NA TERRA INDÍGENA AMANAYÉ, no sudeste do Pará, a promessa de demarcação continua no papel desde 1945. Enquanto a área não é oficialmente reconhecida, árvores são cortadas para abastecer as madeireiras de Décio José Barroso Nunes, o Delsão, fazendeiro com histórico de crimes ambientais e trabalhistas.
Condenado em 2019 como mandante do assassinato de um sindicalista no sul do estado, Delsão é dono da fazenda Lacy. A propriedade concentra 71% da exploração madeireira registrada entre 2007 e 2023 no território Amanayé, de acordo com levantamento feito a partir de imagens de satélite pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), a pedido da Repórter Brasil.
Dos 38 mil hectares desmatados em 26 anos dentro da área reivindicada pelos indígenas, 27 mil estão no interior da fazenda Lacy, segundo cruzamento de dados com base no Simex (Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira).
Outro estudo do Imazon, publicado em julho, mostra que nos últimos quatro anos a reserva Amanayé foi a mais afetada pela extração ilegal de madeira em todo o Pará. Foram desmatados quase 3 mil hectares (o equivalente a cerca de 3 mil campos de futebol), aponta a pesquisa.
“Delsão é um dos maiores exploradores de madeira na Amazônia”, afirma Ronaldo Anamaye, um dos coordenadores da Fepipa (Federação dos Povos Indígenas do Pará) e líder do povo Amanayé. Ele denuncia a falta de ação por parte das autoridades, que têm permitido o avanço das ameaças ao território, incluindo a derrubada de mata nativa, a grilagem de terras e a violência contra os indígenas.
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O fazendeiro já foi autuado 15 vezes por desmatamento ilegal pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis), entre 2001 e 2020 – as multas somam R$ 10,7 milhões. Em oito casos, as autuações também resultaram em embargos (interdição) de 1,7 milhão de hectares de suas propriedades.
Delsão também já figurou na Lista Suja do trabalho escravo, cadastro oficial do governo federal que torna públicos os dados de empregadores responsabilizados por esse crime. Ele teve seu nome incluído na relação após dez trabalhadores serem resgatados de uma de suas fazendas, no Pará, em 2010. Os trabalhadores dormiam ao lado de agrotóxicos e estavam em situação de servidão por dívida, segundo os auditores-fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).
A Repórter Brasil solicitou um posicionamento para o escritório de advocacia que representou Delsão no julgamento do caso de homicídio. Contudo, o escritório informou que não atende mais o fazendeiro.
A reportagem também tentou contato com outra advogada, que defende o fazendeiro em processos trabalhistas, mas ela não retornou as mensagens, nem atendeu às ligações. A matéria será atualizada se um posicionamento for enviado.
MPF pressiona por demarcação da TI Amanayé
Em agosto, após pressão dos indígenas, o MPF (Ministério Público Federal) ingressou com uma ação civil pública na Justiça para que a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) atualize os estudos necessários à demarcação da Terra Indígena Amanayé.
Além da demarcação, o MPF pede também o bloqueio dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR) que se sobrepõem ao território. Os CARs são registros obrigatórios autodeclaratórios realizados por proprietários de fazendas. Em alguns casos, são usados de forma fraudulenta para legitimar a posse de terras públicas.
A ação civil pública aponta a existência de 37 CARs sobrepostos à reserva, indicando a apropriação ilegal de áreas dentro do território. Dentre eles, está o da fazenda Lacy, de Delsão.
“Alguns fazendeiros têm georreferenciado a área e têm se valido da terra para o cultivo de monoculturas”, afirma o procurador da República responsável pela ação, Sadi Machado. “Com isso, existe uma dispersão dos próprios indígenas, existe uma saída forçada, até por uma questão de autoproteção”, complementa.
Para Ronaldo Amanayé, a desintrusão (retirada dos invasores) e a demarcação do território são ações urgentes para proteger a vida das famílias que residem na reserva. “Depois também será preciso fazer a recuperação das áreas degradadas e desmatadas”, completa. “Espero que a gente consiga ter o nosso território livre dos fazendeiros, dos sojeiros e dos madeireiros, que estão destruindo e desmatando”, afirma.
Segundo a liderança, as invasões para exploração de madeira ocorrem há décadas. Atualmente, a chegada das plantações de soja e o uso de agrotóxicos também têm afetado os indígenas do território.
A ação do MPF solicita ainda que a União e a Funai paguem uma indenização de R$ 3 milhões em danos morais pela demora da demarcação. Os recursos seriam destinados a políticas públicas para os indígenas Amanayé.
A reportagem procurou a Funai, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.
Processo de demarcação se arrasta há oito décadas
A espera pela demarcação da terra indígena já dura quase 80 anos. O Decreto de 1945, que delimitou o território Amanayé, ainda não foi efetivado. Por causa do imbróglio, fazendeiros realizaram por conta própria, em 2021, o georreferenciamento das áreas abertas dentro da reserva, na expectativa de se apropriarem do território.
Enquanto isso, o povo Amanayé vê sua cultura e seu modo de vida tradicional ameaçados. O Censo 2022 apontava uma população de apenas 244 pessoas da etnia.
Fazendeiro responde em liberdade por assassinato de sindicalista
Atualmente, Delsão recorre em liberdade da sentença de primeira instância que o condenou pela morte do sindicalista José Dutra da Costa, o Dezinho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, em novembro de 2000.
Já a viúva do líder assassinado, Maria Joel Costa, conhecida como Joelma, vive sob escolta policial há 20 anos. “Não tenho mais liberdade de ir e vir”, conta. Após o assassinato do marido, ela assumiu a presidência do sindicato.
Aos 52 anos, Joelma se tornou um símbolo de resistência na luta contra o avanço do agronegócio e contra a violência no campo. Na última eleição, foi a única vereadora do PT eleita em Rondon do Pará.