Morte de ativista contra agrotóxicos tem 1ª condenação; crime segue sem mandante

Zé Maria do Tomé, líder comunitário que denunciava malefícios dos agrotóxicos no sertão do Ceará, foi executado há 14 anos com 25 tiros. Em 9 de outubro, um homem foi condenado como "articulador" do crime, mas até hoje a Justiça não chegou aos mandantes
Por Melquíades Júnior | Edição Ana Aranha
 25/10/2024

PAI, EU PROMETO não sossegar enquanto não botar na cadeia quem fez isso com o senhor”. 

A promessa de Márcia Xavier, feita ao lado do corpo do pai morto, foi cumprida 14 anos depois, quando o juiz Raimundo Lucena leu a sentença, no último dia 9 de outubro. Na decisão, os jurados confirmaram a culpa de Francisco Marcos Lima Barros, apontado como articulador do assassinato de José Maria Filho. 

O ativista que primeiro denunciou a contaminação por agrotóxicos em comunidades do sertão do Ceará, onde projetos de irrigação atraíram multinacionais da fruticultura, foi vítima de emboscada em 21 de abril de 2010, em Limoeiro do Norte. O assassinato provocou grande mobilização social, nascendo assim o mártir Zé Maria do Tomé.

No aguardado julgamento, o júri concluiu que o homicídio triplamente qualificado teve motivo torpe, cruel e sem chance de defesa. A condenação, 16 anos em regime fechado, trouxe um alento para a família, a viúva Lucinda Xavier e seus três filhos. 

Gabriel, que tinha quatro anos quando o crime ocorreu, agora aos 18 soube em detalhes o passo a passo que levou à morte do pai. Poupado da informação sobre o assassinato na época, aos sete anos chegou chorando da escola depois dos colegas de sala lhe contarem como tudo aconteceu. 

“Pois é, meu filho, não foi acidente. Fizeram ruindade com seu pai”, lembrou a viúva Lucinda, que só o permitiu participar das audiências quando completasse 18 anos. A verdade veio à tona no dia do julgamento e eles se abraçaram, chorando, enquanto a sentença era anunciada.

Francisco Marcos, que já começou a cumprir pena de 16 anos de reclusão, morava na mesma comunidade rural onde vivia o ativista. As evidências contra ele são, principalmente, ligações telefônicas no dia do crime e contradições no depoimento sobre sua relação com os outros acusados pela polícia. Ele foi condenado por ser o articulador de um crime sob encomenda, mas a Justiça nunca chegou ao mandante.

Dos seis réus inicialmente denunciados pelo Ministério Público do Estado do Ceará, Francisco Marcos foi o único a sentar no banco do Tribunal do Júri. Os dois indiciados como executores foram mortos em confrontos com a polícia no curso das investigações. O corpo de outro acusado de envolvimento foi encontrado dez dias após ter prestado depoimento sobre o caso. 

Já os réus indiciados como mandantes, Aldair Gomes e João Teixeira, gerente e proprietário da empresa agrícola Frutacor, foram “despronunciados” no curso do processo. A 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará não viu indícios suficientes para levá-los a julgamento.

Dos seis réus indiciados, apenas um foi a júri. Três morreram e os dois acusados de mando foram impronunciados (Foto: Alex Costa / ASCOMTJCE)
Dos seis réus indiciados, apenas um foi a júri. Três morreram e os dois acusados de mando foram impronunciados (Foto: Alex Costa / ASCOMTJCE)

Embora não estivessem presentes, os nomes dos dois foram repetidamente citados durante o julgamento. Durante a audiência, acompanhada pela Repórter Brasil com exclusividade, os promotores do Ministério Público deram ênfase às evidências públicas do conflito entre Zé Maria e o empresário João Teixeira. 

Eram tantas as conexões levantadas pela acusação que os advogados do acusado Francisco Marcos reclamaram que não era João Teixeira quem estava sendo julgado ali. 

Teixeira é um empresário agrícola do ramo da banana. Além de utilizar a técnica de pulverização aérea em sua fazenda, na época do crime ele era dono de aviões alugados para a pulverização de agrotóxicos. Ele tinha uma relação de crescente divergência com Zé Maria.

Um ano antes de sua morte, o ativista conseguiu pressionar pela aprovação de uma lei municipal proibindo a pulverização aérea em todo o município de Limoeiro do Norte. A lei ficou em vigência durante um ano e foi revogada um mês após seu assassinato. O Ministério Público insiste que Zé Maria foi morto pelas lutas sociais que encampou. 

A investigação policial apontou que Aldair Gomes, funcionário de João Teixeira, fez diversas ligações para Antônio Wellington (morto anos depois em confronto com a polícia). Wellington é quem teria contratado o pistoleiro Westilly Hitler (também morto em outro confronto), responsável por desferir os 25 tiros que tiraram a vida de Zé Maria.

Procurada pela reportagem antes e depois do julgamento, a defesa de Gomes e Teixeira não quis comentar o caso. No processo, os advogados negaram todas as acusações e alegaram inocência.

A empresa de João Teixeira segue como uma das maiores produtoras e exportadoras de frutas do Nordeste. A Frutacor atua em mais de 1.500 hectares, área dez vezes maior que há duas décadas, em suas seis unidades de produção no Ceará, segundo a Agência de Desenvolvimento Econômico do estado. Seus principais produtos são mamão e banana, vendidos no Brasil e exportados para a Europa. 

O território aumenta quando são incluídos os produtores parceiros, que atuam em menor escala e vendem diretamente para a empresa agrícola. O Ceará faturou cerca de US$ 200 milhões em 2023 com a exportação de frutas, um dos cinco maiores estados brasileiros exportadores do segmento.

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‘Chico Mendes do sertão’

“José Maria é o nosso Chico Mendes”, explicou para o júri, ao abrir a sua acusação, a promotora de Justiça Alice Iracema Melo Aragão. Como o líder seringalista, Zé Maria virou mártir e símbolo da luta pelos direitos dos trabalhadores do sertão e por um meio ambiente saudável.

Presente no julgamento, a ouvidora agrária nacional entende que este caso tem um poder simbólico importante e indica que ainda perdura a situação de impunidade. 

“Os poucos casos que resultam em alguma responsabilização, no que inclui o caso Zé Maria, responsabilizam os elos mais fracos da cadeia de responsabilidade”, explica Claudia Dadico, juíza federal aposentada e diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.

Com algumas exceções, ela aponta para um padrão no cenário brasileiro. “O executor foi assassinado, em outras circunstâncias, e acabou não sendo responsabilizado. Os supostos mandantes tiveram como resultado a impronúncia. É muito difícil, no Brasil, que as investigações cheguem ao fim”, avalia. 

Ela defende um protocolo de devida diligência nas investigações de crimes no campo, em especial aqueles envolvendo disputa por terra, águas e florestas.

Familiares e amigos acompanharam o julgamento depois de 14 anos de espera (Foto: Alex Costa / ASCOMTJCE)
Familiares e amigos acompanharam o julgamento depois de 14 anos de espera (Foto: Alex Costa / ASCOMTJCE)

Quando notificada sobre crimes assim, a Ouvidoria Agrária faz colaborações com as autoridades policiais. A ideia é evitar que o Brasil seja novamente responsabilizado por impunidade nas cortes internacionais, como no caso de Gabriel Sales Pimenta. 

Advogado de trabalhadores rurais, ele foi assassinado aos 27 anos com três tiros na cidade de Marabá, Pará, em 1982. As investigações, com omissões flagrantes, renderam uma condenação ao Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que apontou falhas na obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pelo crime.

“Apesar da impronúncia dos mandantes”, o deputado estadual pelo PSOL do Ceará e advogado Renato Roseno vê a condenação de Marcos como um “importante lastro de Justiça”. Ele é autor da única lei estadual que proíbe a pulverização aérea no Brasil, batizada de Zé Maria do Tomé – como o ativista ficou conhecido depois de sua morte. 

No próximo dia 26 de outubro, o Movimento 21, organizado por diversas entidades sociais e acadêmicas e que traz no nome a data do assassinato, realizará um encontro no Ceará para discutir as próximas ações na defesa do ativismo ambiental iniciado por Zé Maria. 

Também será um  momento de debate sobre novos caminhos na busca da responsabilização dos autores intelectuais do assassinato. “Continuaremos falando por Zé Maria, essa voz não será calada”, diz Reginaldo Ferreira, ativista do grupo.

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