Assassinato de ativista contra agrotóxicos terá julgamento após 14 anos no Ceará

Zé Maria do Tomé, líder comunitário que denunciava malefícios dos agrotóxicos no sertão do Ceará, foi executado há 14 anos com 25 tiros. Das seis pessoas inicialmente denunciadas pelo MP, apenas uma vai se sentar diante do Tribunal do Júri, marcado para 09/10, em Fortaleza
Por Melquíades Júnior | Edição Ana Aranha
 02/10/2024

“VOCÊ É MUITO COVARDE. Só anda com uma criancinha na garupa?”

A ameaça do outro lado da linha chegava aos ouvidos de José Maria Filho, líder popular que primeiro denunciou a contaminação por agrotóxicos em comunidades do sertão do Ceará, onde projetos de irrigação atraíram as maiores multinacionais da fruticultura. 

Era quase noite, e ele acabara de fazer o de hábito: colocar Lucas Gabriel, o caçula, então com três anos, em sua frente no ‘tanque’ da moto e passear em baixa velocidade na comunidade de Tomé, em Limoeiro do Norte, quando o sol descia morno no sertão e o vento soprava frio no rosto do menino. 

Um a cara do outro. Único filho homem, Gabriel veio depois de Juliany, que chegou depois de Márcia. E todos vieram de Lucinda Xavier, a “Branquinha”. Mãe, esposa, comerciante, dona de casa, e que dali a menos de 48 horas se tornaria também viúva, enquanto Gabriel descobriria ter sido aquele o último passeio com o pai.

Com 25 tiros, a ameaça se cumpriu dois dias depois, em 21 de abril de 2010, numa emboscada na estrada. Morreu o pai e marido, nasceu o mártir Zé Maria do Tomé. Ao invés de calar a sua voz, a brutalidade serviu como combustível para movimentos sociais ecoarem o seu grito e batizarem a primeira – e até agora única – lei estadual do país que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos, a Lei Zé Maria do Tomé.

Zé Maria do Tomé foi assassinado em 21 de abril de 2010 com 25 tiros (Foto: Melquíades Júnior)
Zé Maria do Tomé foi assassinado em 21 de abril de 2010 com 25 tiros (Foto: Melquíades Júnior)

Desde então, todo ano, culminando no 21 de abril, a Semana Zé Maria do Tomé reúne cientistas, pesquisadores, ativistas sociais e ambientais, padres, políticos e estudantes para uma série de debates, audiências, lançamentos de livros e festas que se encerram com uma grande romaria. Ela sai do local onde ele tombou e vai até a praça da comunidade de Tomé, com algumas paradas para gritar o lema: “Companheiro Zé Maria, aqui estamos nós, falando por você já que calaram sua voz”.

Tudo é organizado pelo Movimento 21, que tem a data do crime no nome. Enquanto o grupo comemora a ressignificação da morte em conquistas na causa defendida pelo mártir, para a família, o dia 21 de abril é um pesadelo sem resolução que dura 14 anos. Mas finalmente pode chegar ao fim. Se não houver mais um adiamento, espera-se para 9 de outubro, em Fortaleza, o Tribunal do Júri sobre o assassinato.

Francisco Marcos Lima Barros é acusado de fazer parte da articulação do crime. A investigação aponta que ele teria intermediado a contratação de Westilly Hytler, pistoleiro tido como responsável por apertar 25 vezes o gatilho da .40, de uso restrito, na morte sob encomenda.

Francisco é o único que vai se sentar em frente ao júri. Inicialmente eram seis os réus indiciados pela investigação policial e denunciados pelo Ministério Público. Dois foram mortos em confrontos com a polícia e um foi encontrado sem vida. Já os dois apontados como mandantes foram “despronunciados” – ou seja, a Justiça considerou insuficientes as provas que os ligavam ao caso, livrando-os de ir a julgamento.

A reportagem entrou em contato por telefone com Francisco e com o advogado de João Teixeira e Aldair Gomes, indiciados originalmente como mandantes, mas nenhum deles quis comentar o caso. No processo, todos negaram as acusações e alegaram inocência.

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Uma “bomba” pra soltar

Apontado como um dos mandantes e posteriormente despronunciado pela Justiça, João Teixeira é empresário agrícola do ramo da banana. Na época do crime, era dono de aviões alugados para a pulverização aérea de agrotóxicos. Ele tinha uma relação de crescente divergência com Zé Maria.

A dispersão de veneno com avião monomotor já tinha se tornado um bom negócio na região agrícola. Centenas de hectares de banana, por exemplo, poderiam ser dizimados com a sigatoka-amarela, doença em que um fungo afeta as folhas e pode levar à morte da planta. Mas a história muda com um coquetel de veneno caindo do céu Ter o avião é como uma garantia de que milhões de dólares não voem pelos ares, já que as encomendas para Estados Unidos e Europa precisavam ser cumpridas.

Graças às denúncias de Zé Maria, um ano antes de sua morte os vereadores aprovaram uma lei municipal proibindo a pulverização aérea. Mesmo assim, os voos rasantes continuavam. Na busca de registrar o flagrante, ele se fazia fiscal: muniu-se de uma câmera digital, que cabia no bolso, e corria para a pista de pouso na Chapada do Apodi. Havia uma infração em curso. Queria juntar tudo em um pen drive e mostrar para a Juíza de Direito na Comarca de Limoeiro do Norte. O pen drive foi levado pela mesma pessoa que tirou sua vida.

“Ele dizia que tinha uma ‘bomba’ para soltar na reunião”, lembrou à época o professor universitário e pesquisador Diego Gadelha, que acompanhava as lutas sociais das comunidades na Chapada do Apodi. Ele se refere a uma audiência na Câmara Municipal de Limoeiro do Norte que estava marcada para o dia seguinte ao assassinato e que tinha como tema o assunto do qual José Maria não cansava de falar: os riscos do veneno jogado de avião.

Foto tirada pelo próprio Zé Maria do Tomé de avião fazendo pulverização de agrotóxicos em plantações da Chapada do Apodi, no Ceará (Foto: Zé Maria do Tomé / Arquivo Pessoal)
Foto tirada pelo próprio Zé Maria do Tomé de avião fazendo pulverização de agrotóxicos em plantações da Chapada do Apodi, no Ceará (Foto: Zé Maria do Tomé / Arquivo Pessoal)

“Você vai ter terra”

A investigação traçou os rastros das diversas ameaças que precederam sua morte. A que abre esse texto foi relatada por um de seus amigos, Sebastião Guimarães. Segundo ele, Zé Maria não identificou a autoria da ligação.

Mas em outras duas situações ele sabia bem quem estava do outro lado da linha. A outro amigo, Geraldo Magela, contou ter recebido ligação de Aldair Gomes, também inicialmente denunciado como mandante e posteriormente despronunciado. Gomes era gerente da empresa Frutacor, de propriedade de João Teixeira. 

“Eu tô metido numa quente, pois o Aldair ligou pra mim enjoado, dizendo que quer uma conversa séria comigo, pois tenho que esquecer o avião de qualquer jeito. De um jeito ou de outro, vou ter que parar”. A chamada ocorreu dois dias antes do assassinato.

As divergências entre ele e o empresário também ocorriam em relação a um terreno de 15 hectares em nome do pai de José Maria. Ele teria negociado o lote informalmente com João Teixeira e, arrependido, tentava reavê-lo. Seria essa uma das pautas de reunião já agendada entre José Maria e João Teixeira para a quinta-feira, 22 de abril, um dia depois do crime.

Dias antes, ao ligar para o empresário e confirmar o encontro, Zé Maria relatou para a filha, Márcia Xavier, ter ouvido do empresário a seguinte frase: “se você quer terra, você vai ter terra”. Ela não esquece do diálogo que se sucedeu:

– Pai, saia disso. É terra “nos peito” que ele vai dar pro senhor

– Deixa de besteira, Marcinha, não é assim, não. Eu vou resolver isso.

Em depoimento à Justiça, João Teixeira nega que tenha feito qualquer ameaça, ou que houvesse qualquer conflito, mas admite a reunião agendada. O registro de chamada entre as partes foi comprovado nas quebras de sigilo telefônico da investigação criminal. Também foram identificadas chamadas entre Aldair Gomes e Antônio Wellington, responsável pela intermediação com o pistoleiro Westilly Hytler.

O Movimento 21 realiza todos os anos, em 21 de abril, uma série de atividades em homenagem a Zé Maria do Tomé, no município de Limoeiro do Norte, no Ceará (Foto: Melquíades Júnior)
O Movimento 21 realiza todos os anos, em 21 de abril, uma série de atividades em homenagem a Zé Maria do Tomé, no município de Limoeiro do Norte, no Ceará (Foto: Melquíades Júnior)

Ciência comprovou denúncias sobre agrotóxicos

Zé Maria costumava provar o que dizia e estar com a razão lhe rendeu muitas dores de cabeça. A essa altura, um núcleo multidisciplinar da Universidade Federal do Ceará (UFC) já estudava o impacto do uso indiscriminado de agrotóxicos na Chapada do Apodi. Primeiro na água, depois diretamente nas pessoas.

O sinal de alerta veio aos pesquisadores em 2006, quando o Núcleo de Epidemiologia da Secretaria de Saúde do Estado apontou para mais de mil internações no Ceará por intoxicação no ano anterior, o dobro em relação a 2004. Os casos eram concentrados na região do Baixo-Jaguaribe. Todos os olhos se voltavam para os aviões na Chapada do Apodi e as denúncias de Zé Maria encontravam eco.

Ainda em 2006, a Secretaria de Saúde do Estado disse que houve um “erro de digitação” que superestimou os números de internações por intoxicação na região. De todo modo, os cientistas perceberam que tal “erro” os havia levado ao local certo para estudar  contaminações por agrotóxicos.

Já em 2010, ano do assassinato, fortalecia-se a relação entre o uso indiscriminado de pesticidas e males que iam de uma coceira na pele a câncer: Foram identificadas 23 casos de de câncer em agricultores sujeitos ou não à exposição direta dos agrotóxicos. Em outro estudo, publicado em 2013, de 43 amostras de medula óssea coletadas de trabalhadores rurais, em 11 foram encontradas alterações cromossômicas. “É a etapa inicial para surgimento de um câncer, por isso o dado é grave”, afirmou o médico hematologista Ronald Pinheiro, coordenador da pesquisa.

As descobertas seguiam, e em 2018, uma pesquisa coordenada pela médica Ada Pontes (UFC) alertou para a presença de agrotóxicos no sangue e urina dos pais e de crianças com quadros de puberdade precoce na primeira infância ou má-formação congênita. “Conseguimos mostrar a herança negativa da exposição ao agrotóxico”, afirmou a médica.

Zé Maria foi pioneiro no que gestores públicos e cientistas chamam hoje de “vigilância popular”. Primeiro a perceber e ter coragem de denunciar um fenômeno que, com o tempo, se provou real e grave. O julgamento sobre o seu assassinato está longe de ser um caso isolado. Seja qual for o resultado, será ecoado como grito de justiça ou de protesto do sertão à capital.

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