Grupo StoneX, dos EUA, tem compra de ouro amazônico barrada pela Receita

Autarquia federal identificou, em setembro de 2023, inconsistências entre o peso e a documentação da carga exportada para a corretora americana; áreas de origem do minério incluem lavras garimpeiras com registro de desmatamento ilegal e uso irregular de mercúrio
Por Poliana Dallabrida, Daniela Penha e André Campos, da Repórter Brasil, e Grace Murray e Andrew Wasley, do The Bureau of Investigative Journalism
 20/02/2025

A COMPANHIA STONEX, uma das 15 maiores empresas do setor financeiro dos Estados Unidos, tem em sua rede de fornecedores de ouro cooperativas de garimpeiros autuadas por desmatamento ilegal, uso irregular de mercúrio e com áreas de garimpo localizadas às margens de unidades de conservação da Amazônia. 

Documentos obtidos pela Repórter Brasil, em parceria com o TBIJ (The Bureau of Investigative Journalism), mostram que a rede de fornecedores da StoneX também inclui, além das cooperativas, uma empresa investigada pela Polícia Federal por possível envolvimento em esquemas de exploração ilegal de ouro em Itaituba, no Pará, desde 2021. 

A relação entre esses fornecedores brasileiros e a StoneX é apontada em notas fiscais, que indicam a venda de ouro por uma empresa intermediária – a  Coluna DTVM – para a StoneX Commodities DMCC, subsidiária do grupo em Dubai. 

Carga barrada pela Receita Federal

Em setembro de 2023, uma carga de ouro de R$ 4,6 milhões, que seria exportada pela Coluna para a StoneX em Dubai, foi barrada pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos. Para a Receita, existiam “fortes inconsistências entre a documentação apresentada para a exportação da carga […] e o que foi constatado em perícia técnica realizada a pedido da fiscalização aduaneira”. O órgão encontrou divergências ao comparar o peso do ouro averiguado pelas autoridades com o declarado nas notas fiscais apresentadas pela empresa. Questionada sobre o processo, o órgão informou que não seria possível fornecer informações sobre o caso.

Na documentação enviada à Receita, a Coluna DTVM apresentou milhares de notas fiscais de outras operações que indicavam a origem do ouro que seria exportado. Elas revelam que parte do minério havia sido adquirido da FD Gold, companhia que, por sua vez, tinha como principal fornecedora do produto uma coorperativa matogrossense autuada por desmatamento ilegal e pelo uso irregular de mercúrio em áreas de garimpo, conforme apuraram Repórter Brasil e TBIJ.

Outra importante fornecedora da Coluna mencionada é a empresa Parmetal, alvo de uma investigação da Polícia Federal sobre uma suposta obtenção irregular de ouro na Amazônia acobertada por “lavras fantasmas”.

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Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, avalia que “há uma facilidade muito grande do ouro que é extraído ilegalmente entrar no sistema de vendas oficial”. Para Alencar, é preciso exigir transparência e rastreabilidade no processo de comercialização do minério. “Há formas de fazer isso. É preciso investimento para que aconteça”, destaca.

Mesmo após as inconsistências identificadas, a relação comercial entre Coluna e StoneX ocorreu novamente. Outras duas notas fiscais obtidas pela Repórter Brasil e pelo TBIJ mostram a exportação de 19,5 quilos de ouro entre as partes ocorrida em outubro de 2024, no valor total de R$ 8,9 milhões. 

Questionada sobre a rede de fornecedores, a StoneX disse que segue políticas e processos robustos para verificar a legitimidade da origem de todos os metais preciosos que adquire, obtendo-os em “estrita conformidade com os requisitos legais e regulatórios aplicáveis”. A empresa também disse ter coletado os certificados de origem do ouro auditado pela Receita Federal durante o processo de exportação em 2023. A companhia acrescentou ainda que a Coluna é uma instituição licenciada pelo Banco Central do Brasil que continua a exportar até hoje. Leia o posicionamento completo da empresa aqui

Procurada, a Coluna DTVM não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

Garimpo em área embargada pelo Ibama

Entre os dias 4 e 12 de setembro de 2023, a Coopemiga (Cooperativa de Mineradores e Garimpeiros da Região de Aripuanã), segundo as notas fiscais apresentadas pela Coluna às autoridades, realizou 224 vendas de ouro para a FD Gold, somando 9,2 quilos do produto, no valor de R$ 2,2 milhões. Todas as notas fiscais da Coopemiga indicam como origem do produto uma lavra garimpeira com área de 516,9 hectares em Aripuanã, na Amazônia matogrossense. Em parte dessa lavra, o garimpo é ilegal, já que cooperativa teve três áreas embargadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) em 2022 por desmatamento e produção ilegal de ouro. Ao todo, 173,9 hectares foram embargados pelo órgão.

Processo minerário coopemiga

Operação flagrou uso ilegal de mercúrio

No mesmo ano, o Ibama aplicou seis multas à cooperativa, no valor total de R$ 2,2 milhões. Além das autuações relativas aos desmatamentos ilegais e extração de ouro em área irregular, a Coopemiga também foi multada por uso ilegal de mercúrio. A substância é utilizada em atividades garimpeiras para acelerar o processo de separação de ouro de demais sedimentos. 

O uso de mercúrio na extração  de ouro não é necessariamente ilegal, mas só é permitido com a obtenção de licenciamento ambiental e dentro de regras estabelecidas pela legislação nacional e internacional.

Para o Ibama, a Coopemiga obteve ao menos 147,8 kg de ouro com uso ilegal do produto. As irregularidades foram identificadas pelo órgão ambiental e pela Polícia Federal nas fiscalizações da Operação Hermes Hg 2022, que buscava desarticular o uso ilegal de mercúrio no Brasil. 

Procurada, a Coopemiga afirmou que os desmatamentos identificados pelo Ibama ocorreram antes da posse da atual gestão da cooperativa e que a área embargada está sinalizada e isolada para recuperação da vegetação nativa. A nova gestão da cooperativa, que tomou posse no final de 2023, também reforçou que não autoriza o uso de mercúrio. 

A FD Gold afirmou que “detém rígidas políticas e protocolos de fiscalização ostensiva e permanente, inclusive sobre a rastreabilidade da origem mineral do ouro e ainda sobre a sustentabilidade na lavra de ouro”. Sem comentar casos específicos, a DTVM afirmou que, após investigação interna, não identificou “nenhuma operação financeira de aquisição de ouro ativo financeiro em desconformidade” às normas do Estado brasileiro e às regulações internacionais. Leia aqui as respostas completas. 

Garimpo no Rio Madeira

Outra fornecedora de ouro indicada nos documentos apresentados pela Coluna DTVM é a Coogarima (Cooperativa dos Garimpeiros do Rio Madeira). A cooperativa vendeu ouro para a Parmetal e a FD Gold, com origem em duas lavras garimpeiras localizadas sob o Rio Madeira, em Rondônia. Ambas as áreas estão nas bordas de duas UCs (Unidades de Conservação): o Parque Nacional Mapinguari e a Estação Ecológica Umirizal.

O garimpo de ouro é proibido desde 1991 em trechos do Rio Madeira. O curso d’água, que é o mais longo e importante afluente do Rio Amazonas, tem sido alvo recorrente de garimpeiros.

Em resposta à Repórter Brasil, a ANM (Agência Nacional de Mineração) e a Sedam (Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental) de Rondônia informaram que as PLGs (permissões de lavra garimpeira) da Coogarima estão em áreas onde a atividade é permitida e funcionavam com licença até outubro de 2024. 

Impactos do mercúrio

Especialistas alertam, no entanto, que os impactos da atividade não ficam restritos às áreas das lavras e se espalham por todo o ecossistema do entorno.

“Os rejeitos liberados acabam indo para o Rio Madeira, que corta o limite [do parque] Mapinguari, atingindo diretamente a unidade de conservação”, destaca Lucas Duarte, servidor do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em Porto Velho.

Um desses rejeitos é o mercúrio. “Estudos  mostram que ele pode chegar até 100 quilômetros de distância da área onde foi utilizado”, explica Ana Claudia Vasconcellos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). 

Vasconcellos alerta que o produto se acumula em todo o ecossistema aquático, chegando à população local, por exemplo, pelo consumo de peixes. “Dentro do organismo humano, é facilmente absorvido pelo trato gastrointestinal e atinge, principalmente, o sistema nervoso central. Nas gestantes, ele ultrapassa a barreira placentária e atinge o cérebro do feto”, explica. 

A Coogarima, em resposta à Repórter Brasil, reforçou que os dois títulos minerários sob o Rio Madeira são autorizados pela ANM e pela Sedam de Rondônia – informação confirmada pela reportagem junto aos órgãos. Também disse que segue “todas as condicionantes ambientais impostas pelo Poder Público” em relação ao uso de mercúrio e que não viola nenhuma legislação pelo fato de possuir processos minerários nas bordas de UCs. 

DTVM investigada pela PF

A Parmetal, fornecedora direta da Coluna DTVM, teve seu nome envolvido em investigações sobre obtenção irregular de ouro. Em agosto de 2023, a Justiça autorizou, a pedido da Polícia Federal, uma operação de busca e apreensão na sede da empresa em Itaituba, no Sudoeste do Pará. 

A investigação, que continua em andamento, apura o possível “esquentamento” de ouro extraído ilegalmente na região a partir de abril de 2021. No caso apurado, títulos minerários sem indícios de atividade, conforme análise de imagens de satélite, estariam sendo apontados como origem de 988,2 kg de ouro comercializados em 2021 e 2022, pelo valor de R$ 257,3 milhões. Desse total, R$ 83,7 milhões teriam sido adquiridos pela Parmetal.A companhia, que adotou o nome de Unida em 2023, afirmou à Repórter Brasil “que apoia o trabalho das autoridades quanto à repressão de ilegalidades”, sem dar detalhes sobre o processo judicial em andamento. A empresa também afirmou que “aperfeiçoa a cada dia seus procedimentos de controle” da legalidade do ouro adquirido de terceiros. Leia o posicionamento completo da empresa aqui.

Conexão Brasil-Dubai-Zurique

A documentação apresentada pela Coluna à Receita Federal informava que o destino do ouro exportado era a StoneX em Dubai. A carga, entretanto, seria carregada em um voo comercial da SwissAir International Air Lines, que sai de Guarulhos com destino a Zurique. 

Mark Pieth, advogado e especialista em processos anticorrupção na Suíça, explica que é comum haver discrepâncias entre o destino listado na documentação de exportação do ouro e o destino real das mercadorias. “Nesse mundo de comércio exterior, mercadorias vão para um lado e a papelada vai para outro”. 

As barras de ouro comercializadas pela StoneX, além de serem vendidas em seu próprio site, chegam a bancos em diversas partes do mundo, como no Reino Unido. No país, a companhia integra a LBMA (London Bullion Market Association), grupo que exige de seus associados um padrão responsável de aquisição de metais preciosos. 

Em resposta aos questionamentos da Repórter Brasil e do TBIJ, a LBMA afirmou que, em uma investigação preliminar motivada pela reportagem, não identificou nenhuma evidência de violação de suas regras pela StoneX. A organização apontou que a investigação das autoridades brasileiras sobre a carga bloqueada da Coluna está em andamento, ainda sem conclusão definitiva. “A LBMA acredita que é prematuro antecipar o resultado desse processo”, ressaltou. Leia aqui as respostas completas da organização. 

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