Brasil tem 145 mil famílias acampadas à espera de terra

Levantamento do Incra obtido com exclusividade pela Repórter Brasil aponta demanda por reforma agrária maior que a estimada pelo governo e pelo próprio MST
Por Vinicius Konchinski | Edição Paula Bianchi
 24/02/2025

O BRASIL tem pelo menos 145.100 famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. O número foi levantado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação.

Este é o primeiro dado oficial sobre a demanda nacional por assentamentos. Segundo o levantamento, hoje existem 2.045 acampamentos de sem-terras no país.

A pesquisa revela que há mais pessoas militando por terras do que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) pensavam. Até então, o MST estimava cerca de 100 mil famílias acampadas.

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Revela também que, além de maior, o número está crescendo. Isso ocorre, em parte, por conta de ações do próprio governo e por conta de sua falta de capacidade de alocar quem precisa de terra num lote da reforma agrária.

Até o final de 2024, o governo Lula informava ter assentado cerca de 5,8 mil famílias em terras desapropriadas ou compradas para a reforma agrária. O número, além de pequeno na visão do MST, é contestado pelos sem-terras, conforme mostrou o Repórter Brasil.

Pará tem mais acampados

Ainda que todas essas famílias tenham sido realmente assentadas, elas não representam nem 4% da demanda total de acampados no país. São cerca de um quinto das cerca de 29 mil famílias acampadas só no Pará, estado com a maior demanda por terra.

De acordo com o Incra, no maior acampamento do Brasil, o Terra e Liberdade, em Parauapebas (PA), há pelo menos 3,5 mil famílias ligadas ao MST à espera de terra.

Lá, em dezembro de 2023, um incêndio iniciado por uma explosão na rede elétrica que atende o espaço matou nove pessoas. Lula determinou que o ministro Paulo Teixeira, do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), fosse ao local e prometeu assentar as famílias do território até o Natal daquele ano. Até hoje, segundo o MST, nenhuma delas recebeu um lote.

Famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. O número foi levantado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). (Mapa: Repórter Brasil/Rodrigo Bento)
Famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. O número foi levantado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). (Mapa: Repórter Brasil/Rodrigo Bento)

Segundo quem mora no acampamento, de lá para cá, o acampamento só cresceu. “Quando eu cheguei aqui [no final de 2023], eu olhava para os lados e só via pasto”, disse Lucas Souza de Oliveira, 28 anos, militante do MST. “Agora, é só barraco.”

Lucas mora com quatro crianças e a esposa, que está grávida, numa casa de palha em meio ao acampamento. Sobrevive do que consegue plantar ao redor do aglomerado de habitações e do dinheiro que sua companheira ganha como manicure e vendedora de salgados.

Novo perfil de assentado

Ele nem sempre foi agricultor. Já morou em São Paulo, onde deixou um filho e trabalhou em diversas funções na construção civil. Resolveu se estabelecer no acampamento após perceber que a vida na cidade lhe parecia mais difícil.

“Aqui eu vivo melhor. Conto com a ajuda de todos e busco uma solução definitiva para minha família”, disse ele, explicando os motivos que o levaram ao Terra e Liberdade.

Pablo Neri, dirigente nacional do MST no Pará, disse que Lucas representa bem o perfil dos acampados brasileiros. Ele disse que boa parte das pessoas que compõem a demanda da reforma agrária no país são, na verdade, ex-moradores de cidades pobres brasileiras, que decidiram migrar em busca de melhores oportunidades de trabalho, não as encontraram e, em vez de se estabelecerem em favelas, resolveram aderir a acampamentos.

Parauapebas, por exemplo, é um centro de atração de migrantes. A população da cidade cresceu 73,1% só entre 2010 e 2022, segundo Censo. Passou de cerca de 153 mil habitantes para 263 mil em 12 anos, hoje uma das maiores do Pará.

Lucas Souza de Oliveira, 28 anos, militante do MST e morador do Terra e Liberdade, em Parauapebas (PA) (Foto: Arquivo pessoal/Repórter Brasil)
Lucas Souza de Oliveira, militante do MST e morador do Terra e Liberdade, e a sua esposa em Parauapebas (PA) (Foto: Arquivo pessoal/Repórter Brasil)

A migração por lá é explicada pelo aumento da atividade de mineração no município. Fica em seu território a mina de Carajás, explorada pela Vale. O trabalho da multinacional, no entanto, não garante emprego nem desenvolvimento para Parauapebas, segundo Neri. Não é coincidência, portanto, que fique lá o maior acampamento de sem-terras do país.

“Os maiores acampamentos do país, os locais em que os acampamentos mais crescem, são justamente nos territórios em que projetos extrativistas, de produção de commodities minerais e agrícolas, mais avançam”, disse ele. “São projetos que têm apoio do atual governo, mas que geram conflitos pela terra.”

O presidente Lula e mais dois ministros estiveram em Parauapebas na sexta-feira (14) para anunciarem investimentos de R$ 70 bilhões da Vale para expansão da mineração de ferro e cobre em Carajás. Neri estima que o projeto “Novo Carajás” só aumente a demanda por terra no Pará. “Não há contrapartida prevista para a situação dos acampados.”

Efeito colateral da fiscalização

Maíra Coraci Diniz, a nova diretora de Obtenção de Terras do Incra, disse que o perfil dos acampados no país e o motivo que os levou aos acampamentos ainda não foram completamente mapeados pelo governo. Contudo, ela enxerga, baseada em conversas de campo realizadas com as famílias à espera de terra, outros motivos para o crescimento da demanda pela reforma agrária, principalmente na região Norte.

Para Diniz, operações realizadas por este governo para combate a garimpos ilegais e para desintrusão de terra indígenas acabaram por tirar o trabalho – ilegal – de milhares de brasileiros. Sem perspectivas e formas de sustento, uma boa parte dessas pessoas acabou em acampamentos sem-terra.

“Você escuta histórias no Pará de gente que estava em Roraima em garimpo ilegal, de gente que saiu da terra indígena do Alto Rio Guamá, da Apyterewa”, disse ela, citando duas reservas paraenses homologadas em 1993 e 2007, respectivamente.

Desde o início do governo Lula, sete operações para desintrusão de terras – retirada de invasores não-indígenas do local – já foram realizadas. Cinco delas ocorreram na região Norte, a que tem o maior número de acampados. Quatro operações foram no Pará. 

Diniz disse que o governo está trabalhando para buscar alternativas de assentamento para os acampados. O Incra informou ao final de 2024 ter resolvido a demanda por terra de mais de 71 famílias em 2024, incluindo as que foram regularizadas ou reconhecidas como assentadas para inclusão no (Programa Nacional de Reforma Agrária.

O levantamento dos acampados, aliás, é uma determinação do presidente Lula, expressa em decreto assinado em agosto de 2023. Ele dialoga com o esforço do Executivo em prol do avanço da reforma agrária no país.

Atualização constante

A diretora do Incra disse que a pesquisa sobre famílias acampadas é um trabalho permanente, que será atualizado e aprimorado constantemente. Reconheceu que, neste momento, ele representa bem a demanda por terra no Brasil. 

“Estivemos em cada acampamento, conversamos com cada família. Pela primeira vez, temos informações confiáveis sobre elas”, ressaltou. “Claro que podemos voltar aos acampamentos para recontagens ou encontrar outros acampamentos não visitados. Mas acho que, hoje, temos uma noção segura da nossa demanda.”

Diniz também ressaltou que o termo “acampados” é usado na pesquisa, mas não significa necessariamente que famílias estão vivendo em barracas. Ela explicou que, como acontece no Terra e Liberdade, muitas famílias cadastradas vivem em casas precárias. Segundo ela, essas pessoas sobrevivem basicamente do Bolsa Família e de bicos que conseguem arrumar enquanto esperam por um lote para trabalharem.

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