Governo do ES gasta R$ 8 mi sem licitação para concessão de reservas ambientais

Consultoria Ernst & Young foi contratada, sem licitação, para conceber programa que prevê a concessão por 35 anos de seis Unidades de Conservação Integral para a construção de hotéis e restaurantes; Secretário de Meio Ambiente diz que impactos serão “mínimos”, mas ambientalistas e comunidades locais reclamam da falta de diálogo
Por Paula Bianchi | Edição Carlos Juliano Barros
 17/02/2025

“TELEFÉRICO, TIROLESA, GLAMPING: confira os principais atrativos do Parque Estadual Paulo César Vinha após a concessão”, anunciou o governo do Espírito Santo em seu site no fim de agosto do ano passado.

Acompanhado de imagens produzidas por inteligência artificial de turistas em restaurantes, bondinhos e elegantes barracas sobre palafitas, o texto informava ainda que o parque ganharia 500 novas vagas de estacionamento.

Apesar do tom de informe comercial, trata-se do anúncio de um programa criado via decreto pelo governo do estado que pretende conceder seis Unidades de Conservação (UCs) de Proteção Integral à iniciativa privada por 35 anos.

Em maio de 2024, antes da realização de qualquer audiência pública, o governador Renato Casagrande apresentou o projeto a investidores nos Estados Unidos. A reunião ocorreu no escritório da consultoria Ernst & Young, responsável pelo plano de negócios e pela modelagem das concessões, previstas para serem leiloadas no primeiro semestre deste ano.

A empresa foi contratada sem licitação por R$ 8,6 milhões, outro ponto questionado por comunidades locais que se reuniram em torno do movimento “Em Defesa das UCs do Espírito Santo”. Um abaixo-assinado contra o projeto já reúne mais de 12 mil assinaturas.

Reunião realizada no Estados Unidos entre o governador Renato Casagrande e interessados nas concessões das reservas do Estado (Foto: Hélio Filho/Secom)
Reunião realizada no Estados Unidos entre o governador Renato Casagrande e interessados nas concessões das reservas do Estado (Foto: Hélio Filho/Secom)

Além do Parque Paulo César Vinha, o Peduc (Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação do Estado do Espírito Santo) inclui as UCs de Itaúnas, Cachoeira da Fumaça, Forno Grande, Mata das Flores e Pedra Azul.

Ambientalistas e moradores de comunidades tradicionais próximas às UCs ouvidos pela reportagem reclamam da falta de transparência e de participação no processo. “Como é possível fazer um programa dessa dimensão por decreto, sem debate com a população do entorno das UCs?”, questiona a deputada estadual Camila Valadão (PSOL), suplente da Comissão de Meio Ambiente.

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A Repórter Brasil entrou em contato com o governo do Espírito Santo. A assessoria de imprensa informou que a Seama (Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) responderia pelo projeto. A pasta, no entanto, não retornou até a publicação desta reportagem.

Em posicionamento publicado no site da secretaria, porém, o governo argumenta que a contratação da consultoria foi feita “em conformidade com todos os órgãos de controle e seguiu integralmente as recomendações da Procuradoria-Geral do Estado (PGE/ES)”. Ainda segundo o posicionamento, a empresa é “reconhecida como uma das quatro maiores do mundo no segmento em que atua, oferecendo um serviço que justifica a escolha”.

A reportagem também procurou o Ministério Público Estadual e a Ernst & Young, mas não obteve retorno. O texto será atualizado se os posicionamentos forem enviados.

Segundo a deputada Camila Valadão, as únicas audiências públicas sobre o Peduc foram promovidas pela Assembleia Legislativa após os anúncios dos “novos atrativos” dos parques. “Eles alegam que ainda haverá debates, que estão na fase de estudos. Mas anunciam como algo pronto, prestes a ser leiloado, em uma lógica voltada para o turismo que transforma as UCs em resorts”, critica.

No caso da UC de Itaúnas, famosa por abrigar um festival de forró na vila ao lado do parque, o plano de negócios prevê duas pousadas, além de restaurante, piscina flutuante, tirolesa e trilha suspensa. Área de proteção integral, o parque foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade em 1992 e abriga comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas em sua zona de amortecimento. As populações não foram previamente consultadas, o que viola direitos previstos na Convenção nº 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

“Fomos todos surpreendidos com propostas já consolidadas, noticiadas na imprensa, para a construção de estruturas turísticas”, diz Clovis Mendes, biólogo e membro do Conselho Estadual de Cultura. Morador da vila há 40 anos, ele participou do movimento para transformar o local em área de conservação no começo dos anos 1990.

Ele lembra que o movimento começou justamente para impedir a construção de um hotel nas dunas do local. “E hoje o próprio governo prevê essas estruturas. Estamos comprometendo ecossistemas protegidos por lei”, afirma, ao citar os possíveis danos ambientais que as modificações previstas no plano de negócios poderiam causar à restinga, aos manguezais e ao patrimônio arqueológico tombado do parque.

Imagens apresentadas no plano de negócios elaborado pela Ernst & Young com as futuras estruturas no Parque Estadual Itaúnas (Foto: divulgação/Seama-ES)
Imagens apresentadas no plano elaborado pela Ernst & Young; contratação de consultoria por R$ 8,6 milhões, sem licitação, é questionada por ambientalistas e comunidades (Foto: Divulgação / Seama-ES)

‘Impactos mínimos’

Tanto no texto que apresenta o projeto do Parque Paulo César Vinha quanto no que trata do Parque de Itaúnas, o secretário de Meio Ambiente Felipe Rigoni, idealizador do programa, afirma que as áreas afetadas representam uma porção ínfima da extensão total dos parques. “Os impactos são mínimos e amplamente superados pelos benefícios socioculturais e econômicos previstos pelo projeto”, defende. 

Rigoni também cita Foz do Iguaçu como exemplo de uma concessão de UC bem-sucedida. Para o biólogo Walter Có, a comparação não se sustenta. Ele explica que qualquer intervenção em uma área de proteção gera impactos, mas que essa situação é ampliada em espaços menores, como as reservas do Espírito Santo, já que a fauna, em especial, é atraída pelas luzes e sons dos empreendimentos, como hoteis e restaurantes. 

Itaúnas, por exemplo, tem cerca de 2% da área total do Parque Nacional do Iguaçu. Já o Parque Paulo César Vinha representa aproximadamente 0,81% da reserva localizada no Paraná. “Nenhuma das estruturas propostas favorece a conservação da flora e da fauna. Pelo contrário”, afirma Walter Có.

Imagens apresentadas no plano de negócios elaborado pela Ernst & Young com as futuras estruturas no Parque Estadual Itaúnas (Foto: divulgação/Seama-ES)
Imagens apresentadas no plano de negócios elaborado pela Ernst & Young com as futuras estruturas no Parque Estadual Itaúnas (Foto: Divulgação / Seama-ES)

O artigo 11 da Lei Federal 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e é citado no plano de negócios entre as justificativas legais para a concessão, afirma que as unidades de conservação têm como “objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico”.

Na avaliação de Walter Có, no entanto, as concessões representam uma subversão da legislação, já que as intervenções propostas vão muito além do turismo ecológico. “O grau de mudanças proposto pelo projeto é incompatível com a preservação das áreas”, afirma o biólogo.

A Assiema (Associação dos Servidores do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos) também cita a legislação federal ao questionar o Peduc e o que considera uma ação de privatização dos parques. 

“Compreendemos a importância de melhorar a gestão dos parques estaduais, mas ressaltamos que qualquer proposta para essa finalidade não pode comprometer o objetivo principal de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, que é preservar a natureza, conforme preconizado na Lei Federal nº 9.985/2000 e na Lei Estadual nº 9.462/2010”, afirma em um manifesto publicado no começo de fevereiro.

Servidores do Iema, atual responsável pela gestão das UCs do estado, afirmam que nem mesmo o Instituto recebeu os estudos de impacto referentes ao projeto, apresentado de forma simplificada após a divulgação dos planos na imprensa, por meio de uma apresentação de PowerPoint.

“Atualmente, não há servidores em número suficiente sequer para fazer a fiscalização ambiental nos parques. Para assegurar a proteção do nosso patrimônio natural, é fundamental ampliar o investimento público, em vez de promover sua privatização.”

Clovis Mendes questiona ainda a posição do governador Renato Casagrande, atual presidente do Consórcio Brasil Verde, fórum de governadores criado para tratar de questões climáticas. “Isso torna essa decisão ainda mais contraditória para alguém que defende publicamente a questão climática. Em vez de promover reflorestamento e preservação, estão planejando exploração comercial”, finaliza.

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Imagem apresentada no plano de negócios elaborado pela Ernst & Young com as futuras estruturas no Parque Estadual Paulo César Vinha (Foto: divulgação/Seama-ES)