A FAZENDA PAI HERÓI, em Nova Bandeirantes (MT), mudou duas vezes o seu perímetro declarado no Cadastro Ambiental Rural (CAR) entre 2020 e 2023. Na última delas a propriedade, que ocupava uma extensa área no mapa, passou a ser delineada em um estreito corredor (veja imagem abaixo). A alteração excluiu do perímetro declarado embargos antes sobrepostos à fazenda. Entre 2015 e 2016, o pecuarista Waldemar Dallago, dono da propriedade, teve 208 hectares embargados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por desmatar a floresta amazônica sem autorização – área equivalente a 208 campos de futebol.
Mesmo com os embargos ainda ativos, a Fazenda Pai Herói forneceu gado para a JBS em 2024, segundo dados de Guias de Trânsito Animal (GTAs) acessados pela Repórter Brasil. Gigante do setor, a empresa é signatária do TAC da Carne e do Compromisso Público da Carne, além de integrar o programa Boi na Linha, iniciativas para uma cadeia sustentável que determinam que os frigoríficos não comprem de fazendas com áreas embargadas por crimes ambientais.
Após questionamento da Repórter Brasil, a JBS informou que “preventivamente bloqueou a propriedade”. Leia a resposta completa aqui.
A Fazenda Pai Herói também obteve, em 2024, dois financiamentos rurais pelo Banco do Brasil, com recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), criado em 1988 para promover o desenvolvimento da região Centro-Oeste do país, com o fomento a empresários e produtores rurais.
Os dois empréstimos continuam ativos. Pelas regras do Banco Central, propriedades com áreas embargadas não podem obter financiamentos com recursos públicos. Consultado sobre a mudança na área declarada da fazenda no CAR – um tipo de registro público obrigatório a todos os imóveis rurais -, o Banco do Brasil informou não comentar casos específicos, “em respeito ao sigilo bancário”.
Já a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso informou que “identificou manipulação de dados e está em processo de envio dos documentos para a Delegacia do Meio Ambiente para investigação das condutas atreladas aos indícios de fraude e promoverá as autuações pertinentes”.
O caso da Fazenda Pai Heroi é um dos identificados pelo Center for Climate Crime Analysis (CCCA) em um estudo lançado hoje. Ele identificou, entre 2020 e 2024, 15.750 alterações no perímetro de propriedades privadas declaradas no CAR, Essas alterações fizeram desaparecer 4,9 milhões de território que antes constavam dentro do perímetro de propriedades privadas nos registros do CAR.
: Leia também: Fazendeiros mudam área declarada de propriedades e ‘apagam’ registros de desmate
Com os perímetros do CAR alterados, fazendeiros conseguem “apagar” restrições ambientais de suas terras e driblar a legislação. Eles continuam comercializando com grandes frigoríficos e obtendo financiamentos milionários porque, no cadastro, suas áreas não apresentam pendências.
Entre as propriedades mapeadas pela CCCA, a Repórter Brasil identificou quatro situações nas quais o apagamento dos embargos antecede empréstimos rurais, a partir do cruzamento entre os dados de áreas embargadas sobrepostos a CARs alterados e os dados do Sistema de Operações do Crédito Rural e do Proagro (Sicor).
“Os bancos e frigoríficos devem criar bancos de dados com o histórico do CAR para que possam fazer esse monitoramento”, recomenda Heron Martins, coordenador do laboratório de geotecnologia do CCCA.
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Prática ‘usual’
Paulo Rogério de Oliveira, advogado de Dallago, afirmou à Repórter Brasil por telefone que esse tipo de prática é “usual”. “Ele [Dallago] teve um aconselhamento por um engenheiro para tentar alterar, trocar o CAR porque os frigoríficos, em regra, não estão permitindo o abate de animais em propriedade que esteja com embargo ambiental ou qualquer coisa desse tipo. Os frigoríficos não reconhecem, por exemplo, se em uma área de 1.000 hectares o embargo está sobre 10 hectares”, afirmou o advogado.
Para o advogado do pecuarista, “isso tudo decorre de exigências até absurdas das instituições financeiras e até dos frigoríficos”. Ele justificou que o fato de o embargo ser em parte da fazenda e a propriedade toda ficar bloqueada acaba “caminhando para poder colocar a pessoa em uma situação irregular”.
O advogado informou que iria encaminhar informações complementares sobre o caso por email, mas não recebemos novo retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
Fazenda “caminha” 44 quilômetros em alteração de CAR
No Pará, estado que concentra 60% das alterações de CAR por desmatamentos mapeadas pelo estudo da CCCA, a Fazenda Dois Irmãos, em Anapu, não só trocou o perímetro do cadastro como também mudou a propriedade, no papel, para outra localidade.
Em 2016, sua proprietária, Nacime Pereira Fernandes, foi autuada por desmatamento ilegal pelo Ibama, que embargou 21,34 hectares da fazenda – o que é equivalente a 21 campos de futebol. Após isso, a propriedade teve sua posição alterada. O CAR passou a localizar a fazenda a cerca de 44 quilômetros da primeira área declarada. Posteriormente, uma nova mudança subtraiu do perímetro da fazenda registros de desmatamento mapeados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes).
Em 2024, a proprietária obteve dois financiamentos rurais pelo Sicredi e pelo Banco da Amazônia, ambos com recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), classificado pelo governo federal como “um dos principais instrumentos de financiamento da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)”. Os dois empréstimos continuam ativos.
Procurada pela Repórter Brasil, Fernandes informou, por meio de seu advogado, que não quer se pronunciar sobre o caso.
O Sicredi informou que “uma operação de crédito rural vinculada ao CAR citado ocorreu em 2024 em plena conformidade com o Manual de Crédito Rural [MCR], após análise detalhada das condições socioambientais da área, que até o momento, permanece em situação regular”. O Banco da Amazônia também justificou que o empréstimo estava “em conformidade com as normas vigentes no momento da contratação”.
Questionada sobre o monitoramento em alterações de CARs e o caso identificado, a Secretaria do Meio Ambiente do Pará informou que está apurando o caso identificado e que “analisa os CARs constantemente”.
No Acre, fazendeiros “contornam” embargos
A Fazenda Agropecuária Alvorada III, em Brasiléia (AC), é mais uma que modificou o CAR, após o registro de dois embargos por desmatamento dentro de sua área nos anos de 2007 e 2012. A propriedade possuía o formato retangular na área declarada do CAR. Após 2021, o perímetro do CAR mudou. Uma curva contornou os embargos do Ibama para fora do território.
Após o “apagamento” da restrição ambiental, em julho de 2024, Mayk Willi Reis, que cadastrou o CAR como proprietário da terra, obteve um financiamento rural pelo Banco do Brasil. O empréstimo segue ativo. A instituição financeira informou não comentar casos específicos, “em respeito ao sigilo bancário”.
Na Colônia Boa Esperança, em Sena Madureira (AC), uma situação similar. Em 2015, Raimunda Santiago da Silva foi autuada por desmatamento ilegal e teve 8,3 hectares da sua fazenda embargos pelo Ibama. A propriedade já tinha um embargo de três hectares, feito pelo Ibama em 2007, em nome de outra pessoa, mas localizado dentro da colônia. Posteriormente, a área do CAR foi alterada, posicionando a propriedade à direita, com o perímetro contornando o embargo.
Em junho de 2024, a propriedade obteve um financiamento no Banco da Amazônia, com recursos do FNO. O banco informou que “os embargos se tornaram públicos após a concessão do crédito” e que “o Banco está seguindo as diretrizes estabelecidas no Manual de Crédito Rural (MCR) para lidar com situações semelhantes, assegurando a conformidade com a legislação ambiental vigente”.
Heron Martins, do CCCA, destaca a importância de se analisar cada caso identificado no estudo: “Todos os casos devem passar por um aprofundamento para identificar outros elementos. Dessa forma, começa a se desenhar que essa edição teve um objetivo mais claro. É preciso esse aprofundamento para que, se for o caso, esse CAR seja cancelado”.
A Repórter Brasil tentou contato com o advogado de Silva, mas não obteve respostas. A reportagem não conseguiu contactar Mayk Willi.
Questionada, a Secretaria do Meio Ambiente do Acre não enviou respostas sobre o monitoramento em alterações de CAR e os casos identificados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Regras bancárias
O Manual do Crédito Rural do Banco Central veta financiamentos para propriedades incluídas na lista pública de embargos do Ibama e prevê que, caso ocorram embargos na área após a contratação do empréstimo, o contrato poderá ser finalizado.
Para Martins, é necessário que as instituições monitorem as propriedades. “Uma das nossas indicações, tanto para as instituições financeiras quanto para compradores de gado e soja é que eles avaliem o histórico das propriedades. Eles, que são tão eficientes em avaliar elementos para gerar crédito, precisam avaliar também os históricos”, salienta.
Banco do Brasil, Sicredi e Banco da Amazônia informaram que monitoram os cadastros ambientais dos proprietários rurais e que seguem o Manual de Crédito. Leia as respostas na íntegra.
A Repórter Brasil também questionou o Banco Central sobre os quatro casos de empréstimos após embargos e alterações de CAR identificados, porém a instituição não enviou posicionamentos até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
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