Doméstica desde os 12 foi ‘escravizada por três gerações de família’ no Amazonas, diz fiscalização

Segundo força-tarefa realizada por quatro órgãos federais, mulher resgatada de condições análogas às de escravo teria trabalhado por mais de duas décadas para avó, filha e neto de uma mesma família em Manaus (AM); empregadores assinaram acordo com Ministério Público do Trabalho para pagar verbas rescisórias e indenização por dano moral
Por Beatriz Vitória | Edição Carlos Juliano Barros
 24/06/2025

UMA TRABALHADORA DOMÉSTICA de 34 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo em Ponta Negra, bairro nobre de Manaus (AM), por uma força-tarefa conduzida por quatro órgãos federais, na última semana de maio. De acordo com documentos da operação, obtidos pela Repórter Brasil, ela teria sido submetida desde os 12 a “situação de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes”, por três gerações de uma mesma família.

O caso veio à tona após uma denúncia encaminhada a auditores fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Depois de ler reportagens sobre episódios semelhantes, o responsável pelo alerta identificou sinais: a mulher estava sem documentos, não tinha sandálias e pedia itens básicos de higiene aos vizinhos.

“A trabalhadora começou a prestação dos serviços para a matriarca da família inquirida quando ainda era criança. A empregada era vulnerável e foi levada para trabalhar e morar nessa residência com esperança de ter uma vida melhor e poder estudar. Desde então, passou a residir no local e a fazer serviços na casa”, diz o relatório da força-tarefa, de autoria do MPT (Ministério Público do Trabalho). 

“Apesar da exploração sofrida, a família repetia que [a trabalhadora] era como se fosse da família”, prossegue o documento sobre a operação, que também contou com servidores do MTE, da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União.

Quando foi resgatada pelas autoridades, a trabalhadora encontrava-se na casa do neto da matriarca, onde não só realizaria as tarefas domésticas, mas também atuaria em uma fábrica de brownies, segundo o relatório. Ainda de acordo com o documento, a trabalhadora não teria carteira assinada e nem salário fixo, e seria submetida a violência psicológica. “Certa vez disseram que ela não merecia ganhar nada porque já tinha comida e casa para morar”, contou uma testemunha ouvida pelo MPT.

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Em ofício encaminhado ao governo estadual do Amazonas no início de junho, quatro auditores fiscais do MTE solicitam “abrigamento”, “alimentação” e “acompanhamento psicossocial” para a trabalhadora. “Entendemos que há riscos associados à permanência na residência onde a empregada doméstica foi encontrada”, justificam. Após o resgate, ela restabeleceu contato com a família biológica e manifestou interesse em retomar os estudos.

Também no começo de junho, o Ministério Público do Trabalho firmou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com os empregadores Thiago Trindade de Assis e sua mãe, Maria Leda Ferreira Trindade. Por meio do acordo, eles se comprometeram a assinar a carteira de trabalho e a quitar as verbas rescisórias referentes ao período entre fevereiro de 2020 e junho de 2025, além de pagar uma indenização por danos morais à trabalhadora. 

Em nota à Repórter Brasil, o advogado dos empregadores afirma que seus clientes, “de forma espontânea e colaborativa”, assinaram o acordo com o MPT, “o que demonstra seu compromisso com a regularização das questões apontadas e respeito às normas vigentes”.

Ainda segundo o posicionamento, “cabe destacar que a assinatura do TAC não configura reconhecimento de culpa ou confissão de qualquer prática ilícita, mas sim uma medida de caráter preventivo e de cooperação com os órgãos competentes”. Leia aqui a íntegra.

Entenda o caso

De acordo com o relatório da força-tarefa, a trabalhadora nasceu no interior do Pará. Aos 12 anos, teria passado a morar na casa da avó de Thiago, com a expectativa de que pudesse ampliar sua formação e melhorar de vida. 

“A fraude e o engano ficam evidentes em algumas condutas da família [dos empregadores]. Quando não foi dado o direito de estudar, mantendo [a trabalhadora] apenas com ensino fundamental incompleto, enquanto todos os demais membros da família puderam estudar, constituir família, relações e constituir patrimônio”, afirma o documento do MPT. 

Ainda de acordo com os relatos colhidos pelo órgão, a trabalhadora teria sido levada a acreditar que havia sido abandonada. Segundo o relatório, ela “necessitava de autorização dos donos da casa para sair, e quando o fazia restringia-se a locais próximos”. Não costumava visitar seus familiares biológicos, não tinha amigos ou qualquer rede de apoio fora da casa dos empregadores”, diz o texto.

Ela teria permanecido na casa da avó de Thiago por cerca de 20 anos. Com o falecimento da patroa, teria passado a viver na residência da filha e do neto da empregadora, no bairro da Ponta Negra. Lá, faria tarefas domésticas e também atuaria nos negócios de Thiago: primeiro uma pizzaria e depois uma fábrica de brownies. 

Cozinha industrial em que a trabalhadora preparava os brownies (Foto: Fiscalização/MTE)
Cozinha industrial em que a trabalhadora preparava os brownies (Foto: Fiscalização/MTE)

Nas palavras de uma testemunha ouvida pelo MPT, a trabalhadora tinha de “limpar fezes dos 3 cachorros da casa antes de iniciar os trabalhos com brownie, varrer as escadas e descer para ajudar na produção”. Segundo o depoimento, ela era muito cobrada — “oprimiam muito a mente dela com gritos e grosserias”.

Ainda segundo o relatório, os pagamentos eram esporádicos – variavam de R$ 100 a R$ 400, quando ocorriam. Não havia registro em carteira, nem para ela, nem para os demais funcionários da empresa, que operava em um terreno ao lado da residência.

Trabalho escravo doméstico no Brasil

Casos como o resgate ocorrido em Manaus não são isolados: o trabalho escravo doméstico é uma realidade no país, marcada por histórias que, muitas vezes, começam na infância e se estendem por décadas. 

Apesar de resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravos acontecerem desde a década de 1990, o foco das autoridades sobre o ambiente doméstico é recente. Segundo informações sistematizadas pela Repórter Brasil, com base em dados do Ministério do Trabalho e Emprego, desde 2017 foram resgatadas 125 pessoas submetidas a trabalho escravo doméstico. A maior parte das vítimas são mulheres negras, com baixa escolaridade.

A informalidade e a dificuldade de fiscalização em residências privadas tornam ainda mais difícil a identificação de irregularidades. Muitas dessas mulheres são impedidas de estudar, criar vínculos sociais ou buscar outra forma de sustento, permanecendo dependentes dos empregadores.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou pelo Disque 100, um canal de denúncias de violações de direitos humanos.

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Mulher resgatada em Manaus (AM) foi submetida a “situação de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes” por três gerações de uma mesma família, de acordo com força-tarefa de quatro órgãos federais (Foto: Reprodução/ MTE)
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