COAUTOR DA PRIMEIRA LEI estadual do Brasil que proíbe a aplicação aérea de agrotóxicos, o governador do Ceará Elmano de Freitas (PT) cedeu ao lobby do agronegócio. Na última sexta-feira (6), ele surpreendeu sua base ao afirmar que apoia a liberação de drones para a pulverização de lavouras.
Ex-advogado popular do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), Freitas prometeu sancionar a medida ainda este ano, mobilizando os deputados da base governista para votar projetos que estavam parados na Assembleia Legislativa.
No anúncio da decisão, o governador afirmou que foi convencido pela segurança prometida pela tecnologia. Em tese, o drone é mais preciso e garantiria maior proteção ao trabalhador, ao meio ambiente e às comunidades do entorno. Mas dados inéditos obtidos pela Repórter Brasil contestam essa teoria.
Apenas neste ano, 214 comunidades denunciaram contaminações por agrotóxicos aplicados por drone no Maranhão. Os casos correspondem a 94% de todas as denúncias envolvendo pesticidas coletadas pela Fetaema (Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão), pela Rama (Rede de Agroecologia do Maranhão) e pelo Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino de Geografia da Universidade Federal do Maranhão.
“São gestantes que passaram mal, pessoas com coceira, náusea, feridas. Trabalhador rural que perdeu a roça, que teve de correr pra não tomar banho de veneno”, afirma Ariana Gomes da Silva, secretária Executiva da Rama.
Os relatos representam um número recorde no acompanhamento das organizações do Maranhão e revelam que os operadores de drone podem estar ignorando as normas de segurança. Essa é uma das preocupações de especialistas que monitoram as contaminações pelo país: a tendência de alguns setores do agronegócio em “desafiar” as normas.
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Uso ilegal de drones no Ceará
É o que está acontecendo no Ceará, onde moradores de comunidades próximas às lavouras já flagraram drones pulverizando agrotóxicos. As aplicações, que violam a lei estadual, ocorrem à noite para dificultar a fiscalização.
As denúncias apontam para uma das maiores exportadoras de frutas do Brasil, a Agrícola Famosa. Segundo a lista “Maiores empresas do Agro Forbes”, a receita da empresa era de R$ 880 milhões em 2022. Seu principal mercado é a Europa.
Vídeos com drones que estariam sobrevoando a fazenda foram encaminhados de modo anônimo ao gabinete do deputado estadual Renato Roseno (Psol), principal autor da lei, e repassados à Polícia Ambiental do estado.
Quando os policiais bateram na porta da fazenda em Limoeiro do Norte, em outubro de 2023, o coordenador técnico responsável pelos agrotóxicos negou o uso do drone.
A polícia inspecionou a área, mas não achou o equipamento. “Eles são facilmente desmontáveis, cabem na caçamba de uma picape, não são rastreados, é fácil esconder”, comenta o deputado autor das denúncias.
Procurada pela reportagem, a Agrícola Famosa afirmou que “nenhuma irregularidade foi constatada no local e não houve lavratura de auto de infração”. A empresa declarou que não usa drones no Ceará. Leia a manifestação na íntegra.
Outro flagrante em vídeo mostra um drone em operação à noite que estaria borrifando agrotóxicos em uma plantação de bananas da Imperial Agroindústria, próximo a residências. A empresa foi procurada, mas não retornou. A Polícia Ambiental foi questionada se averiguou a denúncia, também encaminhada pelo gabinete do deputado, mas ainda não respondeu. O espaço segue aberto.
A equipe da Repórter Brasil viveu na pele as consequências da violação da lei ao investigar essas mesmas denúncias na região. Ao dirigir em estrada entre duas grandes produtoras de bananas, no horário indicado pelos denunciantes, um forte odor de produto químico invadiu o carro.
Os efeitos foram imediatos: tontura, mal-estar e enjoo. Intoxicada, a equipe teve de ir para o hospital às pressas. Não foi possível avistar o drone, mas a experiência confirmou as denúncias dos moradores – além dos riscos do uso do equipamento.
É neste contexto de pressão do setor privado que o governador petista anunciou sua guinada de posição. Freitas foi procurado por telefone e e-mail, mas não retornou. O espaço segue aberto.
Entre a ciência e o lobby do agro
A declaração do governador acendeu um alerta entre pesquisadores e ativistas que consideram a lei cearense um marco. Entre mais de dez organizações que já emitiram notas em apoio à manutenção da lei estão a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
“Mesmo em condições ‘ideais’, ainda não há acúmulo científico suficiente sobre o uso de drones para garantir proteção das comunidades e rios do entorno”, afirma o pesquisador Fernando Carneiro, da Fiocruz no Ceará.
A falta de pesquisas sobre o uso de drones na agricultura foi o principal motivo para a União Europeia proibir a prática. Por alguns anos, a França autorizou o uso experimental para lavouras com alto declive. Mas o grupo criado pelo governo chegou à conclusão de que ainda não há evidências para garantir a segurança e o país voltou à proibição.
Estudos iniciais na China e Estados Unidos, onde a prática é autorizada, indicam a dificuldade em se obter a prometida precisão. Para atingir o “alvo”, o operador do drone precisa ter controle sobre a velocidade do vento, a altura do drone e o ângulo dos jatos de onde sai o químico. Em experimento financiado pela Chinese Society of Agricultural Engineering, pesquisadores encontraram cenário em que até 55% do volume aplicado pelo drone se dissipou para o entorno.
No cenário nacional, o aumento de casos no Maranhão mostra que “há pessoas não qualificadas operando os drones e causando contaminações”, avalia o pesquisador da Fiocruz.
Clamor social
A lei contra pulverização aérea é um tema especialmente sensível no Ceará. Em 2010, um líder rural que denunciava a contaminação por agrotóxicos aplicados de avião foi assassinado com 26 tiros em um crime sob encomenda.
José Maria Filho era líder de um movimento que levara a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte a proibir a prática. Um mês depois do crime, a lei foi alterada e os aviões agrícolas voltaram a circular.
Oito anos depois do crime, quando a lei estadual foi aprovada, os deputados deram a ela o nome popular de “Lei Zé Maria do Tomé”. Na sua morte nasceu ainda o Movimento 21, grupo de ativistas, cientistas, médicos, advogados e padres que continuam monitorando e denunciando as contaminações.
Entre os muitos que seguem os passos do mártir, está a sua filha, Marcia Xavier. Ela é diretora do Ceresta (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental), premiado neste ano pelo Ministério da Saúde por oferecer um dos melhores monitoramentos da saúde de trabalhadores e comunidades rurais do país.
“Me preocupo porque, para operar um drone, basta fazer um curso à distância”, afirma, lembrando que a atual regulação permite aplicações a apenas 20 metros de comunidades ou escolas.
“É uma decepção ver o governador, que esteve aqui com a gente e se comprometeu contra a pulverização aérea, negando sua própria história”, critica Reginaldo Ferreira de Araújo, ativista do Movimento 21. “Mas não vamos desistir, vamos lotar a galeria da Assembléia Legislativa nos dias da votação. Nosso compromisso com Zé Maria é firme”.
* Colaborou Hélen Freitas
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