ERA POR VOLTA DA 1H da manhã de 1º de agosto deste ano, quando a sirene anti-incêndio da fábrica da BRF em Carambeí (PR) interrompeu o turno de trabalho. “Achei que era treinamento”, conta um dos funcionários. “Meus colegas foram saindo. Eu fui caminhando até mais devagar.”
O trabalhador só se deu conta de que o assunto era sério ao ver a fumaça chegando ao piso superior da planta, dedicada ao processamento de frangos. O térreo já estava tomado pela fumaça. “Era brigadista correndo para um lado e para o outro”, lembra.
De fora da fábrica, ele assistiu às chamas alcançarem o telhado do frigorífico. Naquele momento, os brigadistas já haviam desistido de combatê-las. O incêndio só foi controlado cerca de nove horas depois graças ao trabalho de bombeiros locais e de outras duas cidades paranaenses.
O incêndio na planta da BRF foi mais um de uma série que vem ocorrendo há pelo menos um ano e preocupando sindicatos e pesquisadores em saúde do trabalho.
Foram 12 incêndios em frigoríficos entre dezembro de 2023 e novembro de 2024, segundo o ObAgro (Observatório de Saúde e Trabalho no Agronegócio), formado por médicos e pesquisadores de diferentes universidades. Também foram registradas duas explosões em plantas da JBS: uma em Porto Velho, em Rondônia, e outra em Osasco, na Grande São Paulo.
Das 14 ocorrências, apenas uma teve as causas esclarecidas até o momento. Os demais casos não tiveram os motivos apresentados por autoridades, de acordo com levantamento da Repórter Brasil junto a Secretarias de Segurança Pública estaduais.
A falta de esclarecimentos preocupa especialistas e trabalhadores. Eles apontam a falta de manutenção das plantas como principal motivo para os acidentes, em um cenário de economia aquecida, maior demanda por carne e turnos de trabalho ampliados.
“Estamos bastante preocupados”, diz Leomar Daroncho, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho), à Repórter Brasil. “São muitos casos de incêndio, numa frequência que nos parece cada vez maior, num setor que emprega muita gente”. O abate de animais emprega mais de 500 mil pessoas no país, segundo a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).
A ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), que representa os setores de aves e suínos, nega a falta de manutenção e diz que os frigoríficos passam por revisões periódicas. “As causas foram tornadas públicas, geralmente decorrentes durante a manutenção das plantas, quando a unidade está paralisada e não há processamento no momento”, afirma. A entidade confirma quatro incêndios entre suas associadas em 2024 e diz que realizou recentemente um “treinamento para reforçar cuidados que já são adotados pelas indústrias rotineiramente.”
Um dos casos ainda sem explicação é o incêndio de agosto em Carambeí. Além do fogo na planta da BRF, o incidente gerou o vazamento de cerca de 8 toneladas de amônia usadas para refrigerar carnes. O gás é tóxico e pode causar dificuldades respiratórias, queimaduras no sistema respiratório, edemas no pulmão, náusea e vômitos.
Aulas em duas escolas estaduais tiveram que ser canceladas em razão da ocorrência. Ao fim, ninguém ficou ferido ou foi contaminado, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Paraná e trabalhadores entrevistados pela reportagem. Como não se sabe a causa do fogo, ninguém foi responsabilizado na investigação, ainda em curso.
A BRF declarou que sua unidade de Carambeí, assim como as demais unidades da companhia, conta “com sistema de gestão robusto nos temas de saúde e segurança”. “Quando algum risco é identificado na operação, os protocolos de segurança são imediatamente acionados, garantindo a segurança de todos os colaboradores”, acrescentou a empresa. “É possível afirmar que a produção de alimentos na BRF é altamente segura e conduzida com um compromisso inegociável com a proteção das pessoas, o meio ambiente e a excelência operacional.”
Só no Paraná, também em agosto, pegou fogo em um frigorífico dedicado ao processamento de aves da cooperativa Copacol, em Cafelândia. Já em setembro, um incêndio atingiu a planta da Frangos Pioneiro em Joaquim Távora. Ambas ocorrências também não foram esclarecidos pelas autoridades.
A Copacol não se pronunciou sobre o assunto. A Frangos Pioneiro declarou que a manutenção preventiva é prioridade para a empresa por segurança. “Há equipes de trabalho atuando em tempo integral (24h), o que viabiliza o trabalho, inclusive, no contraturno (da meia-noite às 4h30).”
Já a JBS não comentou as explosões em duas de suas plantas, mas declarou que “segue os mais rigorosos padrões de excelência do setor, cumprindo todos os requisitos legais aplicáveis em segurança e saúde”. “A empresa atua para proporcionar um ambiente de trabalho saudável e com condições seguras para seus colaboradores e prestadores de serviços”, informou. Leia todas as respostas na íntegra.
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Trabalho intenso, pouca manutenção e salários baixos
O procurador do MPT Leomar Daroncho afirma que as plantas frigoríficas são geralmente antigas, construídas há décadas, e longe dos centros urbanos para facilitar a chegada de animais vindos de fazendas e granjas. Dentro delas, o ritmo de trabalho é intenso. Muitas funcionam até 24 horas por dia, sete dias por semana.
Os resultados do setor apontam para uma produção crescente. Só os frigoríficos de carne bovina exportaram 2,4 milhões de toneladas nos primeiros dez meses deste ano, 29% a mais do que no mesmo período de 2023, segundo a Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes).
O salário pago aos trabalhadores, no entanto, é baixo. Gira em torno dos R$ 1.700 por mês, pouco acima do salário mínimo (R$ 1.412), segundo a Rais. Muitos operários acabam pedindo demissão por não aguentar tamanha demanda de trabalho em troca de tal remuneração, diz o procurador. A rotatividade de trabalhadores pode chegar aos 10% do quadro de funcionários mensalmente.
Para Daroncho, o trabalho frenético realizado em fábricas velhas e por trabalhadores nem sempre preparados aumenta o risco de acidentes. “É todo dia gente nova numa planta velha operando no topo de sua capacidade”, diz. “Nenhum empresário quer parar a produção para treinar funcionário ou fazer uma manutenção”, completa.
Vereador de Forquilhinha, em Santa Catarina, Célio Alves Elias (PT) reforça as acusações. Ele foi diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação de Criciúma e Região (Sintiacr) até julho deste ano. Antes, trabalhou como técnico eletricista em frigoríficos do sul catarinense de 1983 a 1996.
Para ele, a terceirização dos serviços de manutenção aumenta os riscos de incêndios em unidades de produção. “Antigamente, eu fazia parte de uma equipe. Quando a fábrica estava parada, a gente entrava para verificar a situação dos fios, instalações, máquinas”, diz Elias. “Hoje essa equipe nem existe mais. Há um desleixo.”
Foi o que aconteceu em dezembro de 2023 em Miraguaí, no Rio Grande do Sul, onde um incêndio atingiu um frigorífico da Mais Frango. Segundo o inquérito policial, o fogo teve início durante um trabalho de soldagem feito por uma terceirizada. Questionada sobre o incidente, a Mais Frango não retornou.
“As empresas querem sempre o menor custo”, reclama Artur Bueno de Camargo, presidente da CNTA (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação). “Quando não resistem à manutenção, terceirizam.”
Procurada, a ABPA disse considerar “leviano atribuir incêndios em frigoríficos à terceirização, tomando como base o caso isolado ocorrido em Miraguaí.”
A 65 km dali, em Frederico Westphalen (RS), um incêndio atingiu uma unidade da Frangos Piovesan em 26 de agosto. Segundo laudo do IGP (Instituto Geral de Perícias) gaúcho, um “fenômeno termoelétrico” – ou seja, um curto-circuito – deu início a um incêndio na área da lavanderia da fábrica por volta das 20h. O fogo se espalhou pelo local e só foi controlado por volta das 3h30 da manhã.
Por conta do incêndio, a Frangos Piovesan suspendeu inicialmente por cinco meses o contrato de trabalho de 80% do seu quadro de seus 354 funcionários. A decisão foi tomada em comum acordo com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Alimentos da cidade para evitar uma demissão em massa.
O delegado de Westphalen diz que as investigações sobre o caso estão em andamento. A Frangos Piovesan não respondeu à reportagem.
Além de Paraná e Rio Grande do Sul, o levantamento do ObAgro também identificou incêndios em frigoríficos de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo.
As secretarias de segurança de Mato Grosso e Rondônia não responderam aos pedidos de informação da Repórter Brasil. A secretaria de Santa Catarina encaminhou o pedido de informação à polícia e aos bombeiros do estado, que não responderam.
Em São Paulo e Rio de Janeiro, as secretarias não conseguiram localizar informações das ocorrências listadas pela ObAgro, apesar de os incêndios terem sido amplamente noticiados pela imprensa local.
Representantes dos frigoríficos não foram responsabilizados em nenhum dos incidentes investigados, até o fechamento desta reportagem.
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Pauta prioritária
A questão dos incêndios e da amônia nos frigoríficos virou pauta prioritária para os sindicalistas desde o ano passado. Camargo, da CNTA, afirma que os casos de vazamento do gás tóxico usado para refrigeração têm crescido no país, colocando trabalhadores e a população em risco.
Outro levantamento do ObAgro mapeou cinco vazamentos do gás em 2015. Em 2023, foram 23 – alta de 360% na comparação entre os dois anos.
Camargo disse que as entidades sindicais já cobraram do governo negociações para o fim do uso da amônia por conta do risco à saúde. Cobraram também aumento da fiscalização das unidades a fim de pressionar empresários a realizar manutenções preventivas periódicas contra acidentes.
“Não há estrutura no Ministério do Trabalho suficiente para fiscalizar o setor”, diz ele. “Houve o concurso unificado para contratação de 900 auditores do trabalho, mas isso ainda está aquém do necessário para a supervisão de tantas unidades.”
“Realmente não é fácil visitar frigoríficos em pequenas cidades, no interior do país, sem equipe suficiente”, ratificou o procurador Daroncho. “Mas é obrigação do governo reestruturar a fiscalização de um setor.”
O MTE confirma ter hoje um quadro insuficiente de servidores, mas diz que o Concurso Nacional Unificado vai permitir o ingresso de outros 900 auditores. O MTE ressalta, porém, que a fiscalização dos frigoríficos é feita por amostragem. “Não é viável obviamente fiscalizar 100% dos estabelecimentos. Essa é uma realidade mundial, que não ocorre apenas no Brasil”, pondera o órgão.
Ainda segundo o MTE, os frigoríficos “possuem obrigação legal de adotar as medidas necessárias para evitar acidentes, preservando a integridade física dos trabalhadores”.
Sobre a amônia, a pasta diz haver normas específicas para redução do risco de vazamentos e de outros incidentes, como incêndios. O ministério informa que os vazamentos de amônia estão entre os incidentes graves mais comuns nos frigoríficos. A pasta não coloca na lista os incêndios, sobre os quais não forneceu estatísticas específicas. “No caso de frigoríficos, o mais comum são acidentes envolvendo vazamento de amônia, acidentes em máquinas, equipamentos e doenças relacionadas aos movimentos repetitivos”, listou. “Frigorífico não é um estabelecimento que costuma ter incêndio.”
A ABPA ressalta que as manutenções preventivas são realizadas em suas associadas e que “eventualmente” ocorrem incêndios no decorrer dos serviços. A associação informa também que o “trabalho nos frigoríficos segue todas as normativas estabelecidas pelo Ministério do Trabalho” e que a “rotatividade que ocorre no setor frigorífico segue índice comum ao visto em outras linhas de produção.”
“Trabalhadores também passam constantemente por treinamentos. Todas as plantas também possuem planos de emergência, e todas as unidades possuem brigadas de incêndio que atuam preventivamente”, acrescenta.
Procurada, a Abiec, que representa 43 empresas do setor, não retornou. O espaço segue aberto a manifestações.
* A reportagem foi alterada em 10 de dezembro de 2024 para ampliar o posicionamento da ABPA
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