fazendeiros. Ao morrer, deixou quatro acampamentos formados, hoje oficialmente reconhecidos como assentamentos. 

Um estudo realizado pelas ONGs Justiça Global e Terra de Direitos aponta o Pará como o estado com o maior número de casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos. Entre 2019 e 2022, foram 143 episódios. A Repórter Brasil acompanhou um dia do cotidiano de Joelma e de outras duas mulheres que, mesmo ameaçadas, lideram a luta contra o “ogronegócio” e a destruição da floresta nas cidades de Rondon do Pará, Anapu e Marabá.

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Com a sindicalista, a reportagem visitou o Projeto de Assentamento Deus Te Ama, criado em 2013 como parte de um acordo entre o Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), após o assassinato de Dezinho

Com 60 famílias, a área de 2.700 hectares tem lotes plantados com uma grande variedade de culturas. Em cada casa, Joelma era recebida com festa e saía com uma sacola lotada de presentes: laranja, mexerica, abacaxi, mandioca e até carne de paca, guardada especialmente para ela por um assentado. 

“Lutar pela terra é lutar pela geração de empregos, pela educação, pela saúde. Quem tem um pedaço de terra tem uma poupança, que gera emprego e renda”, defende a sindicalista.

Joelma e Dezinho se conheceram em um grupo da Comunidade Eclesial de Base (CEB) da Igreja Católica, no Maranhão. Namoraram, casaram e mudaram para o sudeste do Pará. 

Nessa época, nas décadas de 1980 e 1990, Joelma se dedicava a cuidar dos quatro filhos e a combater a fome e a desnutrição na Pastoral da Criança. Com medo de que o marido fosse assassinado, chegou a implorar para que ele deixasse a militância e para que a família mudasse de cidade.

Dezinho, no entanto, dizia que, se necessário, daria a vida por aqueles que precisam dele, lembra Joelma. “Se Dezinho pudesse ver a mulher medrosa que eu fui e [como] hoje estou à frente desse trabalho… Isso é só amor ao próximo”.

Passados 23 anos do assassinato do marido, Joelma entende que é um desatino viver como vive, escoltada por policiais sete dias por semana, 24 horas por dia. “Sou avó de sete netos e seria absurdo dizer que eu não tenho medo”, afirma, destacando que os assassinos do marido andam livremente na mesma cidade onde ela vive. 

Um importante fazendeiro do sudeste do Pará, Décio José Barros, foi acusado de ser o mandante do crime pelo Ministério Público do estado. Condenado em primeira instância a 12 anos de regime fechado em 2019, Delsão, como é conhecido, ficou preso preventivamente por um mês. Uma decisão da Justiça, no entanto, permitiu que ele recorresse em liberdade.

Caju colhido em assentamento de Anapu (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Caju colhido em assentamento de Anapu (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

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No meio do povo

Irmã Jane não conta, mas os moradores assentados no Projeto de Assentamento Dorothy Stang, em Anapu, não esquecem que, nos momentos mais difíceis, quando eram atacados com tiros e pistoleiros incendiavam casas, plantações e até a escola das crianças, ela estendia a sua rede para dormir na varanda de um dos barracos de madeira do local. 

Passava a noite na linha de tiro, acreditando que sua presença ali desencorajaria os ataques. “Não vão matar outra freira”, justificava. 

Da mesma ordem religiosa da irmã Dorothy Stang, a Notre Dame de Namur, Jane Dwyer, de 84 anos, dá continuidade ao trabalho da missionária, executada em 2005. Não tem medo, pois se sente protegida no meio do “povo”, como se refere aos trabalhadores rurais sem terra, acampados e assentados. 

Durante a campanha eleitoral, em 2022, chegou a receber ameaças contundentes, compartilhadas em grupos de WhatsApp na cidade. “Falam muito das irmãs, mas quem está sendo atacado é o trabalhador”, disse à época, em entrevista à Repórter Brasil.

Mudas de cacau em assentamento em Anapu, cidade onde morreu a missionária Dorothy Stang (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Mudas de cacau em assentamento em Anapu, cidade onde morreu a missionária Dorothy Stang (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A missionária acompanhou a reportagem em uma visita ao assentamento Dorothy Stang, uma área de 4.000 hectares, que foi nos últimos anos o principal foco dos conflitos agrários em Anapu e engloba os lotes 96 e 97.

Ela conta que escolheu esse caminho quando ainda era jovem. Logo depois que saiu da faculdade, Jane trabalhava em uma organização religiosa dos Estados Unidos e vivia em Washington DC. À noite, após o trabalho, ia para os subúrbios ser professora voluntária em aulas de reforço escolar para a comunidade negra.

Na tarde de 28 de agosto de 1963, ela era uma das 250 mil pessoas presentes nas escadarias do Lincoln Memorial quando Martin Luther King Jr. proferiu seu discurso mais famoso: “I have a dream (Eu tenho um sonho)”, durante a marcha sobre Washington por trabalho e liberdade.

Menos de dez anos depois, em 1972, ela chegou ao Brasil em busca de realizar seu sonho. “Marthin Luther King fez parte da minha juventude. O que eu queria e estava aprendendo era trabalhar com os mais pobres nos locais mais difíceis”, recorda.

Morou no interior do Maranhão, Ceará e Paraíba. Desde 1997 está em Anapu, onde atuou ao lado da missionária Dorothy Stang, que teve o mesmo destino de Luther King Jr., assassinado em 1968.  

“O nosso jeito é colocar o povo em contato com os órgãos do governo e da Justiça, mas eles mesmo se organizam”, diz, ao explicar como atua. Nascida em Boston e naturalizada brasileira, irmã Jane divide uma casa simples, de madeira, na área urbana de Anapu com a também missionária Kátia Webster.

Quando visita os acampamentos e assentamentos e vê os trabalhadores rurais plantando e morando na terra, fica feliz. É recebida com festa pelos assentados, que mostram as plantações e enchem sacolas com frutas, verduras e legumes para ela levar. 

Ela também aproveita para “casar” os assentados. Enquanto esperava o almoço ficar pronto, no quintal de uma família assentada, ela buscou um pote de margarina na bolsa. A vasilha estava lotada de anéis de tucum, que ela distribuía para os casais de moradores do assentamento para serem usados como aliança de casamento. 

Irmã Jane orienta os assentados a oficializarem a relação no cartório. Ela entende que, se casados de papel passado, o patrimônio das mulheres, principalmente, fica protegido. Os anéis são dados para serem usados como aliança de casamento, mas também uma aliança com a luta pela reforma agrária.

No discurso em Washington D.C, Martin Luther King Jr. sonhava que os filhos não fossem julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do caráter. Passados 61 anos, irmã Jane segue sonhando por justiça e igualdade: “Que a gente aprenda a partilhar”. 

No centro do debate

“Hoje se fala muito de clima, de como salvar o planeta, mas onde existe floresta e agricultura sustentável tem pessoas ali que cuidam, protegem e defendem”, afirma Claudelice Santos, coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria. Para ela, essas pessoas precisam estar no centro do debate

O instituto leva o nome do irmão e da cunhada de Claudelice, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo Silva, assassinados em maio de 2011 na reserva agroextrativista do Assentamento Praia Alta Piranheira, em Nova Ipixuna. Por defenderem a preservação da floresta, o casal entrou em choque com madeireiros e grileiros, que tramaram e executaram o assassinato dos dois. 

“Até chegar ao assassinato do Zé e da Maria houve um processo longo de criminalização e de não escutar as denúncias deles. As ameaças eram veladas, mas eram muito fortes e fragilizaram os dois nos últimos anos de vida”, lembra. 

A organização que ganhou o nome do casal tem como objetivo olhar para a segurança das pessoas ameaçadas, mas também para o aspecto humano. O instituto tem um espaço para acolher defensoras do meio ambiente e direitos humanos que precisam deixar o local onde vivem por segurança.

“É uma casa de respiro. Quando não tem mais condições de se defender”, explica Claudelice. Isso acontece, segundo ela, por uma falha do Estado, que não é capaz de dar segurança para os defensores, nem para a comunidade. 

A responsabilidade maior, na análise de Claudelice, é dos governos: “Enquanto darem mais valor para megaprojetos e tratarem o gado melhor do que gente, isso vai continuar. Aí não adianta mandar nota de repúdio para familiares que perderam seus entes. O que a gente quer é justiça. E essa justiça parece que nunca chega aqui”. 

Apesar de o assassinato de Zé e Maria já ter completado 13 anos, o fazendeiro apontado como mandante do crime, José Rodrigues Moreira, continua foragido, mesmo condenado a 60 anos de prisão pelo duplo homicídio.

Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.

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