Governo diz ter assentado 71 mil famílias em 2024, mas MST contesta dados

Ministério do Desenvolvimento Agrário diz ter assentado 71 mil famílias em 2024, 42% a mais que no ano anterior. MST afirma que número não corresponde à realidade e argumenta que dados se referem à regularização de famílias que já estavam em lotes
Por Vinicius Konchinski | Edição Paula Bianchi
 23/01/2025

O NÚMERO DE FAMÍLIAS assentadas em projetos de reforma agrária no terceiro mandato de Lula é a nova frente de discórdia entre o governo federal e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Enquanto o movimento considera como efetivamente assentadas as famílias alocadas em terras novas, compradas ou desapropriadas para essa finalidade, o governo coloca na conta a regularização de famílias que já estavam em lotes. Isso engloba, por exemplo, a titulação de áreas já ocupadas ou a inclusão de agricultores em programas de crédito.

Em dezembro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou que 71.414 famílias foram assentadas durante 2024. O número representaria um aumento de 42% em relação a 2023. A cifra também seria quase dez vezes superior à de 2022, último ano da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), opositor declarado da redistribuição de terras no país.

Segundo o MST, esses números não correspondem à realidade. O movimento calcula que cerca de 100 mil famílias estão acampadas à espera de terra hoje no país. Dessas, 65 mil são de seus militantes. 

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Ceres Hadich, membro da coordenação nacional do movimento, diz que nenhuma família vinculada ao MST foi assentada. Ela, aliás, desconhece quaisquer assentamentos criados em 2024. “Efetivamente, desde o ano passado, nenhuma família foi para terra. Não temos uma foto para mostrar”, diz.

No balanço do governo, das 71 mil famílias registradas como assentadas, 38,9 mil foram “regularizadas – ou seja, 55% do total. Outras 18,6 mil famílias foram “reconhecidas”” – 26% –, o que também não entra no cálculo do MST.

“Regularização é o reconhecimento de gente que já está na terra. Não veio terra nova”, explica o também dirigente do MST João Paulo Rodrigues. “Tinha uma casa do Minha Casa Minha Vida. Se colocou uma pessoa nova, eu não posso colocar aquilo como uma nova casa construída. A casa é a mesma”, compara.

Órgão responsável pelo assentamento de famílias sem terra, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou à Repórter Brasil que comprou 19,6 mil hectares de terras em 2024. Seriam as primeiras aquisições de áreas para reforma agrária realizadas desde 2021. Os dados foram enviados em resposta a um pedido feito por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).

Insatisfação com liderança do MDA

Dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com número de famílias assentadas até 2024 e a serem assentadas nos próximos dois anos (Foto: reprodução/MDA)
Dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com número de famílias assentadas até 2024 e a serem assentadas nos próximos dois anos (Foto: reprodução/MDA)

A divulgação do número de famílias assentadas às vésperas da virada do ano ocorreu como uma espécie de resposta ao endurecimento das críticas do MST ao governo Lula e principalmente ao ministro do MDA, Paulo Teixeira (PT).

Dias antes, João Pedro Stédile, líder histórico do MST,  chamou Teixeira de incompetente durante sua participação no podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato. Reivindicou publicamente uma reunião com Lula para tratar de acordos firmados com o governo e que não estariam sendo cumpridos.

Teixeira é militante histórico do PT. Ele, contudo, tem carreira política ligada ao movimento por moradia. Sua escolha para a pasta responsável pela reforma agrária nunca foi bem vista pelo MST e por outros movimentos populares de luta pela terra.

“Eu lembro do acampamento lá de Parauapebas (PA), que é o maior que nós temos, com quase 3 mil famílias. Houve um incêndio, morreram nove pessoas. Lula ficou consternado e determinou que até o Natal todas as famílias deveriam estar em cima da terra. Já se passou um ano daquela determinação do presidente e nada aconteceu”, reforçou Stédile, em entrevista à Repórter Brasil, em dezembro.

O ministro Teixeira chegou a anunciar também em dezembro cinco áreas que seriam redistribuídas a sem-terras. Havia uma expectativa de que os decretos de desapropriação fossem assinados por Lula ainda em 2024, beneficiando cerca de 800 famílias. Até hoje, isso não ocorreu.

“Não seria algo grande para a necessidade da reforma no país, mas seria algo simbólico”, disse Hadich, que ainda confia no avanço desses processos.

Conceitos amplos

Os conceitos usados pelo governo para classificar os dados sobre reforma agrária não são novos. Aparecem há anos em balanços oficiais e, na prática, inflam estatísticas sobre redistribuição de terras.

Uma “regularização” – a categoria que engloba mais famílias nas estatísticas de 2024 – pode significar identificação, delimitação, demarcação ou titulação de terras já ocupadas. Por exemplo: famílias de um quilombo de ocupação antiga, mas de demarcação recente, também seriam consideradas assentadas. Nesse caso, não há entrega de um novo lote a agricultores sem terra.

Já o “reconhecimento” nada mais é do que entender que famílias já ocupantes de lotes deveriam ser consideradas como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), política que garante crédito subsidiado e outros auxílios. Neste caso, também não há um novo lote entregue ao sem-terra.

No balanço do governo, ainda existem os chamados “assentamentos diferenciados”. Esses são, geralmente, terras de mata, inclusive na Amazônia, concedidas a famílias para que possam ser exploradas de forma ambientalmente regulada. Em 2024, das 71 mil famílias assentadas, 9,3 mil estavam em assentamentos diferenciados – ou seja, 13% do total.

Já 4,3 mil famílias – 6% das 71 mil – foram assentadas em “assentamentos tradicionais”, segundo o MDA. Esses, sim, são assentamentos em que famílias recebem um novo lote do governo para trabalhar com agricultura. Essas terras são geralmente advindas de desapropriação ou mesmo de compras de territórios feitas pela União.

Procurado para comentar os questionamentos do MST sobre balanço da reforma agrária, o MDA não se pronunciou. Já o Incra culpou o governo Bolsonaro pela “paralisação da reforma agrária”. Acrescentou que o Programa Terra da Gente e a contratação de novos servidores por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) devem destravar esse trabalho.

De acordo com o Incra, até 13 de dezembro, 136,5 mil famílias haviam sido identificadas no país em situação de vulnerabilidade social no campo, o que inclui acampados, mas também em situação de conflito fundiário ou vivendo em condições precárias. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.

Dificuldades

Segundo Gerson Teixeira, engenheiro agrônomo e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), que monitora estatísticas da reforma agrária no país há anos, o assentamento de famílias em novas terras é cada vez mais raro. 

Ele atribui essa situação a enorme dificuldade para se desapropriar terras no país. Ela está relacionada a obrigações legais impostas ano após ano pelo Congresso Nacional, as quais transformaram a reforma agrária numa “galinha dos ovos de ouro de ruralistas”.

“Para desapropriar, o governo precisa indenizar o dono da terra à vista, com base num cálculo que inclui uma série de fatores, o que deixa isso caríssimo”, afirma Teixeira. “A desapropriação surgiu como uma punição ao latifundiário que não utiliza sua terra. Hoje, é um negócio praticamente impossível de se realizar no Brasil”, complementa.

Em um único lote de 100 hectares, os moradores do Acampamento Nova Aliança vivem e plantam de tudo um pouco, o que lhes rendeu o apelido de “a horta”. Eles esperam que a área do assentamento seja novamente destinada à reforma agrária (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Acampamento Nova Aliança, em Itanhangá (MT). Segundo Incra, 136,5 mil famílias haviam sido identificadas no país em situação de vulnerabilidade social no campo
(Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

De acordo com Teixeira, vale mais a pena para o governo comprar uma terra para distribuí-la a sem-terras do que desapropriá-la. O preço de uma grande fazenda no Brasil, no entanto, chega a atingir a casa do bilhão de reais. Em tempos de arrocho orçamentário e metas fiscais ousadas, quase não sobra recursos para tal finalidade.

Teixeira pessoalmente disse não ter tido acesso a informações sobre as compras de 19,6 mil hectares de terra pelo Incra em 2024 e que, por isso, não poderia confirmá-las. Acompanhando a execução orçamentária do Incra, ele ratifica só que, sim, houve compras – o que é um avanço.

Ele lembrou que as aquisições são pequenas ante à necessidade dos acampados à espera de terra no Brasil e até para histórico do Incra. Há dez anos, em 2014, o órgão comprou 415 mil hectares de terra –mais de 20 vezes a área comparada em 2024. Em 2005, pico histórico das compras, foram 13,4 milhões de hectares – 600 vezes mais.

“Se o conceito original de desapropriação não for resgatado, será cada vez mais difícil fazer ações de reforma agrária no Brasil”, alerta.

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