REPRESENTANTES da indústria de alimentos, do agronegócio e dos supermercados se uniram para tentar excluir os ultraprocessados do chamado “Imposto do Pecado”, criado pela reforma tributária sancionada em janeiro pelo presidente Lula (PT). É o que mostra um estudo realizado pelo Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e pela ACT Promoção da Saúde, obtido pela Repórter Brasil.
De acordo com a publicação, o lobby desses setores atuou no Congresso Nacional para não só inserir alguns ultraprocessados na cesta básica, zerada de impostos, mas também para evitar a tributação extra a esses itens. Este mecanismo é previsto na reforma por meio do Imposto Seletivo (IS), apelidado de “Imposto do Pecado” por ter como alvo cigarros e bebidas alcoólicas, dentre outras mercadorias nocivas à saúde e ao meio ambiente.
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A reforma tributária vai criar uma alíquota padrão por volta de 28%, a ser cobrada da maioria das mercadorias. A cesta básica é uma das exceções: os produtos serão totalmente isentos de impostos. Em alguns casos, itens podem ter tributos reduzidos em mais da metade. Já os enquadrados no IS terão taxação superior a 28%.
Evidências científicas associam o consumo de ultraprocessados – como miojo, bolacha recheada e suco de caixinha – a 57 mil mortes precoces ao ano no Brasil e ao desenvolvimento de 32 doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Câncer, diabetes e obesidade são alguns exemplos. A classificação de alimentos de acordo com seu grau de processamento é adotada pelo Ministério da Saúde desde 2014.
Publicado na revista acadêmica Social Science & Medicine, dos Estados Unidos, o estudo faz um extenso mapeamento – de posts em redes sociais a audiências públicas em Brasília – para investigar atuação da indústria de alimentos entre janeiro de 2023 e abril de 2024, período em que a reforma estava em discussão no Congresso e no Ministério da Fazenda.

Um levantamento da organização Fiquem Sabendo mostra que lobistas do setor se reuniram 69 vezes com o alto escalão do governo Lula, ao longo de 2023, para discutir a reforma tributária. Em 27 delas, foi registrada a presença de um representante da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos). Organizações do terceiro setor que trabalham com o tema da alimentação, entretanto, foram recebidas apenas 14 vezes e tiveram 16 pedidos de encontros não atendidos.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), a Organização Pan-Americana da Saúde e o Banco Mundial reconhecem a adoção de tributação extra como uma das medidas para desestimular o consumo de ultraprocessados. Dados da OMS mostram que mais de 100 países já implementaram impostos especiais de consumo.
Pesquisas têm demonstrado um consumo crescente de ultraprocessados, principalmente entre negros, indígenas e habitantes de regiões pobres do Brasil, em virtude de preços mais baratos do que o de alimentos saudáveis.
“A gente sabe que o principal determinante para escolher uma comida é o preço. Ainda mais num país socialmente vulnerável como o nosso”, afirma Ana Maria Maya, especialista em alimentação saudável do Idec e coautora do estudo. Para ela, o lobby articulado entre a indústria de alimentos, o agronegócio e os supermercados conseguiu incluir na cesta básica produtos ultraprocessados, como margarina e fórmulas infantis.
Indústria de alimentos se articulou com supermercados e com a bancada ruralista
Para barrar a taxação extra de ultraprocessados, as associações de proteína animal e das indústrias de refrigerantes, chocolates e pães e bolos se reuniram na Uncab (União Nacional da Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas). O grupo criou campanhas para convencer a opinião pública de que o Imposto Seletivo sobre os ultraprocessados não reduziria o preço dos alimentos in natura e prejudicaria principalmente os mais pobres.

Além disso, o grupo se aliou ao setor supermercadista para difundir a narrativa de defesa do “acesso aos alimentos” e do “direito de escolha” dos consumidores, diz Ana Maria Maya. Segundo a pesquisadora do Idec, seria politicamente custoso para a Abia, por exemplo, argumentar sozinha a favor da isenção fiscal para o miojo, produto amplamente reconhecido como prejudicial à saúde. “Incluir outros atores nessa discussão aumenta tanto o peso político quanto a estratégia de mudar as caras de quem vai falar”, destaca.
No Congresso, a estratégia consistiu em estreitar os laços com a FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). Com 354 deputados e senadores, a bancada ruralista é a mais poderosa do Legislativo.
O relatório cita como exemplo dessa ampla aliança uma audiência no Senado, realizada em agosto de 2023. Na ocasião, o presidente da Abras (Associação Brasileira de Supermercados), João Galassi, defendeu a revisão do Imposto Seletivo. Ao lado de representantes da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e da CNI (Confederação Nacional da Indústria), ele argumentou que a tributação não deveria atingir qualquer tipo de alimento.

Um mês depois, em evento organizado pela Abras, o senador Izalci Lucas (PSDB-DF) saiu em defesa dos ultraprocessados. “Temos mais de 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil, não tem sentido um país exportador de alimentos, do agro, e as pessoas passando dificuldade. Então, consumo de alimento não tem que ser taxado”, afirmou.
Maya rebate o argumento da indústria. “A gente não está falando em tirar a comida da mesa das pessoas. A gente está falando em criar condições para que alimentos saudáveis sejam mais acessíveis”, afirma a especialista do Idec.
Em nota, a FPA afirmou que a bancada trabalhou em duas frentes durante a tramitação da reforma tributária: zerar o imposto da cesta básica e incluir a carne na cesta básica. “Ambas as medidas contribuem para garantir o acesso à população a comida de qualidade, com preço acessível para todas as faixas de renda”, diz o texto. A nota informa ainda que “a lista de alimentos que integram a cesta básica foi coordenada pelo relator da matéria, [o deputado federal] Reginaldo Lopes (PT-MG)”. Leia a resposta na íntegra.
Margarina, carnes, açúcar e fórmulas infantis foram beneficiados
O relatório acessado pela Repórter Brasil também revela como a indústria de alimentos atuou para interferir no debate sobre os critérios da cesta básica. De acordo com o texto final da reforma tributária, alguns itens da cesta ficam totalmente isentos de impostos.
Em março de 2024, o governo publicou um decreto orientando a composição da cesta básica, excluindo de ultraprocessados. “Foi nesse momento que algumas associações se uniram e intensificaram o lobby para incluir mais produtos”, explica Bruna Hassan, pesquisadora em saúde pública da ACT Promoção da Saúde. Um grupo de 30 deputados, liderados pela bancada ruralista, apresentou uma proposta alternativa para ampliar a isenção fiscal a alimentos industrializados.

Enquanto a sociedade civil defendia uma cesta básica focada em alimentos saudáveis, o agro, a indústria e o varejo pressionaram pela ampliação da lista, argumentando que determinados produtos eram amplamente consumidos pelos brasileiros. A principal disputa girou em torno da inclusão de laticínios, carnes, açúcar e ultraprocessados.
A regulamentação aprovada na Câmara atendeu a parte das demandas do setor, garantindo benefícios a itens como margarina, carnes, açúcar e fórmulas infantis. Sobre este último produto, Bruna Hassan faz uma ponderação. “Existem situações em que as fórmulas infantis são necessárias, mas são casos específicos. Como substitutos, elas deveriam ter alíquota reduzida de 60%, e não isenção total”, avalia.
Apesar de lobby, refrigerantes entraram no ‘Imposto do Pecado’
A Abir (Associação Brasileira de Refrigerantes) também atuou para impedir a taxação do setor. O senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) apresentou uma emenda ao relatório do senador Eduardo Braga (MDB-AM), classificando a tributação de refrigerantes e águas saborizadas como “questionável” e “discriminatória”.
No dia seguinte à aprovação do texto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Braga participou de um evento em uma fábrica da Coca-Cola em Manaus (AM), ao lado de políticos do estado e do vice-presidente Geraldo Alckmin, como mostra o post do Instagram abaixo.
Uma reportagem do site O Joio e o Trigo mostra que Braga tem um histórico de atuação favorável ao setor de bebidas. O senador recebeu R$ 178 mil em doações de campanha da Ambev, em 2010, antes da proibição de financiamento empresarial, e defendeu subsídios para produtores de xarope de refrigerante na Zona Franca de Manaus.
Apesar do lobby da indústria, refrigerantes e águas saborizadas acabaram sendo incluídos no imposto seletivo, na versão final da reforma tributária. Para especialistas, a decisão pode ter sido motivada tanto pela necessidade de arrecadação quanto pelas evidências científicas sobre os impactos dessas bebidas na saúde pública. “Acho que o governo viu como uma oportunidade de que isso fosse emplacado e que seria positivo na perspectiva econômica”, avalia Maya.
Em nota, o Ministério da Fazenda afirma que a escolha de quais ultraprocessados estariam sujeitos ao imposto seletivo é “decisão de governo”. A pasta afirma que a maior parte desses produtos será tributada pela alíquota padrão, que deve ficar em torno de 28%. Já os itens da cesta básica terão alíquota zerada ou reduzida a 11%. Ainda segundo a nota, a própria diferença de carga tributária “já contribui para estimular o consumo de produtos saudáveis”. Confira a resposta na íntegra.
Segundo Bruna Hassan, a expectativa é de que os alimentos saudáveis fiquem mais acessíveis com as novas regras, e de que o consumo de ultraprocessados seja desestimulado. No entanto, ela reforça que a tributação, por si só, não basta para mudar hábitos alimentares ou reduzir doenças crônicas. “O imposto sozinho não é bala de prata, ele tem que vir com um conjunto de medidas”, finaliza.
Procurada, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos informou que não se manifestaria. A reportagem também enviou questionamentos à Associação Brasileira de Refrigerantes, à Associação Brasileira de Supermercados, ao deputado federal Reginaldo Lopes, e aos senadores Eduardo Braga, Izalci Lucas, Vanderlan Cardoso, mas não obteve respostas até o fechamento desta matéria. O texto será atualizado se os posicionamentos forem enviados.
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