Lideranças indígenas contradizem PM e afirmam que Guarani Kaiowá morto no MS não tinha arma 

Liderança da Terra Indígena Nhanderu Marangatu e entidade indigenista contestam versão do governo estadual de que morte em Antônio João (MS) foi causada por ‘troca de tiros’ com a PM; Sonia Guajajara pede afastamento do policial responsável pela morte
Por Igor Ojeda | Edição Diego Junqueira e Carlos Juliano Barros
 21/09/2024

NERI RAMOS, o jovem Guarani Kaiowá morto a tiros na manhã da última quarta-feira (18), no município de Antônio João (MS), “não tinha nada nas mãos” – o que contradiz a alegação da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul de que a causa de sua morte seria uma troca de tiros.

A afirmação é de lideranças indígenas e entidades indigenistas que acompanham os recentes conflitos na Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu. Em 18 de setembro, uma “retomada” (nome dado pelos indígenas às ocupações para recuperação de territórios ancestrais) iniciada uma semana antes, na Fazenda Barra, foi reprimida pela PM após os donos da propriedade obterem uma decisão da Justiça Federal garantindo acesso à sede da fazenda. Ramos foi morto nessa ocasião. No dia 12, uma ação policial já havia deixado três indígenas feridos. 

A Fazenda Barra está sobreposta à Terra Indígena Nhanderu Marangatu – a área chegou a ser regularizada como território dos Guarani Kaiowá em 2005, mas teve o processo suspenso no mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, o conflito se instalou no local. 

Os indígenas acusam a PM de ter realizado os disparos e adulterado a cena do crime. Inicialmente, o corpo teria sido deslocado pelos policiais para a mata e depois levado ao Instituto Médico Legal (IML), antes da chegada de peritos. 

Secretaria do governo diz que houve ‘troca de tiros’

Em nota oficial à imprensa, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul diz que “o óbito ocorreu depois de um confronto e troca de tiros com a Polícia Militar”, e que exames periciais estão sendo realizados no local. 

O texto afirma ainda que “foram apreendidas armas de fogo com o grupo de indígenas que entrou em confronto com os policiais militares”. Questionamentos da Repórter Brasil sobre a acusação de alteração da cena do crime não foram respondidos. 

No entanto, segundo os Guarani Kaiowá e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não houve tiroteio. O ataque da PM teria começado logo cedo, com a queima das barracas utilizadas pelos indígenas. 

De acordo com uma integrante da TI Nhanderu Marangatu, que prefere não ser identificada, a informação de que a tropa de choque da corporação agiria começou a circular por grupos de WhatsApp da comunidade na noite de 17 de setembro. No dia seguinte, a operação chegou ao local.

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“Eles vieram, botaram fogo nos barracos, o Neri voltou para pegar uns pertences que havia em sua barraca, e acabaram atirando nele”, conta Avelino da Silva Vareiro, um dos líderes da TI. “Ele não tinha nada nas mãos, nenhuma arma. O guri morreu sem defesa”, indigna-se. “Estão falando no jornal que foram lá só para proteger, garantir a segurança, mas não, eles foram lá para massacrar os povos indígenas, foram para atirar”, complementa a liderança Guarani Kaiowá. 

A nota da secretaria estadual afirma que os policiais militares continuam no local em cumprimento a uma ordem da Justiça Federal “para manter a ordem e segurança na propriedade rural (Fazenda Barra), assim como permitir o ir e vir das pessoas entre a rodovia e a sede da fazenda”. 

A ordem é do juiz federal Ricardo Duarte Ferreira Figueira, da 1ª Vara Federal de Ponta Porã, que em 13 de setembro acatou parte do pedido dos fazendeiros e determinou que o acesso deles à área não fosse impedido pelos indígenas da retomada, autorizando a “permanência ostensiva da força policial no imóvel”.

A Guarani Kaiowá Marli Gomes foi atingida por tiro de bala de borracha na ação de 12 de setembro da PM de Mato Grosso do Sul à Terra Indígena Nhanderu Marangatu (Foto: Renato Santana/Cimi)
A Guarani Kaiowá Marli Gomes foi atingida por tiro de bala de borracha na ação de 12 de setembro da PM de Mato Grosso do Sul à Terra Indígena Nhanderu Marangatu (Foto: Renato Santana/Cimi)

Luis Ventura Fernández, secretário-executivo do Cimi, qualifica como “grave” a decisão judicial, ao permitir a presença da PM no território. “Em um litígio que envolve povos indígenas, a atuação deveria ser da Polícia Federal, não da Polícia Militar”, afirmou à Repórter Brasil

“Em todo caso, a decisão não permite nenhum tipo de despejo, muito menos de reintegração de posse. Isso foi explicado para o coronel da PM, mas no entendimento deles a atuação da corporação deveria ser pela retirada à força da comunidade indigena”. 

A Polícia Federal instaurou um inquérito para apurar o ocorrido. “Agentes da PF, da Força Nacional e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) estão no local coletando todas as informações necessárias para a investigação”, diz nota enviada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à Repórter Brasil.

A ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas) solicitou ao governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, que o policial responsável pelo disparo “seja imediatamente afastado e responsabilizado pela conduta inadmissível e violenta que tirou a vida de Neri Guarani Kaiowá”.

Homologação da TI está no STF há quase 20 anos

A TI Nhanderu Marangatu foi homologada via decreto presidencial em 2005 com 9,3 mil hectares. A homologação é o último passo do processo de demarcação, após a identificação e delimitação de um território. Mas, no caso da Nhanderu Marangatu, a medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo ano, a pedido dos fazendeiros, empurrando os indígenas para uma parte diminuta do território. O processo segue até hoje sem julgamento definitivo. 

“Estamos diante de uma terra homologada há 20 anos. As comunidades indígenas foram obrigadas a viver num território pequeno de 300 hectares por muito tempo. Foram retomando algumas das áreas de seu território, e em 12 de setembro fizeram a última retomada”, esclarece Fernández.

A Fazenda Barra, a única que resta na TI Nhanderu Marangatu, pertence a Roseli Ruiz e Pio Queiroz Silva, autores da ação. Sua filha, Luana Ruiz, advogada de ambos no processo, é assessora especial da Secretaria estadual da Casa Civil do Mato Grosso do Sul, cargo que ocupa desde 12 de agosto de 2024. Entre janeiro de 2023 e julho de 2024, ela foi chefe de gabinete na Secretaria de Infraestrutura e Logística do estado. 

Mas seu poder de influência também alcança Brasília. Durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Luana foi secretária adjunta da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, que tinha como ministra a senadora Tereza Cristina (PMDB/MS). O secretário era o líder ruralista Luiz Antonio Nabhan Garcia.

Tanto Luana quanto sua mãe, Roseli Ruiz, destacam-se no estado por sua forte atuação anti-indígena. “A família da Roseli é uma ameaça para o povo indígena. Ela movimenta os fazendeiros do agronegócio para nos atacar”, afirma a liderança Guarani Kaiowá Avelino da Silva Vareiro. 

Luana Ruiz, assessora da Casa civil do Mato Grosso do Sul, é advogada e filha do casal que alega a propriedade em litígio. Na foto, ela aparece ao lado do governador Eduardo Riedel (Foto: Reprodução/Facebook)
Luana Ruiz, assessora da Casa civil do Mato Grosso do Sul, é advogada e filha do casal que alega a propriedade em litígio. Na foto, ela aparece ao lado do governador Eduardo Riedel (Foto: Reprodução/Facebook)

A reportagem questionou Luana Ruiz sobre um possível conflito de interesses entre público e privado envolvendo o embate entre indígenas e sua família, uma vez que ela integra o governo estadual. Em resposta, a advogada escreveu o seguinte: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Sugiro analisar os autos do processo que tramita na Justiça Federal. É salutar se ater à realidade dos fatos!”. 

Em seguida, ela encaminhou um vídeo do deputado estadual Coronel David (PL-MS) em que o parlamentar defende a PM e faz acusações aos indígenas, em discurso na Assembleia Legislativa do estado.

Entidades criticam atuação da PM

Para Luis Ventura, do Cimi, a PM atua como “segurança privada de interesses privados”. Tal crítica é compartilhada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. “A Polícia Militar é acusada frequentemente de ser composta por policiais que fazem bicos para os fazendeiros e que são, ao mesmo tempo, segurança privada e segurança estadual. E que, portanto, são absolutamente contrários aos indígenas”, diz ela à Repórter Brasil

No dia 13 de setembro, Cunha, reconhecida como uma importante defensora do direito dos povos indígenas do Brasil e fundadora da Comissão Arns, organização de direitos humanos, esteve presente na retomada Guarani Kaiowá na Fazenda Barra como parte de uma delegação de entidades da sociedade civil, parlamentares e autoridades. 

Ela conta que o destino original da missão eram áreas de conflito em Douradina (MS), na TI Panambi-Lagoa Rica, mas, em razão dos ataques policiais aos indígenas ocorridos em Antônio João no dia 12, seus integrantes decidiram visitar o local. A ação deixou três feridos. Entre eles, a Guarani Kaiowá Juliana Gomes, que levou um tiro no joelho e continua hospitalizada.

Chegando à retomada, a delegação se deparou com uma situação de grande tensão, conta a antropóloga. “Vimos os indígenas Kaiowá muito revoltados, muito indignados porque na véspera tinha havido já um embate com feridos. E o joelho da indígena que foi atingida por uma bala letal ficou completamente destruído”, relata.

Segundo a antropóloga, no momento em que a missão se preparava para deixar a área, seus integrantes avistaram um grande número de viaturas da Polícia Militar. Na saída, na estrada, cruzaram mais de uma dezena de carros da PM, dos Bombeiros e de outras forças. “Era evidente que estavam se reforçando. Eles estavam cercando os indígenas”, diz. 

Em nota enviada à reportagem, o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) condenou os ataques. “A escalada de violência contra os povos indígenas no Brasil é extremamente preocupante, em particular no Mato Grosso do Sul, onde ataques graves têm ocorrido durante todo o último mês”, diz o texto.

O escritório regional do ACNUDH cobrou o STF para que conclua a análise da Lei 14.701 de 2023, que instituiu a tese do “marco temporal” e está “favorecendo a escalada de violência contra os povos indígenas no país”.

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