EM 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) classificou o agrotóxico glifosato como “provável cancerígeno”. Menos de cinco anos depois, no entanto, o Brasil rebaixou o grau de toxicidade do pesticida banido em países como Áustria e Alemanha. Por aqui, o glifosato segue campeão de vendas.
O lobby por trás dessa decisão, contrária à da agência ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), só agora começa a ser revelado, com a análise pela Repórter Brasil dos chamados “Monsanto Papers”, originalmente divulgados em 2019. Até hoje, os documentos que mostram os bastidores da atuação no Brasil da principal fabricante do glifosato não haviam sido investigados.
E-mails internos da Monsanto, comprada pela multinacional alemã Bayer em 2016, mostram que a companhia fez uma lista de cientistas brasileiros que poderiam atuar contra eventuais restrições ao herbicida. Tratava-se de uma estratégia comum, segundo documentos da empresa.
Em mensagens de 2012 e 2013, o então gerente de toxicologia da Monsanto, David Saltmiras, menciona quatro nomes de confiança no país: o médico Flávio Zambrone, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a toxicologista Silvia Berlanga Moraes de Barros, da Universidade de São Paulo (USP), o patologista João Lauro Viana de Camargo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e o agrônomo Edivaldo Domingues Velini, também da Unesp e presidente entre 2014 e 2018 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), do governo federal.
Os Monsanto Papers vieram a público em 2019, durante uma leva de processos judiciais contra o glifosato nos Estados Unidos, e foram fundamentais para condenações que já somam US$ 11 bilhões (R$ 60 bilhões). Há milhares de ações na Justiça norte-americana em que agricultores afirmam ter contraído câncer devido ao uso do herbicida da empresa.
Os documentos vazados não trazem os posicionamentos dos cientistas brasileiros. Mas indicam como a empresa buscava a participação deles em audiências públicas e congressos acadêmicos, além de sugerir até mesmo edições em artigos científicos.
Procurada, a Bayer não retornou até a publicação desta reportagem.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Diretor da Monsanto sugeriu edições em artigo científico de brasileiro
Citado nos Monsanto Papers, o médico João Lauro Viana de Camargo é professor aposentado de Patologia da Unesp. Em 2015, enquanto o uso do glifosato estava sob reavaliação no Brasil, a Monsanto foi surpreendida pela decisão da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) de classificar o glifosato como um “provável cancerígeno para humanos”. O anúncio levou a empresa a montar uma estratégia global de redução de danos.
O plano incluía montar um grupo de especialistas, incluindo Camargo, para realizar estudos refutando as afirmações da Iarc. Em um documento de planejamento, a empresa diz que seu objetivo era “proteger a reputação e a liberdade de operação do Roundup (nome comercial do agrotóxico da empresa), comunicando a segurança do glifosato”. A estratégia também falava em “fornecer cobertura para que as agências reguladoras continuem a tomar decisões de recadastramento com base na ciência.”
A ofensiva da Monsanto resultou em uma série de artigos científicos publicados no periódico Critical Reviews of Toxicology. Dois deles foram assinados por Camargo, em conjunto com outros cientistas. Apesar de a empresa negar qualquer envolvimento nas pesquisas, ofícios internos mostram que a Monsanto teria participado ativamente da produção dos artigos, da redação de manuscritos à edição final por parte de executivos da empresa.
Em um email interno, o Diretor de Estratégia de Avaliação de Segurança de Produtos, William Haydens, admite que analisou um dos artigos coescritos por Camargo e indicou “o que acho que deveria ficar, o que pode ir, e em alguns pontos eu fiz uma pequena edição.”
A Monsanto pagou US$ 350 mil (R$ 1,9 milhão) para uma consultoria científica contratar os especialistas e coordenar o trabalho. Em memorando de comunicação interno analisado pela reportagem, a Monsanto admite que muitos, incluindo Camargo, já haviam trabalhado como consultores pagos pela empresa. Apesar do esforço, a Iarc manteve a classificação do glifosato como potencialmente cancerígeno.
A decisão repercutiu na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que desde 2008 estava reavaliando o glifosato. Em 2016, a agência contratou um parecerista técnico externo pelo valor de R$ 10 mil. Quem ganhou o edital foi a pesquisadora Marize Solano, orientanda de mestrado e doutorado de Camargo, na Unesp. No laudo, Solano discorda da Iarc e diz considerar “pouco provável” que o glifosato seja cancerígeno.
Em nota, a Anvisa afirmou que a contratada cumpriu exigências profissionais e de formação acadêmica, mas não respondeu se tinha conhecimento do vínculo com Camargo. Procurada, Solano não aceitou dar entrevista. Camargo também não respondeu a perguntas sobre sua relação com a Monsanto.
O parecer foi decisivo para a decisão final da Anvisa sobre o glifosato, finalmente anunciada em 2019. Embora tenha aprovado mudanças nas recomendações sobre o uso do produto, a agência não proibiu o glifosato no Brasil e abrandou seu grau de toxicidade. Hoje, o princípio ativo considerado um provável cancerígeno pela agência da OMS é classificado no Brasil como pouco tóxico para humanos.
Médico representou a Monsanto em audiências sobre o glifosato
Já o médico Flávio Zambrone é um velho conhecido da Monsanto. O toxicologista e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fundou a consultoria privada Planitox nos anos 1990, que ainda hoje presta serviço para fabricantes de insumos agrícolas. Ele representou a Monsanto e outras 38 empresas de agrotóxicos durante a reavaliação do glifosato pela Anvisa.
“As empresas se unem e contratam um toxicologista de confiança para que organize os seus dados e suas informações”, afirmou Zambrone em uma audiência pública sobre o processo no Congresso Nacional, em 2019. “Essas informações são fornecidas para a Anvisa usar nas suas avaliações e tomar decisões”, explicou sobre o seu papel.
O médico também defendeu a indústria nas reavaliações de outros dois agrotóxicos: o 2,4 D – usado no cultivo da soja e milho – e o clorotalonil, fungicida utilizado em diferentes plantações, como batata e trigo.
Enquanto a Anvisa avaliava o glifosato, Zambrone fundou outras duas organizações para respaldar o uso de agrotóxicos no país: o Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox), responsável por treinamentos para produtores rurais e profissionais de toxicologia, e o Grupo de Informações e Pesquisas sobre Glifosato (Gipeg), criado para defender o glifosato, principalmente na imprensa.
Em todas essas organizações, o médico contou com o apoio da filha, Maria Vitória Zambrone, especialista em comunicação corporativa e sócia do pai na Planitox. Maria Vitória também criou o serviço de checagem de notícias “Drops”, utilizado pelo portal do médico e comunicador Drauzio Varella, e encerrado em 2020.
Em uma das checagens, o Drops afirmou ser “insustentável” a notícia de que o glifosato tem relação com autismo, sem expor aos leitores a associação direta de sua fundadora com a indústria de agrotóxicos.
Procurado pela reportagem, o Portal Drauzio afirmou, em nota, desconhecer qualquer envolvimento de Maria Vitória Zambrone com as empresas de seu pai. O texto afirma que, “visto a situação atual, que chegou ao nosso conhecimento através desta reportagem, iremos retirar o conteúdo citado do ar”.
O agrônomo e ex-gerente de toxicologia da Anvisa, Luiz Claudio Meirelles, lembra que Flávio Zambrone estava sempre na agência defendendo o lado das empresas. “Ele (Zambrone) usa do prestígio de uma universidade pública para defender interesses privados. Esse viés é inaceitável, na minha opinião”, diz Meirelles, atualmente pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. “Universidade pública deve servir ao bem comum, ao interesse de todos”, complementa.
Procurados, Flávio e Maria Vitória Zambrone não responderam aos questionamentos da Repórter Brasil.
O médico já precisou dar explicações sobre outros possíveis conflitos de interesses em sua atuação. Em 2009, o Ministério Público do Trabalho (MPT) questionou a conduta do toxicologista diante do vazamento de uma fábrica de pesticidas da Shell e da Basf em Paulínia, interior de São Paulo.
O então pesquisador da Unicamp foi chamado para aferir os níveis de contaminação da população local, como parte de um convênio entre a universidade e a indústria. Mas, na época, Zambrone também prestava serviços de consultoria em toxicologia para a Shell e grandes empresas fabricantes de agrotóxicos, por meio da Planitox.
No documento, a procuradora Márcia Kamei Lopes Aliaga afirma que atuação nas duas frentes “deixa entrever que o interesse público e o privado se mesclam, não havendo clara distinção, no caso, sobre tais conceitos”. A procuradora explica que a prestação de serviço de consultoria privada por um professor de universidade pública pode “comprometer a produção científica, tais questões podem ferir princípios éticos e legais da Administração Pública.”
Na época, moradores da região e ex-funcionários da fábrica acusaram o médico de favorecer a Shell, ao produzir laudos técnicos dizendo que não havia indícios de contaminação humana. Outra análise realizada pela prefeitura detectou substâncias intoxicantes em 86% das amostras de sangue analisadas.
‘A guardiã da toxicologia’ e o defensor dos transgênicos
Os outros dois cientistas citados nos Monsanto Papers são a toxicologista Silvia Berlanga de Moraes Barros, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), e o agrônomo Edivaldo Domingues Velini, professor da Unesp – Campus Botucatu.
Berlanga foi presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) nos anos 1990 e continua influente na entidade, que hoje tem a Bayer como “sócia institucional”.
A aproximação da entidade com a fabricante do glifosato teria ocorrido em 2015, no mesmo ano em que a Iarc classificou o glifosato como provável cancerígeno.
Naquele ano, a SBTox chamou a associação que então representava a indústria de agrotóxicos no Brasil, a Andef, para organizar a “agenda científica” do seu congresso anual. Executivos da Bayer, Basf, Syngenta e Dow Agroscience foram palestrantes do evento científico. O episódio gerou uma onda de desfiliações e notas de repúdio entre toxicologistas.
A Repórter Brasil questionou Berlanga sobre sua relação com a multinacional e sobre as críticas de seus pares quanto à proximidade com fabricantes de agrotóxicos. A cientista se negou a dar entrevistas e disse “não ter gostado das afirmações” a seu respeito.
Em nota enviada após a publicação da reportagem, a SBTox afirmou que tem se pautado pela transparência, ética e imparcialidade científica. Segundo a organização, o estatuto da associação permite contar com sócios institucionais, mas essas parcerias não determinam as posições científicas ou administrativas da sociedade.
Ainda segundo a SBTox, a programação do congresso realizado em 2015 foi de “responsabilidade do comitê científico da época, assegurando discussões técnicas e imparciais” sem qualquer inferência da Andef. O texto também afirma que Berlanga não tem influência nas decisões da associação, não fazendo parte da atual diretoria ou do Conselho Consultivo. A entidade destaca ainda que defende o controle no uso de agrotóxicos e que um exemplo desse compromisso foi a moção de repúdio da organização contra a aprovação da nova Lei dos Agrotóxicos A íntegra do posicionamento pode ser lida aqui.
Já o agrônomo Edivaldo Velini é um dos principais defensores do uso de sementes transgênicas no país, outro filão de mercado da Bayer. Essas plantas são mais resistentes ao uso de agrotóxicos e consomem mais dessas substâncias.
Velini foi presidente entre 2014 e 2018 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação responsável pela avaliação e aprovação de sementes transgênicas.
A nomeação de Velini para o cargo gerou manifestações de repúdio de organizações ambientalistas por causa de declarações favoráveis ao glifosato. Em entrevista ao site institucional da Monsanto em 2011, o professor afirmou que “ainda não há um herbicida que possa ser comparado ao glifosato em termos de segurança de uso e benefícios para o agricultor”.
A primeira semente transgênica comercializada no país foi a Soja Roundup Ready, da então Monsanto, no final da década de 1990. O grão foi desenvolvido para gerar maior produtividade com a aplicação do glifosato da companhia e chegou a ter sua venda proibida pela Justiça federal.
Em março de 2005, com a promulgação da Lei de Biossegurança, a CTNBio se tornou responsável por solicitar ou dispensar estudos e relatórios de impacto ambiental para transgênicos. Até então, o Ministério do Meio Ambiente era o responsável por exigir a apresentação desses estudos. Até hoje, no entanto, a Monsanto nunca teve de apresentar os estudos das sementes transgênicas resistentes ao glifosato.
No ano passado, ao receber o Prêmio Personagem Soja Brasil, da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), entidade que mantém na sua diretoria infratores ambientais e acusados de participação nos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, Velini discursou: “Acredito que a minha indicação decorre muito do meu trabalho na CTNBio”, afirmou.
À Repórter Brasil, o professor da Unesp disse que produzir e difundir informações sobre os métodos de controle de ervas daninhas fazem parte das suas atribuições. “Esta é uma atividade que realizo em rotina e que não pode ser reduzida ao termo ‘apoiar agrotóxicos’”, disse.
Atualização
A reportagem foi atualizada em 22 de outubro de 2024 para acrescentar o posicionamento da SBTox.
Leia também