Igreja no Pará esconde homenagem a Dorothy Stang, 20 anos após execução

Pintura em tributo à missionária norte-americana está ocultada por um pano em paróquia de Anapu (PA), município onde Dorothy foi executada por bater de frente com latifundiários e desmatadores. Duas décadas após o crime que chocou o mundo, só um dos cinco condenados permanece preso
Por Daniel Camargos | Edição Carlos Juliano Barros
 30/01/2025

UM PANO BEGE cobre o fundo do altar da igreja Santa Luzia, em Anapu, no Pará, ocultando a pintura que homenageia a memória de Dorothy Stang. A missionária católica norte-americana foi executada com seis tiros há 20 anos, em 12 de fevereiro de 2005, em um crime que chocou o mundo. 

O padre responsável pela paróquia alega que a decisão de esconder a obra em tributo à freira – ícone da defesa de trabalhadores sem-terra e voz ativa na denúncia contra latifundiários e desmatadores da Amazônia – não tem motivação política. 

No entanto, amigos e militantes de movimentos sociais enxergam no ato uma maneira de “invisibilizar” a luta pela reforma agrária, numa região marcada há décadas por sangrentos conflitos por terra.

“É uma tentativa de apagar uma luta por reforma agrária ambientalmente diferenciada para a Amazônia”, lamenta Tarcísio Feitosa, ambientalista que conviveu com Dorothy e hoje atua na coalizão internacional Florestas & Finanças.  

Anapu é uma das cidades mais violentas da região, palco de centenas de conflitos fundiários. Ocupa o 13° lugar no ranking de mortes violentas intencionais nas cidades da Amazônia Legal, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A população de 35 mil habitantes se espalha por um imenso território, equivalente ao tamanho de países como a Jamaica ou o Catar. 

Desde o assassinato de Dorothy, outras 21 pessoas foram executadas por questões ligadas à terra, segundo dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra), braço da igreja católica que atua com trabalhadores rurais.

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Padre diz que fiéis se ‘incomodavam’ com pintura

Pintado quatro anos após o crime de ampla repercussão internacional que  escancarou a violência dos conflitos por terra na Amazônia, o painel retrata Jesus Cristo crucificado em uma árvore, vestido com roupas simples, chapéu de palha, pele queimada pelo sol, como se fosse um posseiro ou um trabalhador rural sem-terra. 

Ao lado de Jesus, sobre troncos de árvores cortadas, estão representadas a irmã Dorothy e o padre Josimo Tavares, também assassinado em 1986 no Maranhão, após sofrer ameaças de fazendeiros. Assim como a freira, o padre fazia parte da CPT.

“A maioria dos fiéis dizia que quando ia rezar não gostava de ver a pintura e os desenhos”, justifica o padre Josemar Lourenço, a respeito do pano bege tampando o altar. Ex-investigador da Polícia Civil da Paraíba, o padre foi ordenado há quatro anos e, imediatamente, assumiu o comando da igreja em Anapu. 

Lourenço diz que atendeu a uma demanda da comunidade e que o assunto foi discutido em uma reunião do conselho pastoral, onde a maioria optou por ocultar a homenagem à irmã Dorothy. “Não tem relação com a política”, garante o religioso. Ele cita ainda uma orientação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para a retirada da imagem.

O antropólogo e professor Edmilson Rodrigues discorda. “Partes da Igreja, que são financiadas por fazendeiros, tentam inviabilizar figuras emblemáticas, como a irmã Dorothy”, afirma ele, que é autor de uma tese no doutorado sobre a sacralização de lideranças camponesas na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Ao saber que a homenagem a Dorothy no altar estava coberta por um pano, o procurador-regional da República, Felício Pontes, afirmou ter ficado arrasado. “Depois entendi que aqueles que são contrários a tudo que Irmã Dorothy fazia ainda estão por aí, e suas influências atingem até mesmo a Igreja Católica”, pondera o procurador, que atuou na investigação e denúncia dos assassinos da missionária. 

Cinco homens foram condenados por tramarem e executarem o assassinato da religiosa. Apenas um deles segue atrás das grades, de acordo com a Seap (Secretaria de Administração Penitenciária do Pará): Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, que efetuou os seis disparos. 

Clodoaldo Carlos Batista, comparsa no momento da execução, cumpre pena em regime domiciliar, assim como Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, e Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, ambos condenados como mandantes do crime. Já Amair Feijoli Cunha, o Tato, responsável pela ponte entre os mandantes e os executores, cumpre pena em regime aberto.  

Funeral de Dorothy em 2005, em Anapu, no Pará; estado continua sendo palco de violência no campo, com 12 das 31 vítimas de 2019 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Funeral de Dorothy em 2005, em Anapu, no Pará (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Dorothy Stang ‘não tinha medo de morrer’, recorda ambientalista

Nascida em Ohio, Estados Unidos, em 1931, Dorothy chegou ao Brasil três décadas depois e viveu no interior do Maranhão, Ceará e Paraíba. Em 1982, ela se estabeleceu em Anapu, na região do médio Xingu paraense, onde foi assassinada aos 73 anos. 

No início dos anos 2000, Tarcísio Feitosa trabalhava na CPT, em Altamira, e recebia, no início de cada semana, a visita de Dorothy no escritório da entidade. Ela chegava com uma pilha de papéis manuscritos, contendo denúncias detalhadas sobre fazendeiros e grileiros que estavam promovendo desmatamento ilegal na região. 

Feitosa recorda que enviava as denúncias por fax para o Ibama. “Os fiscais iam até os locais, confirmavam a destruição e multavam os fazendeiros”, conta.

O ambientalista Marcelo Marquesini, que entre 2003 e 2004 foi o coordenador geral de fiscalização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), lembra que Dorothy costumava se dirigir tanto à sede do órgão ambiental, quanto à do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em Brasília, dizendo que queria falar com o presidente.

“Não marcava e ficava esperando dias até ser atendida”, recorda. Marcelo se aproximou de Dorothy, tornou-se amigo dela e afirma que as informações fornecidas pela freira foram fundamentais para as operações do órgão na região do médio Xingu.

Eram os primeiros anos do governo Lula, com a ministra Marina Silva à frente da pasta do Meio Ambiente. O Ibama contratava novos servidores concursados, as verbas para atividades de fiscalização aumentavam e a reforma agrária avançava na região, com a criação de novos assentamentos. “O Estado começou a funcionar e isso incomodou demais a gangue local, que formou um consórcio para matar a Dorothy”, afirma Marquezine. 

O ambientalista recorda que muitos a consideravam teimosa e turrona, mas ele discordava: “Era aguerrida e lutadora e não tinha medo de morrer”. Feitosa se emociona ao lembrar da freira e lembra  o jeito calmo, a meticulosidade e a paciência para explicar e entender os detalhes dos imbróglios fundiários da região, provocados, em grande parte, pelos governos da ditadura militar (1964-1985).

Detalhe da sepultura de Dorothy Stang, missionária que viveu a maior parte da vida na Amazônia lutando pelos direitos humanos e pela distribuição justa da terra para camponeses pobres (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A origem do problema remonta à década de 1970, quando os militares iniciaram a colonização das terras às margens da BR-230, a Transamazônica, que estava em construção. Ofereciam títulos provisórios de posse que, para serem efetivados, exigiam que as propriedades se tornassem produtivas.

Isso, no entanto, não aconteceu. Os  títulos provisórios também não foram cancelados. Os forasteiros começaram, então, a vender essas terras e os compradores passaram a derrubar a floresta para extrair madeira.

É nesse contexto que Dorothy chega a Anapu e começa a lutar para que aquelas terras, consideradas devolutas, fossem destinadas à reforma agrária. Sob o governo do então presidente Lula, foram oficializados os primeiros assentamentos na região, em 2003. Dorothy foi assassinada dois anos depois.

Feitosa diz que a primeira vez em que ouviu a expressão “ecologia” foi por meio de Dorothy. “Ela entendia que na Amazônia não caberiam assentamentos onde a floresta não fosse valorizada. Dizia que era preciso viver com a floresta em pé e viva”, recorda.

A luta da freira foi fundamental para que o governo brasileiro criasse modelos de assentamento da reforma agrária voltados para preservação da floresta, como os Projetos de Desenvolvimento Sustentável, conhecidos como PDS. Foi justamente em um PDS, chamado “Esperança”, que Dorothy foi executada. Com paciência e coragem, ela ainda tentou dissuadir os assassinos contratados para matá-la.

Segundo os depoimentos dos assassinos à Justiça, Dorothy teria dito: “Olha, meu filho, eu sei como é, vocês são mandados como soldados. Vocês querem terra, venham junto com a gente”. Em seguida, abriu a bíblia e leu um trecho do Sermão da Montanha no Evangelho de Mateus: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Após receber o primeiro tiro na barriga, já caída, recebeu os outros cinco disparos.

Dorothy também conseguiu mapear como fazendeiros usavam dinheiro público da Sudam, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, para financiar atividades ilegais, como o desmatamento e a contratação de milícias armadas para atacar trabalhadores rurais sem-terra.

O procurador Felício Pontes entende que seu papel hoje é fazer o contrário daqueles que  tentam apagar a memória da missionária. “Mostrar que o pensamento e atitude de Irmã Dorothy são ainda mais atuais e necessários nestes tempos”, afirma. 

Padre afirma ser importante conservar memória de Dorothy, mas diz que ‘maioria não liga’

Em frente ao túmulo da missionária Dorothy Stang, uma cruz lembra os nomes de todas as vítimas de conflitos por terra em Anapu (PA) (Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Ao lado do túmulo da missionária está uma cruz vermelha com o nome dos 21 camponeses que foram assassinados devido aos conflitos fundiários em Anapu após 2005 (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

O nome de todas as 21 pessoas mortas em conflitos por terra em Anapu desde 2005 estão em uma cruz vermelha cravada no túmulo da missionária. A sepultura está localizada em um espaço da CPT, um oásis de árvores nativas e frutíferas na área urbana do município, dividido ao meio pela rodovia Transamazônica. 

Foi para este espaço que os apoiadores de Dorothy, em sua maioria assentados da reforma agrária, levaram as telhas e as madeiras da casa da missionária, que ficava ao lado da igreja. O material foi utilizado para construir um viveiro de mudas. 

O padre Lourenço afirma que a casa estava “em ruínas”, e que a igreja precisava do local para realizar uma obra. “Eles mesmo fizeram questão de desmanchar e levaram para o cantinho deles, com o povo dela (Dorothy)”, detalha o padre. 

Na visão do padre, a maioria da população de Anapu é indiferente à memória de Dorothy.  “Tem uma minoria que dá todo valor a história dela, mas a maioria nem liga. Tem também uma minoria que critica”, explica. 

A “minoria que critica”, por sinal, comemorou a morte da missionária, conforme destacou a ministra do meio ambiente Marina Silva, que ocupava o mesmo cargo em 2005. “Foi uma coisa impressionante. Dentro da caminhonete estava o corpo daquela mulher frágil e na hora que o carro entrou em Anapu teve um foguetório”, disse em entrevista à Repórter Brasil em 2021.  A ministra estava em outra região do Pará e, ao saber da execução, seguiu para Anapu. 

O padre diz considerar importante preservar a memória da freira. Ele planeja construir uma nova igreja e transformar a atual em um museu para Dorothy. Contudo, não há orçamento nem previsão para o início da obra. 

A pintura foi feita, em 2009, pela freira da mesma congregação de Dorothy, a norte-americana Janet Mullen. O trabalho foi concluído na Sexta-feira da Paixão. Na ocasião, o trabalhador que representa Cristo crucificado foi pintado com os olhos fechados. No Sábado de Aleluia, Mullen retornou à igreja durante a noite e pintou novamente os olhos, para que eles ficassem abertos no Domingo de Páscoa.  

Sucessor de Dorothy em Anapu também foi perseguido

Na época da pintura, quem comandava a paróquia de Anapu era o padre Amaro Lopes de Souza. Durante 13 anos, entre o assassnato da freira e 2018, ele foi o sucessor da religiosa no apoio aos trabalhadores rurais sem-terra da região. Contudo, em 2018, ele foi acusado de “liderar uma organização criminosa”, chegando a ficar preso por 92 dias. 

Leia também: Bolsonaristas promovem cruzada contra sucessor de Dorothy Satang

A principal acusação era de que Souza incentivava a invasão de propriedades privadas. “Se fiz algo de errado foi ajudar a colocar a terra na mão do trabalhador”, afirmou o padre em entrevista concedida à Repórter Brasil, logo após deixar a prisão. Padre Amaro hoje atua como pároco em outra cidade paraense. 
No final do ano passado, o substituto de padre Amaro,  Josemar Lourenço, celebrou uma missa na fazenda de Laudelino Délio Fernandes. Na época do assassinato de Dorothy Stang, Fernandes chegou a ser investigado como um dos mandantes da execução da missionária, sob alegações de ter escondido em uma de suas fazendas um dos mandantes posteriormente preso e condenado pelo crime.

Padre Josemar Lourenço, celebrou uma missa na fazenda de Laudelino Délio Fernandes (camisa verde). Na época do assassinato de Dorothy, Fernandes chegou a ser investigado como um dos mandantes da execução da missionária, sob alegações de ter escondido em uma de suas fazendas um dos mandantes (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Fernandes não foi indiciado, nem julgado por participação na morte da religiosa. No entanto, já foi condenado por crimes ambientais e sentenciado ao pagamento de R$ 5 milhões por envolvimento em fraudes da Sudam. 

A perseguição ao padre Amaro foi liderada por um político e madeireiro da região, Silvério Fernandes.  Assim como seu irmão Laudelino, Silvério passou incólume, mesmo após denúncias de ameaças a Dorothy em 2002. Segundo relato feito pela própria religiosa à Polícia Federal, ele teria oferecido uma carona para a missionária e teria avisado para ninguém invadir suas terras, ou “teria sangue até a canela”.

Um pouco santa, um pouco onça

Se parte da comunidade e quem comanda a Igreja em Anapu tenta apagar a memória de Dorothy, entre os trabalhadores rurais, acampados e assentados no imenso território da cidade, a freira é cultuada como uma santa. 

Visitando casas de moradores do assentamento, a reportagem notou que em várias há um altar com imagens de Cristo, uma imagem de algum santo, flores e uma foto da missionária. Em uma das casas, no Projeto de Assentamento Mata Preta, a fotografia que compunha o altar era prosaica: Dorothy montada em um burrinho.

“A Dorothy é vista de uma maneira diferente dos santos de barro, da Idade Média. Ela tem a dimensão do santo que almoçou na casa das pessoas, batizou o filho delas e dormiu em uma esteira de palha no chão”, explica o antropólogo Edmilson Rodrigues, professor da Faculdade de Música do Espírito Santo.

Rodrigues pesquisou no douturado como as narrativas rituais sobre líderes sindicais e agentes pastorais assassinados são apropriadas por coletivos rurais e indígenas, transformando-os em mártires e “encantados”. Em particular, ele analisou a transformação de Dorothy Stang em mártir da floresta, e seu papel no imaginário popular da região de Anapu.

O antropólogo vê nessa adoração uma relação com o Padre Cícero, considerando que grande parte dos trabalhadores rurais da região da Transamazônica no médio Xingu paraense migraram dos estados nordestinos como Ceará, Piaui e Maranhão, fortemente devotos de Padre Cícero, considerado santo pelos fiéis, mas sem o reconhecimento da igreja católica.  

Além da santificação por parte daqueles que conviveram com ela, Rodrigues identificou um outro componente amazônico no culto a freita: “Já me disseram que ela foi vista sob a forma de uma onça próximo ao local do seu assassinato, no PDS Esperança”. Dorothy teria então, como se diz na Amazônia, se encantado em onça.

Com 35 mil habitantes, a área urbana de Anapu ocupa uma pequena porção do imenso território do munícipio, cortado ao meio pela rodovia Transamazônica na região do médio Xingu paraense (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil)
O corpo de Dorothy está sepultado em um espaço da Comissão Pastoral da Terra, onde ela se reunia com trabalhadores rurais quando era viva (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil)

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Foto antes: Lilo Clareto/Repórter Brasil | Foto depois: Reprodução/Paróquia Santa Luzia/Facebook