LIDERANÇAS INDÍGENAS do povo Pataxó em Prado, no sul da Bahia, denunciam ameaças por parte de produtores rurais e de um vereador. As denúncias foram formalizadas em um ofício enviado ao Ministério dos Povos Indígenas, à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e ao Ministério Público Federal em 29 de outubro.
No documento, acessado pela Repórter Brasil, as lideranças relatam dois episódios ocorridos nos últimos dias, em que mulheres da Aldeia Tibá foram ameaçadas por homens armados quando faziam ações de autodemarcação da Terra Indígena Comexatibá – cujo processo de regularização já foi iniciado pelo governo federal, mas não concluído.
A autodemarcação é uma forma de resistência dos indígenas, que ocupam e delimitam seus territórios tradicionais por conta própria, em resposta ao que consideram lentidão do Estado.
O grupo de mulheres relata que, em 21 de outubro, impediu a derrubada de cajueiros e apreendeu um trator usado para abrir uma estrada. “Nós, mulheres, enquanto protetoras, impedimos a ação e vimos a necessidade de autodemarcação”, afirma uma das indígenas, que não terá seu nome identificado devido às ameaças.
Uma semana depois, as indígenas denunciaram à polícia terem sido ameaçadas por pistoleiros encapuzados, que apontaram armas de fogo e ordenaram que elas deixassem o local, próximo a praias famosas do sul da Bahia, como Cumuruxatiba e Corumbau.
Nos dois episódios, a Polícia Militar da Bahia foi acionada, detendo ao todo cinco suspeitos, além de apreender uma espingarda. Segundo relatos das indígenas, outro suspeito, que portava uma pistola, conseguiu escapar. A Repórter Brasil acessou os boletins de ocorrência com as denúncias feitas pelas indígenas na Delegacia de Polícia Civil de Teixeira de Freitas.
As lideranças indígenas apontaram como responsáveis pelas ameaças os irmãos André e Genivaldo Gama, além do vereador Brênio Pires (Solidariedade).O político foi reeleito para o terceiro mandato consecutivo em Prado, com 469 votos, a maioria deles conquistado no distrito turístico de Cumuruxatiba, onde mora.
Em agosto de 2022, o vereador fez um pronunciamento na Câmara Municipal acusando os indígenas de promover “uma indústria de invasões”.
Procurado, Pires não quis responder às perguntas, mas atribuiu as denúncias a uma rivalidade política com candidatos indígenas derrotados na última eleição.
Contudo, o vereador confirmou que foi ao local do confronto. “Fiquei sabendo que tinha um problema lá e fui tentar apaziguar”, afirmou. Pires diz ter atendido a um chamado de André Gama, presidente de uma associação de produtores rurais e que alega ser o proprietário da área reivindicada pelos Pataxó.
“Quem tiver aqui por perto ande ligeiro, ligeiro mesmo, se não o caldo entorna aqui”, disse Gama em um grupo de WhatsApp de moradores de Cumuruxatiba. “É a nossa chance de ficar livre desse povo”, concluiu na mensagem de áudio, se referindo às indígenas.
Gama disse que não incitou a violência nos áudios. “Convidei os membros da associação para me ajudarem, pois eu estava sendo ameaçado”, justifica. O fazendeiro relata ter ficado cerca de seis horas sem poder sair do local, cercado por indígenas armados com flechas e facões. “Eu fiquei refém dos supostos indígenas por mais ou menos seis horas sem direito de sair do local, e a todo momento estava sob fortes ameaças”, disse, em nota enviada (leia a íntegra aqui).
Segundo o fazendeiro, a TI Comexatibá seria “na verdade” um projeto de assentamento agrário. “As terras mencionadas são destinadas à produção de coco. [Tem] aproximadamente 5 mil pés de coco e mais de 10 mil pés de abacaxi, de onde extraio meu sustento e trabalho com isso há quase 40 anos, pois fui assentado pelo Incra”, afirma.
Gama diz que não ordenou o desmatamento feito recentemente para a abertura da estrada, mas afirmou ter pedido uma máquina para retirar o cajueiro, pois estava atrapalhando a passagem.
“Não sou contra a demarcação de terras indígenas, mas sou contra a autodemarcação e forma como os indígenas estão fazendo tais ações, pois as terras não são propriedades dos mesmos”, afirma.
O irmão de André, Genivaldo Gama, também apontado como responsável pelas ameaças, disse que foi ao local do conflito para ajudar o irmão e que, uma semana depois, teve sua propriedade ocupada pelos indígenas. Relatou também que, ao retirar seus pertences da propriedade, teria sido agredido com pedradas. Leia a íntegra da nota enviada pela família dele e as respostas às perguntas feitas pela reportagem.
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Sobreposição com assentamento
Alvo da disputa, a Terra Indígena Comexatibá tem quase toda a área sobreposta ao Projeto de Assentamento Fazenda Cumuruxatiba, regulamentado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 1987.
Em 2011, o Fantástico, da TV Globo, revelou que grande parte dos lotes do assentamento da reforma agrária foi vendida para construção de mansões. Os novos proprietários tinham perfis distintos aos que se enquadram nos programas de reforma agrária do Incra, incluindo estrangeiros.
Em 2015, a Funai publicou o RCID (Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação) da TI Comexatibá, reconhecendo 28.077 hectares como tradicionalmente ocupados pelo povo Pataxó, mas 93,95% dessa área coincide com o assentamento do Incra. Além disso, a TI também tem 19,62% da área sobreposta ao Parque Nacional do Descobrimento, sob gestão do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Após a publicação do RCID, houve um prazo para contestações administrativas, que foram apresentadas por fazendeiros e outros interessados na área. A próxima etapa seria a Declaração, na qual o Ministério da Justiça analisa o RCID e as contestações, decidindo se emite a Portaria Declaratória, reconhecendo a terra como indígena.
No entanto, essa etapa ainda não foi concluída, e o processo está paralisado. Após a Declaração, ainda seriam necessárias as etapas de demarcação física, homologação e registro para que a terra indígena seja finalmente reconhecida e protegida por lei.
“A autodemarcação da TI Comexatibá, realizada de forma pacífica e legítima, é uma medida essencial de autodefesa contra a contínua invasão de grileiros, que vêm promovendo loteamentos irregulares e desmatamento em áreas nativas de nossa terra”, afirmam as indígenas Pataxó no documento enviado às autoridades.
Procurado, o Incra disse que quando o processo de demarcação da Funai for concluído vai fazer a desintrusão das famílias beneficiárias do assentamento para serem reassentadas em outra área.
A Funai e o ICMBio assinaram, no ano passado, um termo de compromisso com o povo Pataxó da TI Comexatibá para conciliar os direitos da comunidade e a conservação da biodiversidade do Parque Nacional do Descobrimento.
A Repórter Brasil enviou questionamentos para o Ministério dos Povos Indígenas, a Funai e também para o Ministério Público Federal, todos destinatários do ofício das mulheres Pataxó. Contudo, nenhum órgão respondeu até a publicação da reportagem.
Mortes no paraíso
Embora os Pataxó habitem o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, com registros da presença datando do século 15, a disputa pela área é intensa. O território está em uma região valorizada por causa do turismo, que é chamada de “paraíso” pela imprensa especializada em viagens.
Próxima às praias de Cumuruxatiba (distrito de Prado) e de Corumbau (também em Prado, há cerca de 90 km do centro urbano), a região é conhecida pela abundância de pousadas, resorts, luxuosos condomínios e casas de temporada.
Além das ameaças recentes, há um histórico de violência na região. O documento enviado pelo povo Pataxó cita o assassinato de Gustavo Silva da Conceição, um adolescente indígena de 14 anos morto a tiros em setembro de 2022, durante um ataque a uma retomada Pataxó na fazenda São Jorge, localizada dentro da TI Comexatibá.
Também em 2022, dois jovens Pataxó, Nauí e Samuel, foram assassinados na TI Barra Velha, em Itabela, também no sul da Bahia. Em 2023, a líder indígena Maria Fátima Muniz de Andrade Pataxó Hã-Hã-Hãe, conhecida como Nega Pataxó, foi assassinada a tiros em Itapetinga (BA) por um fazendeiro investigado pela Polícia Federal por ter ligação com o movimento Invasão Zero.
Leia também: Cacau e ódio aos indígenas: a origem do movimento ‘Invasão Zero’
A Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública da Bahia também foram procuradas, com questões sobre as ameaças, a proteção dos indígenas e a investigação, mas não retornaram.
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