Como TikTok e Kwai usam crianças e adolescentes para treinar inteligência artificial

Para ganhar dinheiro nas redes sociais, crianças e adolescentes fazem microtarefas que alimentam sistemas de inteligência artificial. “Todos estão obcecados”, define jovem de 17 anos que relata ter ficado 10 horas seguidas no Kwai para acumular R$ 3
Por Isabel Harari | Edição Carlos Juliano Barros
 09/12/2024

MARTINA*, de 13 anos, ganhou R$ 10 assistindo a vídeos publicitários no Kwai. Ela dividiu o pagamento em duas partes: metade para o leite dos sobrinhos e o restante para pirulitos no mercado próximo à sua casa, na zona leste de São Paulo (SP). 

A 2 mil quilômetros de distância, no Território Indígena do Xingu (MT), o adolescente Ware, de 16 anos, também foi atraído pela expectativa de ganhar renda nas redes sociais. Com os R$ 5 que faturou vendo anúncios, comprou uma camisa: “não é muito, mas dá para o gasto”, comenta.

Capturados pela promessa de dinheiro fácil na internet, crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, ouvidos pela Repórter Brasil, têm gastado diversas horas do dia em “microtarefas” no Kwai e no TikTok. 

Curtindo perfis de usuários, compartilhando links, visualizando vídeos e fazendo pesquisas simples no buscador, eles formam – mesmo sem saber – uma mão de obra invisível e barata que alimenta os sistemas de inteligência artificial (IA) dessas plataformas digitais.

Nos depoimentos colhidos pela reportagem, há relatos sobre exposição a conteúdos não recomendados para essas faixas etárias, como linguagem violenta e jogos de azar – as chamadas “bets”. “Tinha muita agressão”, lembra Luan, adolescente indígena de Baía da Traição (PB).

Também são comuns reclamações atribuídas ao uso excessivo de smartphones. “Meus dedos ardiam de tanto que eu ficava na tela do celular”, conta Martina. Uma adolescente indígena de 17 anos, da zona sul da capital paulista, afirma ter passado 10 horas seguidas no Kwai para juntar apenas R$ 3. “Todos estão obcecados”, define. 

Além disso, não há clareza sobre o uso das informações pessoais de crianças e adolescentes, consideradas ainda mais sensíveis pela LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Trabalho com ares de diversão

Em tese, é preciso ter 13 anos para abrir uma conta nos dois aplicativos e pelo menos 18 (ou autorização dos pais, no caso do Kwai) para ganhar dinheiro com microtarefas. 

Na prática, os usuários ouvidos pela Repórter Brasil dizem não enfrentar grandes dificuldades para burlar essas regras. Na hora de criar um perfil, nenhuma comprovação de idade é exigida, para além da digitação da data de nascimento. Já na retirada de dinheiro, contas de parentes ou amigos são facilmente utilizadas.

Crianças e adolescentes passam horas no smartphone para juntar centavos (Foto: Isabel Harari / Repórter Brasil)
Crianças e adolescentes passam horas no smartphone para juntar centavos (Foto: Isabel Harari / Repórter Brasil)

As atividades são realizadas com ares de brincadeira, como se fizessem parte de um jogo. “Eu não conseguia parar de assistir os anúncios para ganhar dinheiro. Eu comprava meus doces e ficava feliz da vida, achando que estava rica”, lembra Martina. 

“É um trabalho que se vende como uma forma de diversão”, explica Matheus Viana, psicólogo e professor da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) . “Mas quais são os efeitos no médio e longo prazo para a saúde mental desses jovens?”, questiona. 

Microtarefas não são propriamente uma novidade na internet. Há anos, plataformas estrangeiras, como a Amazon Mechanical Turk, e nacionais, como a Ganhar nas Redes, recrutam pessoas para diferentes tipos de trabalho. 

Recebendo centavos (ou ainda menos) por cliques, elas enfrentam jornadas cansativas e são pagas para, por exemplo, categorizar produtos em marketplaces ou inflar a base de seguidores de perfis nas redes sociais. 

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Mais recentemente, Kwai e TikTok têm incorporado essas microtarefas às suas próprias plataformas. Ou seja, em vez de terceirizar o serviço, elas estimulam seus próprios usuários a treinar seus sistemas de IA. 

“Claramente, é um trabalho de dados”, afirma Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto e diretor do DigiLabour. Segundo ele, o modelo “in house” (internalização) é uma forma encontrada pelas empresas para garantir mais controle sobre o uso dos dados produzidos e moderados pelos seus usuários.

“Ao invés das crianças ou dos adolescentes estarem estudando, ou desenvolvendo alguma outra habilidade que é propícia para a idade, eles já estão entrando numa lógica de mercado de trabalho muito mais cedo do que deveriam, e de forma extremamente precarizada e sem direitos”, pondera Renan Kalil, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) e doutor em direito pela USP. 

Na avaliação de Kalil, as empresas que oferecem esses serviços devem ser responsabilizadas já que, “se a plataforma em si não existisse, aquele trabalho não ia acontecer”. 

Em nota enviada à reportagem, o TikTok afirma usar “tecnologia de machine learning” e contar com um time de moderadores “para identificar contas que possivelmente pertençam a pessoas com menos de 13 anos”. Já o Kwai alega monitorar “hábitos e comportamentos para identificar possíveis usuários que informaram a idade de forma incorreta”. Leia a íntegra das respostas aqui e ao longo desta reportagem.

Plataformas pagam centavos para usuários

Para começar a trabalhar, basta abrir os aplicativos. Com apenas um clique, os usuários já começam a monetizar, como relata Tomás, de 9 anos. 

Ele assistia a vídeos no Kwai quando notou na timeline um ícone arredondado com o desenho de um baú de pirata, recheado de moedas douradas. “Eu apertei na ‘bolinha’ e vi que tinha como tirar dinheiro”, conta. 

Crianças e adolescentes são expostas a linguagem violenta e jogos de azar (Reprodução: Kwai)
Crianças e adolescentes são expostas a linguagem violenta e jogos de azar (Reprodução: Kwai)

Paula, uma adolescente de 17 anos da Terra Indígena Tenondé Porã, na zona sul da capital paulista, também entrou no mundo das microtarefas por não resistir ao baú do Kwai Bônus. “Eu cliquei e me viciei”, admite. 

Para cada tipo de tarefa, há uma “recompensa”. Em ambas as plataformas, os pagamentos são feitos por meio de uma moeda virtual própria, que pode ser trocada por dinheiro de verdade. Para conseguir R$ 1, é preciso acumular 10 mil Kwai Golds ou 10 mil pontos no TikTok. 

A visualização de um anúncio no Kwai de ao menos 30 segundos, por exemplo, paga cerca de 280 Kwai Golds (ou R$ 0,028). Já o “bônus refeição”, em que o usuário precisa fazer um mero “check in” no horário do almoço ou do jantar para se mostrar conectado ao aplicativo, rende R$ 0,002. 

No TikTok, a dinâmica é bastante similar. Dez minutos assistindo a vídeos são recompensados com 2.600 pontos (R$ 0,26) e 18 pesquisas realizadas no buscador da plataforma valem R$ 0,03.

Para participar de um “desafio super esportivo” proposto pelo Kwai, Ware – o jovem do Território Indígena do Xingu – precisou ativar a localização de seu celular para possibilitar a contagem de seus passos. 

Carol, da zona leste de São Paulo, também participou da gincana: “quanto mais você anda, mais você ganha [moedas virtuais]”. Já André, de 11, é mais crítico, apesar da pouca idade: “todo mundo pegou essa modinha e estava caminhando por aí. Se ganhasse dinheiro mesmo, eu ia andando lá para o Tatuapé [outro bairro da zona leste paulistana]!”

A Repórter Brasil questionou o Kwai sobre a finalidade específica da coleta dos dados produzidos no desafio dos passos. A nota enviada pela empresa, no entanto, não respondeu a essa pergunta. 

Na avaliação de especialistas, a atividade pode gerar uma informação valiosa para as empresas: a geolocalização de seus usuários. 

“Desafio super esportivo” proposto pelo Kwai solicita geolocalização de usuários (Reprodução: Kwai)
“Desafio super esportivo” proposto pelo Kwai solicita geolocalização de usuários (Reprodução: Kwai)

Segundo Rafael Zanatta, co-diretor da Data Privacy Brasil, a “brincadeira” contraria a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Em seu artigo 14, a legislação prevê regras mais duras para o tratamento de informações de pessoas com menos de 18 anos. “Você não pode explorar esses metadados agregados de crianças e adolescentes para fins comerciais”, explica.

Um cuidado maior com esse tipo de informação também está previsto no PL 2628/2022, aprovado no final de novembro (27) pelo Senado Federal. A proposta busca assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital e determina que as plataformas garantam “o modelo mais protetivo disponível em relação à privacidade e à proteção e privacidade de dados pessoais”.

Para Zanatta, o problema começa com o próprio design das plataformas. Ele cita ferramentas muito usadas pelos aplicativos – como os chamados “loot boxes”, anúncios de recompensas aleatórias – para prender a atenção do público. “A gamificação introduz um elemento de ludicidade, onde, na verdade, não é uma atividade puramente lúdica”, afirma.

Levi, de 15 anos, concorda: “Você fica lá assistindo sem parar. Aperta a bolinha, vai ter um bônus. Aí vai ter outro [bônus] para você recolher [moedas]. Todo dia você tem que recolher. Se não, eles não vão pagar mais”, afirma. “Ganhamos centavos. Eles [as plataformas] tiram bem mais”, complementa. 

As diferentes tarefas oferecidas pelas plataformas servem para “treinar” os sistemas de inteligência artificial. 

A visualização de vídeos e a realização de check ins, por exemplo, alimentam a IA por meio da geração e qualificação de dados (como o tempo de visualização e a quantidade de logins), informações importantes para algoritmos de aprendizagem. 

Já o trabalho de digitar pesquisas e moderar conteúdos publicitários serve para a classificação, rotulagem e verificação desses dados. “Isso envolve outras etapas do treinamento de dados, que operam processos de aperfeiçoamento contínuo para garantir que os parâmetros de aprendizado sejam sempre aprimorados”, explica Matheus Viana, da UFMG.

No TikTok, dez minutos assistindo a vídeos são recompensados com 2.600 pontos, o equivalente a R$ 0,26 (Reprodução: TikTok)
No TikTok, dez minutos assistindo a vídeos são recompensados com 2.600 pontos, o equivalente a R$ 0,26 (Reprodução: TikTok)

O que dizem as plataformas

 Em posicionamento enviado por e-mail à reportagem, o Kwai informa que a idade mínima para ingresso na plataforma é 13 anos e que “a segurança dos usuários” é “a principal premissa da sua atuação”. 

A empresa afirma ainda proibir conteúdos que “retratem ou promovam abuso, exploração, perigo ou qualquer forma de dano a menores” e que tem “políticas de publicidade bastante rígidas para a proteção e a navegação segura de menores”. 

Também em nota, o TikTok alega fazer uma “moderação proativa” para “localizar e remover qualquer conteúdo ou interação que possa ser relacionada a comportamentos nocivos à (sic) menores”. 

O texto diz ainda que, para participar do programa de bônus e ser remunerado por microtarefas, é preciso ter mais de 18 anos e aceitar os termos de uso da plataforma. Caso o usuário infrinja as regras, ele pode ser banido. “Esse gerenciamento é feito pela nossa equipe de moderação, com auxílio de inteligência artificial”, informa o posicionamento. Leia aqui as respostas na íntegra.

TikTok já foi condenado na Justiça e Kwai é investigada pelo MPF

Kwai é o apelido para “Kuaishou”, “mão leve” ou “mão rápida” em mandarim. No Brasil desde 2019, o aplicativo acumula 60 milhões de usuários. O TikTok, seu principal concorrente, contabiliza mais de 82 milhões de perfis no país. 

As empresas têm expandido sua atuação no mercado nacional, com lançamento de plataformas de e-commerce, programas de capacitação de empreendedores e até  patrocínio no Big Brother Brasil

Mas não estão livres de polêmicas. No início de novembro, a ByteDance Brasil, dona do TikTok, foi condenado em primeira instância pela Justiça do Trabalho em São Paulo por não tomar providências contra a exploração do trabalho infantil artístico.

Reportagens já mostraram que o Kwai liberou conteúdos explíticos de abuso sexual de crianças e espalhou fake news. A Joyo Tecnologia Brasil, que gere o Kwai no país, é investigada pelo Ministério Público Federal por impulsionar conteúdos e perfis falsos.

*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades

Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana

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