Estivadores relatam turnos dobrados e acidentes não registrados em Santos

Estivadores dizem que ritmo de trabalho intenso e turnos dobrados estão causando lesões repetitivas, principalmente em trabalhadores de carteira assinada; subnotificação de acidentes é outra queixa da categoria
Por Gabriel Daros | Edição Diego Junqueira
 06/02/2025

DE SANTOS (SP) – Erguer longas barras de metal fazia parte do trabalho de Rui Mateus de Almeida Júnior, estivador no porto de Santos (SP), o maior do país. Ele atuava na peação – a fixação de contêineres nos navios para evitar deslocamentos em alto-mar. Demitido após lesionar as duas mãos, Rui enfrenta dificuldades para realizar tarefas simples e contesta a forma como foi dispensado da empresa.

Rui afirma ter sido vítima de uma fraude trabalhista da sua ex-empregadora, a Santos Brasil, alegando que a companhia não reconheceu as lesões como acidente de trabalho e lhe negou a estabilidade de um ano no emprego. “Eu perdi a força. Se eu pegar um copo assim, ele escapa da minha mão e eu não sinto”, conta Rui sobre as sequelas que carrega há quatro anos e limitam sua capacidade profissional.

Assim como ele, outros estivadores e o sindicato da categoria ouvidos pela Repórter Brasil descrevem uma rotina de risco no porto de Santos, onde a intensa carga de trabalho e a realização de “turnos dobrados”, com até 12 horas de duração, são comuns. Apesar da exigência de medidas de segurança, há relatos de que elas nem sempre são seguidas da forma adequada pelas operadoras dos terminais.

A ocupação de estivador é a segunda com mais mortes decorrentes de trabalho no município de Santos, segundo dados mais recentes da plataforma SmartLab, iniciativa do MPT (Ministério Público do Trabalho) e da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que compila informações oficiais do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). 

Foram quatro óbitos entre 2012 e 2022, atrás apenas da categoria “ajudante de motorista”, com cinco. A estatística não inclui a mais recente vítima: Cláudio Robert do Nascimento Nusa, de 49 anos, 17 deles como estivador. 

Funcionário da Ecoporto, ele morreu em janeiro deste ano após ser atingido e arremessado no porão de um navio por uma carga de madeira. Procurada pela reportagem,  a empresa não respondeu até o fechamento da matéria. O texto será atualizado, se um posicionamento for enviado.

Já o número total de acidentes de trabalho com estivadores em Santos oscilou entre 2012 e 2022, com subidas e descidas ao longo do período. Em nível nacional, os dados apontam uma tendência de queda, com redução de 50% em dez anos.

Para Bruno José dos Santos, presidente do Sindestiva (Sindicato dos Estivadores de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão), até houve melhorias nas condições de trabalho na última década , com cursos de formação e atualizações da NR 29, uma norma regulamentadora do governo federal sobre o trabalho portuário.

Entretanto, ele diz que os dados sobre acidentes são “contestáveis” e denuncia uma suposta “maquiagem dos números” por parte das empresas, que não emitiriam CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) para todos os casos. 

O dirigente diz que os riscos não decorrem apenas dos acidentes em si, como batidas e quedas de carga, mas de uma série de outros problemas, como turnos dobrados, lesões por esforço repetitivo, doenças mentais e assédio moral. 

“Os estivadores movimentam de uma a duas toneladas a cada período de seis horas. Depois de três, quatro anos, eles têm lesões nos tendões, nas costas, nos joelhos, em todas as articulações do corpo”, continua.

Por meio de nota, a Santos Brasil refuta as acusações e afirma que a função de estivador em um terminal de contêineres “está estritamente atrelada às atividades de peação e despeação a bordo do navio, e que toda a movimentação de contêineres é realizada por meio de guindastes, com tecnologia de ponta”.

A nota diz ainda que a abertura da CAT ocorre quando o evento é classificado como acidente de trabalho por profissionais técnicos da área de saúde ocupacional da empresa, “nos termos da legislação vigente, não havendo espaço para ingerências de qualquer ordem”. Acesse o posicionamento na íntegra.

(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

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Ação na Justiça movida por sindicato aponta perseguição a trabalhadores

Em 2023, o Sindestiva entrou com uma ACP (ação civil pública) na Justiça do Trabalho contra a Santos Brasil, com depoimentos de funcionários da empresa sobre os riscos enfrentados. As operações de movimentação de contêineres por guindastes, por exemplo, estariam sendo feitas com equipes reduzidas, sem estivadores em todas as posições necessárias.

Outros depoimentos incluídos no processo indicam que o trabalho de peação também ocorreria de forma irregular, sem o uso de equipamentos adicionais, como cesto suspenso e gaiola, que dão mais segurança quando a operação ocorre em alturas maiores. “Todo esse sobrepeso suportado pelos trabalhadores tem gerado inúmeros problemas físicos e, consequentemente, acidentes de trabalho”, afirma um trecho da ação.

Ainda segundo o documento, a empresa teria passado a assediar moralmente os estivadores que cobravam o cumprimento das normas de segurança, aplicando advertências a oito deles. O pedido judicial, que ainda não foi analisado pela Justiça, pede o cumprimento das normas de segurança e a anulação de sanções disciplinares.

Segundo os trabalhadores ouvidos pela reportagem, é comum “dobrar o expediente”, o que expõe estivadores a acidentes. Os contratos de trabalho preveem geralmente a escala 6×2 (seis dias de trabalho com duas folgas na sequência), em jornadas de, teoricamente, seis horas. “Mas quase todo dia dobram o turno”, afirma Rui.

“O cara quer dobrar por causa da renda. Aí ele não quer saber se está cansado”, confirma outro estivador, funcionário da Santos Brasil, ouvido sob sigilo pela reportagem. “Para a empresa é bom, porque não vai pagar outro plano de saúde e outros encargos sociais, só vai dar um aumento no salário”, explica.

“O acidente está por todo lado, a toda hora, porque tudo no navio é de ferro. Se escorregar aqui e cair de costas, ou bater o joelho, vai bater em algo de ferro”, conta o trabalhador. “E, se acontecer, [vão dizer que] não é nada, vão mandar você continuar trabalhando, mesmo com sangue, joelho inchado.” 

Questionada, a Santos Brasil nega as denúncias, diz ser uma referência em operações portuárias seguras e cumprir todas as normas de segurança e a legislação trabalhista. “A Santos Brasil repudia qualquer alegação de atuação negligente para com seus funcionários e reitera sua conduta ética e transparente e em consonância e observância da legislação do trabalho”, diz a nota.

A empresa foi questionada sobre as dobras de expediente e a suposta adoção de equipes reduzidas nas atividades, mas não respondeu sobre essas perguntas específicas (leia na íntegra).

Atualmente, a Santos Brasil passa por um processo de transição societária bilionária. Uma fatia de 48% da empresa – pertencente ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas – foi vendida em setembro do ano passado por R$ 6,3 bilhões para o grupo francês CMA CGM, uma das maiores operadoras globais de portos. A venda está sob análise do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).  

(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
(Crédito: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Subnotificação de acidentes

Um dos problemas mais destacados pelos trabalhadores é a subnotificação de acidentes. Eles afirmam que nem todos os casos são comunicados às autoridades, como manda a lei, o que dificulta o acesso a direitos trabalhistas e previdenciários.

A CAT é um documento enviado ao INSS que reconhece um trabalhador como vítima de um acidente de trabalho, de trajeto ou de uma doença ocupacional. A empresa é obrigada a fazer o registro até o primeiro dia útil após o incidente. Se o empregador não cumprir a obrigação, o próprio acidentado pode cadastrar a CAT, assim como seus dependentes, sindicatos, médicos e autoridades.

Sem esse documento, fica mais difícil para o trabalhador acessar no INSS o auxílio-doença acidentário – o benefício tem vantagens em relação ao auxílio-doença comum, como a obrigatoriedade de recolhimento do FGTS durante o período de afastamento e a estabilidade de 12 meses no emprego após o retorno.

A rigor, a inexistência da CAT não impede a obtenção dos benefícios, mas dificulta o processo, explica a procuradora Cirlene Zimmermann, do MPT.

“Quando a CAT é aberta pela empresa, ela já assume que o acidente de fato aconteceu e que está relacionado ao trabalho. Quando não é aberta pela empresa, evidentemente vai passar por uma investigação mais aprofundada [pelo INSS] para verificar se há relação [do acidente] com o trabalho”, diz a procuradora, responsável pela Codemat (Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do MPT).

“Esse documento faz parte do processo de reconhecimento de um acidente ou adoecimento relacionado ao trabalho. A partir dele, se inicia um processo de revisão das medidas de prevenção necessárias naquele ambiente, que de algum modo falharam, a ponto de acidentar ou adoecer o trabalhador”, continua.

No porto de Santos havia 6.728 vínculos ativos de estivadores em 2023, sendo 6.005 avulsos e 723 celetistas (Foto: Divulgação/Porto de Santos)
No porto de Santos havia 6.728 vínculos ativos de estivadores em 2023, sendo 6.005 avulsos e 723 celetistas (Foto: Divulgação/Porto de Santos)

Atualmente, a Santos Brasil mantém relações e acordos coletivos com todos os sindicatos que representam outras categorias de funcionários da empresa, com exceção do Sindestiva, proibido de entrar na companhia.

“Nessa época de ESG que todo mundo fala, e a parte social, cadê? A parte de proteger os trabalhadores, a comunidade? Não tem proteção nenhuma. Eles não querem nem assinar acordo”, contesta o presidente do sindicato.

“A ausência de acordo coletivo com determinado sindicato não interfere na fiscalização das condições de trabalho da empresa, uma vez que esta responsabilidade cabe aos entes estatais como Ministério Público do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho, Autoridade Portuária etc”, diz a nota da empresa. 

Para o MPT, a subnotificação é “sempre um problema”, “em qualquer setor econômico”, e “para todo o sistema público de saúde”. “Sem os números reais, há limitação para formulação de políticas públicas que combatam o problema”, segundo nota da assessoria do MPT. 

A Procuradoria informou que realiza ações de fiscalização preventivas, mesmo sem receber denúncia, para verificar as condições de trabalho de empresas portuárias e navios. “Achando irregularidades, o MPT trabalha para que sejam corrigidas sem que precise ajuizar ação. E sempre encontra”, diz a nota.

Movimentação de carga nos portos brasileiros cresceu 40% em uma década

Portos movimentaram 1,3 bilhão de toneladas de mercadorias em 2023 (Foto: Reprodução/Arquivo pessoal)
Portos movimentaram 1,3 bilhão de toneladas de mercadorias em 2023 (Foto: Reprodução/Arquivo pessoal)

A falta de segurança relatada pelos trabalhadores ocorre em um momento de franca expansão do setor portuário brasileiro, que movimenta 95% do comércio internacional (exportações e importações). 

Atualmente existem 259 terminais portuários no país, segundo o Cade, sendo 223 de uso privado e 36 públicos (também chamados de “portos organizados”). Há dez anos, o sistema contava com 160 no total: 126 privados e 34 públicos.

Nesse período, o volume de carga transportada aumentou 40%, saltando de 931 milhões de toneladas de mercadorias, em 2013, para 1,3 bilhão de toneladas em 2023, segundo a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). 

Em termos financeiros, as exportações também cresceram 40% no período, saindo de US$ 242 bilhões para US$ 339 bilhões (quase R$ 2 trilhões, em valores atuais), segundo o Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços). 

O complexo portuário de Santos responde por 13% das cargas movimentadas no país, mas em valores financeiros a participação chega a 29%

Já o número de estivadores ativos caiu 15%. Em 2013, eram 35 mil trabalhadores (17 mil celetistas e 18 mil avulsos). Em 2023, o total caiu para 30 mil (9,7 mil celetistas e 20,3 mil avulsos). Os dados foram levantados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), a pedido da Repórter Brasil, com base na RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), do Ministério do Trabalho e Emprego. 

Em 2013, a Lei dos Portos permitiu aos terminais privados a contratação de trabalhadores com carteira assinada, e não mais apenas como avulsos.

A modalidade de contratação avulsa é permitida tanto para os terminais privados como públicos. Os serviços e escalas de trabalho são coordenadas pelos Ogmos (Órgão Gestor de Mão-de-Obra). 

Financiado pelas empresas, os Ogmos têm a função não só de recrutar e pagar, mas também de treinar as pessoas que atuam no carregamento de mercadorias nos navios. Os trabalhadores portuários têm a liberdade de escolher se querem ou não pegar a diária. Por essa razão, são chamados de “avulsos”. 

Apesar de não ter vínculo empregatício formal com nenhuma das diversas empresas que operam em um porto, o avulso recebe todos os direitos trabalhistas, de forma proporcional aos dias de serviço. O cálculo é feito e pago pelo Ogmo.

Os trabalhadores apontam vantagens na modalidade avulsa, por poderem escolher os dias de descanso e alternarem as funções exercidas, variando entre os trabalhos mais pesados e os de menor esforço. Com carteira assinada, os estivadores relatam exercer a mesma função diariamente, o que pode acarretar mais danos à saúde, caso o serviço demande mais força, como é o caso da peação.

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