O PLENÁRIO do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta quarta (19), para validar a Lei Paulista de Combate ao Trabalho Escravo, sancionada e regulamentada pelo então governador Geraldo Alckmin, em 2013, que prevê a suspensão da autorização para funcionamento de empresas que se beneficiaram desse tipo de mão de obra.
A legislação, que prevê a cassação da inscrição estadual de empresas que exploram mão de obra análoga à de escrava, é considerada pelas Nações Unidas uma referência no combate a esse crime. Mas a CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) propôs a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5465 questionando a lei 14.946/2013.
O relator, ministro Kassio Nunes Marques, votou pela constitucionalidade da legislação, no que foi acompanhado por Flávio Dino, Luís Roberto Barroso, Cristiano Zanin, André Mendonça, Edson Fachin, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes — que havia votado contra no julgamento virtual, mas alterou seu voto diante do debate. O único que divergiu até agora foi o ministro Dias Toffoli. Quando faltava apenas o seu voto, Gilmar Mendes pediu vistas e interrompeu a análise. Ele tem 90 dias para decidir.
“A legislação paulista foi claramente motivada pelo propósito de contribuir na luta nacional que vem sendo travada contra o flagelo do trabalho em condições similares à de escravidão”, afirmou Nunes Marques.
O relator defendeu que o processo administrativo que leve à punição deve garantir o contraditório e a ampla defesa e que o responsável pelo estabelecimento saiba ou tenha como suspeitar do uso de trabalho escravo para a confecção do produto. E que a punição dos sócios do empreendimento, como prevê a lei, ocorra desde que eles tenham participado, por ação ou omissão, da aquisição de mercadorias feitas com mão de obra escrava.
A maioria dos ministros concluiu que a lei não invade competência da União, pois não trata de inspeção do trabalho ou caracterização de trabalho escravo, que continua a cargo da esfera federal.
“Sob o ponto de vista material, compete tanto à União como aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, a fim de promover a integração social dos setores desfavorecidos”, apontou Nunes Marques. “Foi isso, exatamente, que o estado de São Paulo fez.”
O presidente da corte, ministro Barroso, lembrou que a lei vem sendo importante para combater a escravidão e gerou normais semelhantes em outros estados.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Lei completou 12 anos em janeiro
Proposto pelo então deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSD) e regulamentado por Alckmin no dia 13 de maio de 2013, no aniversário de 125 anos da Lei Áurea, o texto da lei afirma que as empresas e pessoas responsabilizadas por exploração de trabalho escravo em São Paulo ficam impedidas de exercer o mesmo ramo de atividade econômica, ou de abrir nova firma no setor, durante um período de dez anos.
A CNC diz que todos devem combater o trabalho escravo, mas argumenta que a lei prevê a responsabilização de estabelecimentos comerciais em razão de atos criminosos praticados não por eles próprios, mas por terceiros. E defendeu que a legislação paulista invade a competência da União por delegar à Secretaria Estadual de Fazenda o poder de apurar condições de trabalho, impedindo a individualização de penas.
A Assembleia Legislativa de São Paulo, ao justificar a manutenção da lei, afirma que não compete à Secretaria de Fazenda de São Paulo determinar o que é ou que não é escravidão, mas usar informação pública do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Poder Judiciário para tomar decisões a respeito da manutenção do cadastro do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Já o governo de São Paulo sustenta que o Estado não invadiu competência da União por se tratar de um caso de direito tributário, não penal ou do trabalho.
Instada pelo STF a se manifestar, a Procuradoria-Geral da República considerou inconstitucional apenas o trecho da lei que pune os sócios do empreendimento flagrado com trabalho escravo e os proíbe de exercer o mesmo ramo de atividade por dez anos em São Paulo.
Alckmin: ‘São Paulo deve ter fábricas, não senzalas’
O objetivo da lei foi criar mecanismos de combate a uma das piores formas de exploração do ser humano, mas também melhorar a qualidade e a competitividade dos produtos paulistas vendidos dentro e fora do país.
Na época de sua aprovação, sanção e regulamentação, a lei provocou o descontentamento de empresários de setores envolvidos com resgates e denúncias de trabalho escravo em São Paulo. Apesar das pressões, na época, Alckmin decidiu manter a lei. O então governador, questionado sobre o tema, afirmou que “São Paulo deve ter fábricas, não senzalas”.
O processo de cassação da inscrição pode começar a partir de qualquer condenação judicial colegiada. Ou seja, não basta uma operação de fiscalização do governo federal resgatar os trabalhadores e nem uma decisão judicial de primeira instância: é necessária a confirmação em segunda instância, tomada por um grupo de desembargadores.
A regulamentação da lei também prevê que, “excepcionalmente, em casos específicos autorizados por lei”, o procedimento de cassação poderá ser iniciado a partir de “decisão administrativa sancionatória, contra a qual não caiba mais recurso, proferida por autoridade competente para fiscalizar e apurar o ilícito, em procedimento no qual tenham sido observados os princípios do contraditório e da ampla defesa”.
A Secretaria da Fazenda paulista deve iniciar um Procedimento Administrativo de Cassação a partir da comunicação pela Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) da decisão judicial colegiada.
A lei pune empresas que se beneficiem da exploração direta ou indireta deste tipo de mão de obra. Segundo Carlos Bezerra Jr, autor da lei e atual vereador na capital paulista, ela não pune, por exemplo, uma barraquinha de cachorro quente que apenas distribui mercadorias sem relação de responsabilidade com sua fabricação. Mas tem como focos as empresas consideradas diretamente ou indiretamente responsáveis pela exploração do trabalhador.
Como exemplo, ele cita o caso hipotético de uma rede de lojas que encomenda uma coleção de roupas a uma confecção que, por sua vez, terceiriza a produção a uma oficina de costura flagrada por exploração de escravidão contemporânea. No caso de responsabilização de todos, eles devem ser enquadrados na previsão da lei.
Na avaliação de entidades que atuam no enfrentamento ao trabalho escravo, a maior força da lei não está no efetivo fechamento de empresas, mas na possibilidade real de essa possibilidade acontecer. Em outras palavras, a legislação atuaria como um fator de dissuasão e de incentivo à aplicação de políticas de monitoramento sobre cadeias produtivas.
Até hoje, nenhuma empresa foi condenada nos termos previstos pela Lei Paulista. O Ministério Público do Trabalho já solicitou, contudo, a aplicação das sanções a empresas do vestuário têxtil.
Leia também