Brasil tem 145 mil famílias acampadas à espera de terra

Levantamento do Incra obtido com exclusividade pela Repórter Brasil aponta demanda por reforma agrária maior que a estimada pelo governo e pelo próprio MST
Por Vinicius Konchinski | Edição Paula Bianchi
 24/02/2025

O BRASIL TEM PELO MENOS 145.100 famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. O número foi levantado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação.

A pesquisa revela que há mais pessoas militando por terras do que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) pensavam. Até então, o movimento estimava cerca de 100 mil famílias acampadas.

Este é o primeiro dado oficial sobre a demanda nacional por assentamentos e atende a uma determinação do presidente Lula, expressa em decreto assinado em agosto de 2023. Segundo o levantamento, são 2.045 acampamentos de sem-terra no país.

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Para o governo federal, as operações de combate a garimpos ilegais e para desintrusão de terras indígenas na Amazônia contribuíram para o aumento do número de acampados, já que milhares de trabalhadores teriam sido retirados dessas cadeias econômicas ilegais.

Já lideranças do MST apontam outros motivos. Eles afirmam que famílias pobres de zonas urbanas estão migrando para o campo em busca de melhores condições de vida. Além disso, o movimento critica a política de reforma agrária do governo e diz que o total de novos assentamentos é insuficiente para a demanda.

Até o final de 2024, o governo informava ter assentado 71 mil famílias, mas o MST diz que os dados são inflados, pois o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) contabiliza não só as famílias alocadas em terras novas (que seriam apenas 5.800), mas também as famílias que já estavam em lotes e passaram por processos de “regularização” ou “reconhecimento”. As 5.800 famílias assentadas, portanto, representariam apenas 4% da demanda total de acampados no país.

Pará e o novo perfil de assentado

O Pará é o estado com a maior demanda por terra, com 29 mil famílias acampadas. De acordo com o Incra, no maior acampamento do Brasil, o Terra e Liberdade, em Parauapebas (PA), há pelo menos 3.500 famílias ligadas ao MST à espera de terra.

Lá, em dezembro de 2023, um incêndio iniciado por uma explosão na rede elétrica que atende o espaço matou nove pessoas. Lula determinou que o ministro Paulo Teixeira, do MDA, fosse ao local e prometeu assentar as famílias do território até o Natal daquele ano. Até hoje, segundo o MST, nenhuma delas recebeu um lote.

Famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. O número foi levantado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). (Mapa: Repórter Brasil/Rodrigo Bento)
Famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. Pará, Mato Grosso do Sul e Bahia são os estados com famílias esperando (Mapa: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Segundo quem mora no local, de lá para cá, o acampamento só cresceu. “Quando eu cheguei aqui [no final de 2023], eu olhava para os lados e só via pasto”, disse Lucas Souza de Oliveira, 28 anos, militante do MST. “Agora, é só barraco.”

Lucas mora com quatro crianças e a esposa, que está grávida, numa casa de palha em meio ao acampamento. Sobrevive do que consegue plantar ao redor do aglomerado de habitações e do dinheiro que sua companheira ganha como manicure e vendedora de salgados.

Ele nem sempre foi agricultor. Já morou em São Paulo, onde deixou um filho e trabalhou em diversas funções na construção civil. Resolveu se estabelecer no acampamento após perceber que a vida na cidade lhe parecia mais difícil.

“Aqui eu vivo melhor. Conto com a ajuda de todos e busco uma solução definitiva para minha família”, disse ele, explicando os motivos que o levaram ao Terra e Liberdade.

Migração interna

Lucas representa bem o perfil dos acampados brasileiros, avalia Pablo Neri, dirigente nacional do MST no Pará. Ele diz que muitas pessoas que compõem a demanda da reforma agrária são, na verdade, ex-moradores de cidades brasileiras pobres, que decidiram migrar em busca de melhores oportunidades de trabalho em municípios grandes, mas não as encontraram e, em vez de se estabelecerem em favelas, aderiram aos acampamentos.

Parauapebas, por exemplo, é um centro de atração de migrantes. A população do município cresceu 73% entre 2010 e 2022, segundo o Censo de 2022, passando de 153 mil para 263 mil habitantes. É hoje uma das maiores cidades do estado.

Lucas Souza de Oliveira, 28 anos, militante do MST e morador do Terra e Liberdade, em Parauapebas (PA) (Foto: Arquivo pessoal/Repórter Brasil)
Lucas Souza de Oliveira, militante do MST e morador do Terra e Liberdade, e a sua esposa em Parauapebas (Foto: Arquivo pessoal)

A migração para lá é explicada pelo aumento da atividade de mineração. No município está a mina de Carajás, explorada pela Vale. Mas o trabalho da multinacional não garante empregos nem desenvolvimento para Parauapebas, segundo Neri. O dirigente afirma que o projeto atrai muitos migrantes em busca de oportunidade, mas a maioria consegue uma colocação na atividade.

“Os maiores acampamentos do país e os locais onde mais crescem são justamente nos territórios em que projetos extrativistas, de produção de commodities minerais e agrícolas, mais avançam”, disse ele. “São projetos que têm apoio do atual governo, mas que geram conflitos pela terra.”

O presidente Lula e mais dois ministros estiveram em Parauapebas no último dia 14 para anunciarem investimentos de R$ 70 bilhões da Vale para expansão da mineração de ferro e cobre em Carajás. Neri estima que o projeto “Novo Carajás” só aumente a demanda por terra no Pará. “Não há contrapartida prevista para a situação dos acampados.”

Efeito colateral da fiscalização

O perfil dos acampados e os motivos que os levaram aos acampamentos ainda não foram completamente mapeados pelo governo, segundo Maíra Coraci Diniz, a nova diretora de Obtenção de Terras do Incra. Mas ela aponta algumas razões para esse movimento crescente, dentre elas as operações de combate a garimpos ilegais e para desintrusão de terra indígenas.

“Você escuta histórias no Pará de gente que estava em Roraima em garimpo ilegal, de gente que saiu da terra indígena do Alto Rio Guamá, da Apyterewa”, disse ela à Repórter Brasil, citando duas reservas paraenses.

Desde o início do governo Lula, sete operações para desintrusão de terras – retirada de invasores não indígenas do local – já foram realizadas. Cinco delas ocorreram na região Norte, a que tem o maior número de acampados. Quatro operações foram no Pará. 

Diniz disse ainda que o governo está trabalhando para buscar alternativas de assentamento para os acampados. O Incra informou ao final de 2024 ter resolvido a demanda por terra de mais de 71 mil famílias em 2024, incluindo as que foram regularizadas ou reconhecidas como assentadas para inclusão no Programa Nacional de Reforma Agrária.

Atualização constante

A diretora do Incra afirmou também que a pesquisa sobre famílias acampadas é um trabalho permanente, que será atualizado e aprimorado constantemente. “Estivemos em cada acampamento, conversamos com cada família. Pela primeira vez, temos informações confiáveis sobre elas”, ressaltou. “Claro que podemos voltar aos acampamentos para recontagens ou encontrar outros acampamentos não visitados. Mas acho que, hoje, temos uma noção segura da nossa demanda.”

Diniz também ressaltou que o termo “acampados” é usado na pesquisa, mas não significa necessariamente que famílias estejam vivendo em barracas. Ela explicou que, como acontece no Terra e Liberdade, muitas famílias cadastradas vivem em casas precárias. Segundo ela, essas pessoas sobrevivem basicamente do Bolsa Família e de bicos que conseguem arrumar enquanto esperam por um lote.

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