Posicionamento enviado pelo MTE sobre ação para anular acordo que tirou empresa da Lista Suja

Nota enviada pelo Ministério do Trabalho e Emprego
 14/07/2025

Trata-se resposta à solicitação de manifestação desta área técnica efetuada pela jornalista Daniela Penha, da Repórter Brasil.

A demanda envolve:

  • Questionamento sobre o TAC firmado entre o MTE e a empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda, cuja nulidade é requerida pelo MPT na Ação Civil Pública nº 0000584-10.2025.5.08.0110;
  • Solicitação de posicionamento institucional acerca da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, diante dos documentos técnicos produzidos pela CONAETE (Nota Técnica nº 18/2024 e Ofício nº 3682/2025); e
  • Interesse em saber se o MTE deseja se manifestar sobre os documentos mencionados e sobre a referida Portaria.

A referida Ação Civil Pública nº 0000584-10.2025.5.08.0110, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a União Federal e a Agropecuária Rio Arataú Ltda. tem como objeto a suspensão imediata dos efeitos do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrado entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda, que prevê a exclusão da empresa do cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão e a sua inserção no Cadastro de Empregadores em Ajustamento de Conduta – CEAC, além da abstenção de execução ou fiscalização do acordo por parte da União, sob a alegação de violação às atribuições constitucionais do MPT e à competência exclusiva da Justiça do Trabalho.

Em resumo, o MPT entende que as obrigações previstas no TAC firmado com o MTE extrapolam suas atribuições legais, se sobrepõem e conflitam com aquelas já pactuadas no âmbito da tutela ministerial, a exemplo da previsão de reparação dos danos causados (tutela reparatória individual e coletiva), de saneamento das irregularidades e da adoção de medidas preventivas, que já são objeto da tutela jurídica estipulada no TAC n. 1/2022, firmado com o MPT.

Adicionalmente, o Parquet trabalhista requer ainda seja declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18, de 13 de setembro de 2024, por suposta violação a diversos dispositivos constitucionais, nomeadamente os artigos 2º, 114, 127, 129, inciso III, da Constituição Federal, bem como por violação aos princípios desta norma fundamental, tais como da dignidade da pessoa humana (art.1°), separação dos poderes (art. 2º), da legalidade (art. 5º, II.), da isonomia (art. 5º, caput), do devido processo legal (art. 5º, LIV), do Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e Juiz Natural (Art. 5º, XXXVII e LIII).

Diante disso, apresentam-se a seguir subsídios técnicos e documentos comprobatórios da legalidade e regularidade administrativa do mencionado TAC, bem como da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18, de 13 de setembro de 2024. 

Frente à solicitação apresentada, de um modo sintético, a presente Nota visa demonstrar:

  • Inexiste a alegada sobreposição entre o conteúdo do termo de ajustamento de conduta firmado pela empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda. perante o Ministério Público do Trabalho (MPT) e aquele firmado perante a União, através do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o que se revelará cabalmente a partir do cotejo analítico entre os dispositivos de cada um dos instrumentos conciliatórios;
  • Foi oportunizado ao Ministério Público do Trabalho se manifestar desde o início das tratativas entre a empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda. e a União, além de, no caso concreto, o I. Parquet haver considerado que se davam cumpridas as obrigações firmadas no bojo do Inquérito Civil n. 000270.2021.08.002/5 quanto ao TAC celebrado anteriormente com o órgão;
  • A assunção de compromisso com a União não interfere em absolutamente nenhum aspecto na validade ou exigibilidade, inclusive perante o Poder Judiciário, de qualquer das cláusulas do TAC anteriormente firmado perante o MPT. A simples existência de um segundo acordo com outro órgão não invalida automaticamente acordo prévio estabelecido com um primeiro órgão, e vice-versa, a menos que haja incompatibilidade entre seus termos, o que, conforme adiantado, não ocorre no presente caso;
  • Igualmente, inexiste litispendência entre TAC firmado pela União e eventual ação civil pública proposta pelo MPT contra o mesmo administrado por inadimplemento de obrigações firmadas perante o Parquet;
  • A ideia central de todo o arranjo desenhado pelo legislador nacional para o microssistema de tutelas coletivas no Brasil funda-se na eleição deliberada de vários legitimados coletivos ativos, conforme se depreende dos artigos 5º da Lei de Ação Civil Pública e art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, principais diplomas legais acerca do tema. Essa multiplicidade de atores visa garantir a efetividade da tutela jurisdicional em casos que envolvem um grande número de pessoas, cujos direitos ou interesses são afetados de forma semelhante, assegurando várias camadas de proteção;
  • Ante a premissa anterior, os entes integrantes da Administração Pública possuem, nos termos da legislação de regência, legitimidade ativa tanto para a propositura de ações coletivas quanto para tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, seja no que tange à defesa de seus próprios interesses, seja no que se refere à proteção de direitos de seus administrados relacionados com as atribuições do órgão ou entidade;
  • Ainda no que se refere à legitimidade coletiva ativa, há evidente pertinência temática entre as atribuições e a própria atuação histórica do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no combate ao trabalho em condição análoga à escravidão, a qual está muito distante de se restringir à mera aplicação de multas administrativas, conforme sugere o MPT;
  • Fiel à lógica da multiplicidade de atuações concertadas entre os distintos legitimados criada pelo legislador nacional, deu-se a construção da sistemática atualmente prevista na Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, já prevista nas anteriores Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 15, de 26/07/2024, e Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, que datava de 11/05/2016. Esse espírito de busca pela harmonização da atuação entre os diversos atores para garantir a efetividade da proteção manifestou-se sob várias dimensões, desde os esforços de comunicação e concertação com representantes do próprio Ministério Público do Trabalho, em diversas reuniões, consultas mútuas e trocas técnicas para a construção do texto do normativo Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 15/2024, posteriormente convertida na Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, passando pelas previsões constantes do texto desta última portaria em que se privilegia a agregação não só do MPT como da DPU e seus eventuais instrumentos (art. 5º, §6º, e art. 10), até o procedimento efetivamente adotado no caso concreto posto sob análise, convidando-se o I. Parquet para a participação nas diversas audiências, o que demonstra um grande esforço por parte desta Pasta, inclusive, para que o MPT também participasse do processo conciliatório (docs XXXX e XXXXXX); 
  • Muito longe do aventado na peça do MPT, a concepção trazida pela Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 não visa abrir uma concorrência no sentido de um leilão entre os distintos atores, ao que o Parquet trabalhista denominou “forum shopping”. A Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 vai justamente no sentido oposto, de trazer certeza, segurança, robustez e consistência ao microssistema de tutela coletiva na medida em que determina e publiciza o que vai ser exigido pela União em todas as conciliações envolvendo a matéria (art. 7º). O instrumento normativo traz um pacote mínimo de compromissos obrigatórios, não sujeito a barganhas, e bastante robustos pra que se efetuem composições com a União em relação ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão. Logo, todos os interessado, inclusive os demais atores conhecem, prévia e claramente, as regras a serem empregadas e sabem que a União não está sujeita a rebaixar tal piso de exigências para disputar a realização de acordos;
  • Também em atenção à lógica da multiplicidade de atuações concertadas, própria ao arranjo do sistema de proteções coletivas nacional, a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 traçou os contornos de sua incidência observando justamente a concorrência de atores sem sobreposição e prejuízo a qualquer deles, o que se faz expressamente em diversos dispositivos da norma atacada, inclusive ao impor nas cláusulas obrigatórias dos instrumentos conciliatórios a serem firmados pela União, para entendimento do próprio administrado de que as composições com a União não implicam quitação geral, não afetarão as atribuições dos outros órgãos legitimados, não produzem efeitos em relação a terceiros que não tenham participado de sua celebração e nem o direito de ação das vítimas (art. 5º, §1º; art. 8º, incisos I ao IV);
  • Não subsiste a alegação de que a inserção da União, através do Ministério do Trabalho e Emprego, bagunça ou traz insegurança ao sistema de proteções coletivas. Em verdade, a atuação da União o organiza, no sentido de trazer previsibilidade ao conteúdo e aos efeitos dos termos de ajustamento de conduta e acordos judiciais firmados e de elevar, efetivamente, os patamares de proteção. A União, portanto, ocupa um lugar em que complementa, soma, verdadeiramente agrega evolução ao sistema de proteções, com abertura para a participação do MPT da DPU, inclusive;
  • A Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 atende a diversos objetivos e anseios extremamente caros à política pública de combate ao trabalho análogo à escravidão: i) proporciona ferramentas que viabilizam, aos diversos órgãos de Estado e aos cidadãos, o acompanhamento de eventual e superveniente evolução da conduta e da postura adotada pelos administrados incluídos na listagem; ii) resolve lacuna normativa consistente na falta de previsão do processamento, dos objetivos e de critérios mínimos a serem observados para a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta ou acordo judicial com empregadores sujeitos a constarem do Cadastro de Empregadores; iii) estimula uma consistente assunção de compromissos e mudança efetiva de conduta do empregador responsabilizado pelo ilícito; iv) elevam, de modo inequívoco, os patamares adotados pelo Estado Brasileiro tanto de responsabilização dos empregadores quanto de garantia de direitos aos trabalhadores; v) constrói uma responsabilidade empresarial ampla, objetiva e prospectiva (preventiva), abarcando inclusive relações comerciais; e vi) apresenta um guia procedimental minucioso quanto à implementação da devida diligência contra violações a direitos humanos e trabalhistas, fornecendo apoio prático às empresas nesse fazer em uma linguagem clara;
  • Acerca do dano moral individual, além de inexistir, contrariamente ao quis alego o Parquet, qualquer ilegalidade quanto à previsão de um piso e o comando do art. 223-G, §1º, da CLT, dado que a legislação infraconstitucional não o faz de forma cogente, há uma clara percepção de todos que integram proximamente a rede coletiva de combate ao trabalho análogo ao de escravo, corroborada por estudos acadêmicos acerca do tema, de que a fixação de um mínimo, como fez a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, de indenização dos trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo em R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais), acrescido de um pelo menos mais 2 (dois) salários mínimos por cada ano de exploração, é, em muito, superior à média das indenizações que vinham sendo corriqueiramente praticadas, seja em composições promovidas por instituições que integram o sistema de Justiça com os empregadores, seja em condenações judiciais, inclusive o MPT. Na realidade,  o próprio Parquet trabalhista, na média, ajusta em seus instrumentos de conciliação valores bastante inferiores, a demonstrar que a mesma instituição não emprega a linha de entendimento que busca defender na exordial, mesmo anos após a Reforma Trabalhista de 2017; e
  • Ainda no que tange ao dano moral individual, nos termos da citada Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, todos os TACs e acordo judiciais firmados pela União, a exemplo daquele firmado com a empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda., obrigatoriamente trazem expresso que o pagamento do dano moral individual pactuado não impedirá que os próprios trabalhadores escravizados exerçam o direito de pleitear eventuais valores que entendam ainda devidos sob este título, nem prejudicará ações coletivas ou individuais com o mesmo objeto. Portanto, inexiste representação forçada de interesses alheios, mas mera estipulação benéfica ao patrimônio jurídico dos trabalhadores vitimados. Ademais, os valores pactuados pela União no caso concreto da Agropecuária Rio Arataú Ltda. são em muito superiores àqueles estipulados pelo MPT em favor destes mesmos trabalhadores por meio de seu TAC, cabendo ao empregador complementá-lo, em direto e evidente benefício às vítimas.

Passamos às informações. 

Introdução

Inicialmente, destacamos que, em toda a peça inicial do I. Parquet, não há rigorosamente nenhuma demonstração de prejuízo efetivo trazido aos Termos de Ajustamento de Conduta firmados pelo MPT, seja no caso concreto trazido à análise, envolvendo a empresa Agropecuária Rio Arataú Ltda., seja na generalidade dos casos em que seja possível se firmar composição extrajudicial pelo órgão e pela União.

É falsa a proposição de que “(…) a celebração de um novo termo de ajustamento de conduta em sobreposição a um TAC firmado anteriormente pelo MPT, em um caso de grave violação a direitos humanos, representa subversão a ordem jurídica e lesão a direitos fundamentais de toda a coletividade trabalhadora, que está sujeita ao risco de um perpetrador de violações a direitos humanos não ser responsabilizado adequadamente e ver legitimada a postura de descaso com obrigações inibitórias assumidas anteriormente com o MPT.”

Tão pouco tem sentido técnico-jurídico a ideia de que “(…) a sobreposição de termos de ajuste de conduta possui aptidão de gerar insegurança jurídica, impunidade e, até mesmo, ser utilizada para tentar afastar da apreciação do Poder Judiciário Trabalhista eventual ação de execução do TAC firmado com o MPT ou com a União.”

Em primeiro lugar, não há, d.m.v., como quer fazer crer o I. Parquet, sobreposição entre os Termos de Ajuste de Conduta, conforme será fartamente demonstrado ao longo do desenvolvimento da defesa da União, a partir do cotejo analítico entre os dispositivos de cada um dos instrumentos conciliatórios.

Em segundo lugar, a assunção de compromisso com a União não interfere em absolutamente nenhum aspecto na validade ou exigibilidade, inclusive perante o Poder Judiciário, de qualquer das cláusulas do TAC anteriormente firmado perante o MPT. A simples existência de um segundo acordo com outro órgão não invalida automaticamente acordo prévio estabelecido com um primeiro órgão, e vice-versa, a menos que haja incompatibilidade entre seus termos, o que, conforme adiantado, não ocorre no presente caso.

Na situação sob análise, não há contradições e nem disposições no segundo acordo exigindo ações que violem cláusulas do primeiro. O TAC firmado perante o MPT, portanto, permanece hígido e plenamente exequível. Assim, o alegado “risco de um perpetrador de violações a direitos humanos não ser responsabilizado adequadamente e ver legitimada a postura de descaso com obrigações inibitórias assumidas anteriormente com o MPT” estaria adstrito única e exclusivamente à eventual e pouco crível inércia do próprio Parquet trabalhista, a quem cabe a execução judicial de seus respectivos instrumentos conciliatórios.

Ocorre que, paralelamente, o I. Parquet também argumenta que “o princípio da inafastabilidade da jurisdição também é violado pela sistemática estabelecida na Portaria quando se verifica que a celebração de acordos pelo Ministério do Trabalho e Emprego pode prejudicar ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho, gerando situações de prejudicialidade que impedem o exercício pleno da tutela jurisdicional.” Tal argumento, d.m.v, não encontra respaldo sob a ótica técnico-jurídica.

Inexiste qualquer previsão legal, regulamentar ou mesmo principiológica que justifique a ideia de que um segundo termo de ajustamento de conduta impeça a execução de cláusulas vigentes e que venham a ser descumpridas de um primeiro termo de ajustamento de conduta. Litispendência é um instituto que existe entre ações judiciais idênticas estão em curso simultaneamente. Para que a litispendência seja configurada, é necessário que haja identidade de partes, causa de pedir (os fatos que fundamentam a ação) e pedido (o que se busca com a ação) entre os processos. Não há litispendência entre acordos extrajudiciais e ações judiciais. A prévia celebração de TAC com a União, por exemplo, não induz litispendência com ACP ajuizada pelo MPT, por absoluta falta de previsão legal. 

1) Da exposição da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR Nº 18 DE 13/09/2024, seus objetivos, fundamentos, esclarecimento de parâmetros etc. 

É importante esclarecer que a ideia de atualizar a regulamentação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecida como “Lista Suja”, é antiga e vem sendo dialogada e amadurecida, coletivamente, há cerca de uma década, inclusive com os órgãos e entidades da sociedade civil integrantes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE. Portanto, não se trata de um movimento unilateral do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, ainda mais por se tratar de instrumento normativo conjunto a outras Pastas ministeriais, dentre elas o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, responsável pela articulação da rede de combate ao trabalho escravo.

Ademais, a própria sistemática da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, criando duas relações, não é nova, já tendo sido adotada com a edição da anterior Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 15, de 26/07/2024, e mesmo da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, que datava de 11/05/2016.

Ocorre que, os dispositivos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4/2026 que cuidavam da celebração regulamentada de TACs e acordos judiciais pela União foram revogados ainda durante o governo do Presidente Michel Temer, deixando a Administração Pública em uma lacuna normativa e atraindo a necessidade da expedição de nova regulação geral e isonômica quanto ao tema.

Ademais, é importante que se frise que a nova Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 atende a diversos objetivos e anseios extremamente caros à política pública de combate ao trabalho análogo à escravidão.

Explica-se: desde o advento do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo, cujo primeiro instrumento regulador remonta ao ano de 2003, o Estado brasileiro e a sociedade como um todo – civil e empresarial, nacional e internacional -, puderam experimentar a materialização de preceitos e fundamentos constitucionais da República. Na medida em que, através da promoção oficial da transparência de informações, divulga-se a relação de infratores, por consequência, colabora-se para o conhecimento público desta ocorrência e, naturalmente, para uma consequente sensibilização e conscientização social, hábeis a, por via reflexa, privilegiar e demandar ações que reafirmem a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Nesse sentido, rememora-se que o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas a escravo não tem, e nunca teve, natureza punitiva. Desde a sua primeira edição ele é um instrumento de transparência, e não representa a aplicação de nenhum tipo de sanção nem determina a restrição de direitos, somente divulgando informações de inequívoco interesse público a respeito de graves violações de direitos humanos. Os efeitos sentidos pelo empregador que entra no Cadastro advém da forma como a sociedade recebe e reaje a estas informações.

Numa retrospectiva histórica, lembramos que o Cadastro de Empregadores teve sua publicação interrompida em dezembro de 2014, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), nos autos da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 5.209, que suspendeu os efeitos das portarias que então o regulamentavam. Naquele contexto, embora tenha-se editado a Portaria Interministerial nº 02, de 31/3/2015, esta nunca chegou a surtir efeitos porque ainda vigente a liminar do STF.

Posteriormente, com o advento da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11/05/2016, suplantaram-se os questionamentos a respeito da observância ao devido processo legal ao garantir ao administrado que sua inclusão no Cadastro de Empregadores somente ocorreria após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado pela Inspeção do Trabalho quando da constatação de trabalho em condição análoga à de escravo. Assegurado estava, portanto, o exercício do contraditório e da ampla defesa. O mesmo instrumento, em considerável inovação para a política pública, trouxe ainda novos termos ao Cadastro, de modo a oferecer, à luz de fundamentos e princípios constitucionais, uma alternativa viável para o anseio da sociedade civil e de forma exequível perante os empregadores que desejassem adotar uma postura de reparação, saneamento, prevenção e promoção de medidas hábeis a evitar novas ocorrências deste tipo de exploração trabalhista.

Antes do advento da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11/05/2016, a sistemática adotada pelas portarias que, ao longo do tempo, vinham regulamentando a formatação do Cadastro de Empregadores, não comportava ferramentas que viabilizassem, aos diversos órgãos de Estado e aos cidadãos, o acompanhamento de eventual e superveniente evolução da conduta e da postura adotada pelos administrados incluídos na listagem.

A Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11/05/2016, em sua publicação original, dos artigos 5º ao 12, trazia a possibilidade de que empregadores eventualmente flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravidão pudessem firmar Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordos judiciais com a União e, assim, integrariam uma segunda relação, destinada àqueles que, embora flagrados cometendo a violação, assumissem compromissos robustos de saneamento, reparação e efetiva prevenção da ocorrência do trabalho análogo ao de escravo.  No entanto, todos os citados dispositivos foram revogados pela Portaria MTB nº 1129, de 13/10/2017, conforme constatou a decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 489. A revogação destes artigos trouxe, novamente, uma lacuna normativa que implicou na falta de previsão do processamento, dos objetivos e de critérios mínimos a serem observados para a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta ou acordo judicial com empregadores sujeitos a constarem do Cadastro de Empregadores.

Desse modo, considerando que a sociedade em geral anseia por acompanhar e saber quais são os efeitos da atuação do Estado sobre a conduta dos administrados responsabilizados por este tipo de ilícito e, sobretudo, ser informada sobre a postura adotada pelo empregador quanto ao desenvolvimento de sua atividade empresarial a partir do desvelamento deste gravíssimo problema de exploração da força de trabalho, a equipe técnica da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) elaborou proposta para a edição de uma regulamentação geral e abstrata, dirigida tanto ao Poder Público quanto aos administrados, com a previsão, de maneira clara e objetiva, do conteúdo mínimo de obrigações a serem assumidas perante a União.  Avançou-se ainda para a apresentação de um guia procedimental minucioso quanto à implementação da devida diligência contra violações a direitos humanos e trabalhistas, em mais uma inovação para a política pública ao se fornecer apoio prático às empresas nesse fazer em uma linguagem clara.

Neste último ponto, por relevante e pertinente, colaciona-se extrato que cuida do aspecto preventivo na Recomendação nº 203 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Medidas Suplementares para a Supressão Efetiva do Trabalho Forçado, aprovada em Genebra, aos 11 de junho de 2014, pela 103ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho:

4. Tendo em conta as suas circunstâncias nacionais, os Membros deverão tomar as medidas preventivas mais eficazes, tais como:

(…)

(j) ao dar efeito às suas obrigações sob a Convenção para suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, fornecer orientação e apoio aos empregadores e empresas para que tomem medidas eficazes para identificar, prevenir, mitigar e contabilizar como eles abordam os riscos de trabalho forçado ou obrigatório em suas operações ou em produtos, serviços ou operações aos quais possam estar diretamente vinculados.

Para além da divulgação de casos de reincidência e persistência da infração, a transparência absorve igualmente a divulgação do resultado da vigilância feita perante o empregador que, reconhecendo sua responsabilidade, adota postura firme, abrangente e sistemática de seu sistema de produção e de sua cadeia produtiva, para prevenir novas ocorrências, além de providenciar a reparação possível aos prejuízos causados às vítimas e à sociedade.

Dessa forma, após amadurecimento e debates com outras instituições integrantes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE – dentre elas o próprio Ministério Público do Trabalho, com cujos representantes se realizaram reuniões, consultas mútuas e trocas técnicas – a proposta elaborada pela equipe técnica da Secretaria de Inspeção do Trabalho foi convertida na Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 15, de 26 de julho de 2024 e, posteriormente, com a agregação do Ministério da Igualdade Racial, na atual Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 e respectivo anexo.  

Neste contexto, o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas a escravo, continua a existir nos mesmos termos em que sempre existiu. Fundamentado na regulamentação da Lei de Acesso à Informação, o Cadastro de Empregadores, que já teve sua constitucionalidade reconhecida pelo STF nos autos da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 509, cumpre a função de informar à sociedade e dar publicidade aos casos em que houve responsabilização de empregadores, na esfera administrativa, em razão de ação fiscal da Inspeção do Trabalho, pela exploração de trabalho análogo ao de escravo.

O que fez a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 foi trazer a possibilidade de que empregadores flagrados pela Inspeção do Trabalho submetendo trabalhadores a condição análoga à de escravidão possam firmar Termos de Ajustamento de Conduta ou acordos judiciais com a União e, assim, integrar uma segunda relação, denominada Cadastro de Empregadores em Ajustamento de Conduta, destinada àqueles que, embora flagrados cometendo a violação, assumem compromissos robustos de saneamento, reparação e efetiva prevenção da ocorrência do trabalho análogo ao de escravo.

Ressalta-se a preservação da localização tópica das duas listagens, para que o administrado encontre facilmente as informações referentes ao combate ao trabalho análogo ao de escravo em um mesmo ambiente virtual, aumentando o controle e a transparência. Em adição, os próprios TACs e acordos judiciais firmados por força do normativo são documentos não só públicos, mas amplamente divulgados, a exemplo do Termo de Ajustamento de Conduta ora atacado pelo Ministério Público do Trabalho, que está disponível na página do Ministério do Trabalho e Emprego, através do link: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/acordos-celebrados .

A falta de um paradigma de regulação sobre o que é aceitável ou não, no âmbito de atuação da União, quanto aos efeitos de acordos judiciais e Termos de Ajustamento de Conduta é que vinha se mostrando problemática para a transparência do combate ao trabalho análogo ao de escravo. A Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 traz critérios claros e isonômicos, aptos a guiar a atuação dos agentes estatais com base nos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. 

Desse modo, com a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, o que houve foi a ampliação do princípio da publicidade e do acesso à informação para a sociedade, que agora poderá acompanhar e saber a postura adotada pelo empregador quanto ao desenvolvimento de sua atividade empresarial a partir do desvelamento deste gravíssimo problema de violação de direitos humanos. Ao público geral será dada a oportunidade de valorar o peso a ser dado à constatação inicial de exploração de trabalho análogo ao escravo por determinado empregador em face, por exemplo, de novas informações a respeito de um superveniente ajustamento de conduta. Ou, ao contrário, da resistência e persistência da conduta danosa do administrado.

A sistemática da nova Portaria, nesse sentido, responde a três objetivos: i) invariavelmente dar acesso à sociedade aos dados existentes sobre a constatação de exploração de trabalho análogo ao de escravo; ii) estimular uma consistente assunção de compromissos, mediante Termo de Ajustamento de Conduta – TAC ou acordo judicial com a União, e mudança efetiva de conduta do empregador responsabilizado pelo ilícito; iii) franquear à sociedade acesso à informação sobre a assunção ou não destes compromissos por parte do empregador e quais seus termos.

O segundo ponto central que deve ser destacado é que o conjunto dos parâmetros de celebração de TACs ou acordos judiciais trazido pela Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 conjuga uma série de exigências de saneamento, reparação e prevenção ao empregador que elevam, de modo inequívoco, os patamares adotados pelo Estado Brasileiro tanto de responsabilização dos empregadores quanto de garantia de direitos aos trabalhadores. Esclarece-se:

Passados trinta anos de combate, é sabido que a mera assunção de compromisso genérico em respeitar a lei é inócua para o desenvolvimento e avanço da política pública de erradicação do trabalho análogo ao de escravo, seja em seu viés repressivo, seja em seu aspecto preventivo. Além disso, essa generalidade é incompatível com a grave lesão a direitos humanos, aos mais básicos direitos trabalhistas e ao próprio tecido de valores sociais que representa esse ilícito.

A reiterada execução de ações multidisciplinares e interinstitucionais de combate ao trabalho análogo ao de escravo pelo Estado brasileiro ao longo dos anos, sempre em articulação com a sociedade civil organizada, permite hoje um diagnóstico robusto acerca das raízes mais profundas deste terrível fenômeno. Por isso, esta desejável mudança de postura do empregador, nos termos da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, envolve a assunção de compromissos muito concretos e consistentes com o Estado brasileiro, calcados nos seguintes pressupostos: i) reparação dos danos causados; ii) adoção de medidas de saneamento das irregularidades; e iii) adoção de medidas preventivas e promocionais para evitar a futura ocorrência de novos casos de trabalho análogo ao de escravo, tanto no âmbito de atuação da empresa quanto no mercado de trabalho em geral.

Estes eixos de abordagem estão em linha com os intensos debates, no plano nacional e internacional, acerca da crescente preocupação com a responsabilidade de grandes empresas por suas cadeias de produção e de valor, contexto este em que se destacam, mais recentemente, a Lei Alemã de Devida Diligência Corporativa em Cadeias de Suprimentos e a Lei Europeia da Cadeia de Suprimentos, também conhecida como Diretiva de Dever de Diligência em Sustentabilidade Corporativa, nas quais se buscou inspiração para vários dispositivos constantes da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024.

Em complemento, considerando-se que o trabalho análogo ao de escravo, fenômeno multicausal e complexo, não pode ser dissociado de outras graves infrações a direitos trabalhistas e humanos, cita-se ainda a aderência das previsões inseridas na Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 com outros tantos instrumentos legais nacionais e internacionais, como a Recomendação nº 203 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Medidas Suplementares para a Supressão Efetiva do Trabalho Forçado, aprovada em Genebra, aos 11 de junho de 2014, pela 103ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho; a Agenda de Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030) da Organização das Nações Unidas (ONU), adotada em Nova Iorque, aos 27 de setembro de 2015, pela Assembleia Geral das Nações Unidas; os Princípios orientadores sobre Empresa e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), endossados pela Resolução nº 17/4 de 16 de junho de 2011, pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU); e o Decreto nº 11.772, 09 de novembro de 2023, que prevê, como diretrizes para a elaboração da Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas, o aprimoramento da efetividade de atuais programas e políticas públicas setoriais relacionados à defesa e à promoção de direitos humanos no âmbito empresarial, o estímulo à implementação de mecanismos empresariais para prevenção à violação de direitos humanos, o monitoramento para a garantia do cumprimento de obrigações referentes aos direitos humanos e o alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Já no primeiro eixo, quanto à reparação aos danos causados, destaca-se o exemplo do valor do dano moral individual a ser pactuados em favor dos trabalhadores resgatados. É patente, para todos que integram proximamente a rede coletiva de combate ao trabalho análogo ao de escravo, que a fixação de um piso mínimo, como fez a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, de indenização dos trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo em R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais), acrescido de um piso de mais 2 (dois) salários mínimos por cada ano de exploração, é, em muito, superior à média das indenizações que vinham sendo corriqueiramente praticadas, seja em composições promovidas por instituições que integram o sistema de Justiça com os empregadores, seja em condenações judiciais.

Em complemento, a sistemática da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 prevê que as indenizações anteriormente pagas aos trabalhadores em demandas promovidas pelo Ministério Público do Trabalho e da Defensoria Pública da União ou decorrentes de decisões judiciais podem ser considerados para atingir o somatório de, no mínimo, R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais) e eventual acréscimo. Nesse sentido, isso aumenta o montante pago diretamente ao trabalhador ou à trabalhadora, pois a diferença deverá ser complementada pelo empregador. Ademais, nos termos da citada portaria, todos os TACs e acordo judiciais firmados pela União trarão expresso que o pagamento do dano moral individual pactuado não impedirá que os próprios trabalhadores escravizados exerçam o direito de pleitear eventuais valores que entendam ainda devidos sob este título, nem prejudicará ações coletivas ou individuais com o mesmo objeto.

No mesmo sentido é a obrigação de realizar monitoramento continuado do respeito aos direitos trabalhistas e humanos na cadeia de valor do administrado, integrando o terceiro eixo de abordagem. Por meio dela o empregador assumirá o dever de – além de diligenciar ativamente para prevenir – promover o imediato saneamento e a reparação de violações a direitos trabalhistas e humanos constatadas em sua auditoria própria ou por meio das atividades de fiscalização da Inspeção do Trabalho ou de outros órgãos estatais competentes. Este dever de monitorar, sanear e reparar irá se estender aos trabalhadores contratados: i) diretamente pelo empregador; ii) contratados diretamente ou terceirizados por fornecedor direto cuja atividade esteja vinculada à confecção, distribuição dos produtos ou à prestação dos serviços explorados economicamente pelo empregador; iii) contratados diretamente ou quarteirizados por prestadora de serviço terceirizado.

Não há hoje, seja na legislação positivada, seja na sua aplicação pelos operadores do direito, uma construção de responsabilidade empresarial ampla, objetiva e prospectiva (preventiva), abarcando inclusive relações comerciais, como a que é adotada, no caso de composição com o empregador, por força da nova Portaria.

Mas não só, a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024 contém, em seu Anexo, um passo a passo procedimental para a implementação do monitoramento, que consistirá em um Programa de Gerenciamento de Riscos e Resposta a Violações de Direitos Trabalhistas e Humanos. Este guia, ao trazer um roteiro detalhado sobre como fazer o monitoramento, poderá servir não apenas aos empregadores em ajustamento de conduta, para os quais será obrigatório, mas também para orientar quaisquer empresários que tenham interesse em adotar boas práticas de diligência em direitos trabalhistas e humanos em suas respectivas cadeias de valor.

Trata-se de um ferramental precioso e sem paralelo em qualquer outro normativo nacional ou internacional. O mais próximo disso que existe no mundo é o Guia de Devida Diligência para uma Conduta Empresarial Responsável da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – OCDE. As diversas legislações de devida diligência hoje existentes dizem apenas que é preciso ter a diligência devida ao longo do processo produtivo, mas não explicam como fazer isso na prática.

Além do dano moral individual e do monitoramento da cadeia de valor, em todos os acordos judiciais ou TACs firmados com a União, nos termos da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024, o empregador também deverá: i) recompor e pagar integralmente os direitos trabalhistas e previdenciários das vítimas; ii) ressarcir ao Estado o valor do seguro-desemprego do trabalhador resgatado a que fizer jus cada uma das vítimas envolvidas; iii) aportar 2% de seu faturamento bruto (observado o limite de R$ 25 milhões) em programas de assistência a trabalhadores resgatados de trabalho em condição análoga à de escravo ou especialmente vulneráveis a este tipo de ilícito; e iv) renunciar a qualquer medida, na esfera administrativa ou judicial, contra os autos de infração lavrados pela Inspeção do Trabalho na ação fiscal em que houve constatação de trabalho em condições análogas à escravidão.

Assinado o Termo de Ajustamento de Conduta ou firmado acordo judicial com a União, o cumprimento do instrumento se torna obrigatório e será acompanhado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, inclusive, evidentemente, quanto ao pagamento dos direitos trabalhistas e indenizações pactuadas em favor dos trabalhadores. Em caso de descumprimento, o empregador será retirado do Cadastro e Empregadores em Ajustamento de Conduta e integrado ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas a escravo.

Além disso, o acordo judicial firmado ou o Termo de Ajustamento de Conduta assinado, representam títulos executivos. Se descumpridos, o Judiciário será devidamente acionado para cobrança do adimplemento das obrigações e das respectivas multas pelo descumprimento do que foi acordado.

2) Da legalidade do TAC e acordo judicial previstos na Portaria 18. Da alegada ilegitimidade da União para atuar na Defesa dos Direitos Transindividuais Trabalhistas 

Alega o I. Parquet em sua exordial:

A referida Portaria, ao atribuir ao Ministério do Trabalho e Emprego e à Advocacia-Geral da União legitimidade para celebrar termos de ajuste de conduta versando sobre direitos transindividuais trabalhistas, e o consequente Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pela União prevendo tutela reparatória (individual e coletiva) e tutela inibitória, violam frontalmente as normas constitucionais e infraconstitucionais que estabelecem o sistema brasileiro de legitimação extraordinária para a tutela coletiva, configurando usurpação manifesta de atribuições constitucionalmente reservadas ao Ministério Público.

Ocorre que a Portaria não atribui legitimidade ou competência, seja ao Ministério do Trabalho e Emprego seja à Advocacia Geral da União. Também não se trata de estender outras competências à Inspeção do Trabalho, como dá a entender o Ministério Público do Trabalho.

A edição da Portaria Interministerial MTE/MDHCMIR nº 18/2024, ato normativo de natureza normativa secundária, deu-se nos estritos moldes do art. 87‒parágrafo único‒II da Constituição, que fixa a competência dos Ministros de Estado para “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos”.

A Portaria Interministerial MTE/MDHCMIR nº 18/2024, como aquelas que a antecederam na matéria, apenas dá publicidade a atos administrativos e estabelece os parâmetros de conveniência e oportunidade para a celebração dos TACs ou acordos, não trazendo rigorosamente nenhuma inovação no mundo jurídico.

A competência para a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta e acordos judiciais é dada, por lei, à União.

Rememora-se que o arranjo desenhado pelo legislador nacional para o microssistema de tutelas coletivas no Brasil funda-se na eleição deliberada de vários legitimados coletivos ativos, conforme se depreende dos artigos 5º da Lei de Ação Civil Pública e art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, principais diplomas legais acerca do tema. Essa multiplicidade de atores visa garantir a efetividade da tutela jurisdicional em casos que envolvem um grande número de pessoas, cujos direitos ou interesses são afetados de forma semelhante, assegurando várias camadas de proteção.

Ante tal premissa anterior, os entes integrantes da Administração Pública possuem, nos termos da legislação de regência, legitimidade ativa tanto para a propositura de ações coletivas quanto para tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, seja no que tange à defesa de seus próprios interesses, seja no que se refere à proteção de direitos de seus administrados relacionados com as atribuições do órgão ou entidade.

A União, dessa forma, tem competência legal para firmar acordos judiciais e Termos de Ajustamento de Conduta com os administrados e, consequentemente, para estabelecer a eles obrigações a partir do pactuado, tanto quanto o Ministério Público ou a Defensoria Pública, nos termos do art. 5º, caput e §6º, da Lei nº 7.347/85. Vejamos:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

III – a União (…)

(…)

§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.

Portanto, é cristalino que a União tem, verdadeiramente, competência legal para atuar na tutela de direitos difusos e coletivos, de modo expresso e inquestionável, nos termos da Lei 7.347/85, e para a consequente celebração de acordos e TACs.

A União não apenas tem competência, como desempenha historicamente, na prática, juntamente com o Ministério Público e outros órgãos, um papel essencial na defesa dos direitos difusos nas mais distintas áreas. Em verdade, diversos órgãos da administração pública federal atuam na defesa de direitos difusos, como o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação e o próprio Ministério do Trabalho e Emprego, entre outros.

Nesse mister, a União se utiliza de instrumentos múltiplos, culminando na atuação judicial e administrativa para garantir a proteção desses direitos para toda a sociedade. Assim, a União fiscaliza o cumprimento de leis e regulamentos que protegem direitos difusos, ajuíza ações civis públicas para responsabilizar empresas ou pessoas que causem danos a direitos difusos, celebra termos de ajustamento de conduta (TACs) com empresas para que estas adotem medidas para corrigir práticas prejudiciais aos direitos difusos. O Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), criado pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 e regulamentado pela Lei nº 9.008, de 21 de março de 1995, é um instrumento importante para a reparação de danos ao meio ambiente, ao consumidor e a outros interesses difusos e coletivos. A União, por meio do Ministério da Justiça, gerencia o FDD, que recebe recursos de condenações por danos a direitos difusos, multas e outras fontes, para financiar projetos de recuperação ambiental, defesa do consumidor e outras iniciativas relacionadas.

Em adição, cumpre ressaltar que sequer há a limitação pretendida pelo I. Parquet em relação a direitos individuais no que respeita à União. Tal limitação de atuação, quanto a direitos individuais, é restrita ao MPT, por seu regime jurídico próprio de atuação. Não se comunica, como quer o Parquet trabalhista, à União.

Aliás, a competência prevista no art. 5º, §6º, da retromencionada Lei nº 7.347/85, encontra também amparo no art. 26 do Decreto Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, mais conhecido como Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, perfeitamente recepcionada pela Carta Magna, que assim dispõe:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo:

I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II – (VETADO);

III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

Por fim, não é demais registrar que não são os Auditores-Fiscais do Trabalho que celebram os TACs ou acordos judiciais, mas a União, através do Ministério do Trabalho e Emprego.

De outro lado, o I. Parquet, sob lógica que nos foge o entendimento, afirma não estar atendido o requisito da pertinência temática para a atuação da União, por intermédio do Ministério do Trabalho e Emprego, na tutela coletiva de direitos transindividuais eminentemente trabalhistas.

Ora, contrariamente ao afirmado pelo Parquet trabalhista, há evidente pertinência temática na atuação da União, através do MTE, e da Inspeção do Trabalho na defesa e cobrança dos direitos trabalhistas de vítimas de trabalho análogo ao escravo. As atribuições e a própria atuação histórica do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no combate ao trabalho em condição análoga à escravidão, a qual está muito distante de se restringir à mera aplicação de multas administrativas, como quer fazer crer o I. Parquet, demonstram isso.

A União, através da Inspeção do Trabalho, tem competência constitucional e legal para exigir o cumprimento da legislação trabalhista. Vejamos o que a Constituição Federal prevê:

Art. 21. Compete à União:

(…)

XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho; 

(…)

Diversas normas atribuem ao Ministério do Trabalho competência para adotar medidas destinadas à observância das normas de proteção ao trabalho, inclusive dos diplomas internacionais afins incorporados ao ordenamento interno, a exemplo da Convenção 81 da OIT.

A Lei nº 14.600, de 19 de junho de 2023, em seu art. 46, atribui ao Ministério do Trabalho e Emprego competência para realizar a fiscalização do trabalho e aplicar as sanções correspondentes, além de promover políticas de enfrentamento às desigualdades e à precariedade no mundo do trabalho.

Igual diploma legal reconhece, em seu art. 28, a competência do Ministério dos Direitos Humanos para formular, coordenar e executar políticas e diretrizes voltadas à promoção dos direitos humanos e, no art. 33, a competência ao Ministério da Igualdade Racial para coordenar e monitorar a implementação de políticas intersetoriais e transversais de igualdade racial. Ambas as Pastas ministeriais são igualmente subscritoras da multicitada Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024.

O art. 626‒caput da CLT estabelece:

Art. 626. Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho. 

O art. 913‒caput da CLT, de outra banda, dispõe sobre a competência regulamentar do Ministro do Trabalho para expedir instruções, quadros, tabelas e modelos necessários à execução da legislação trabalhista.

Especificamente com relação aos Auditores-Fiscais do Trabalho, pertencentes aos quadros da citada Pasta, o art. 11, incisos I e V da Lei 10.593, de 6 de dezembro de 2002, atribui-lhes o dever de assegurar, em todo o território nacional, o cumprimento de disposições legais e regulamentares relacionadas à segurança e à medicina do trabalho, bem como de acordos, tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho, no exercício das atribuições, são autoridades trabalhistas, conforme §6º do mesmo artigo. O Decreto nº 4.552 de 2002 aprovou o Regulamento da Inspeção do Trabalho, dispondo acerca da sua finalidade, organização e atuação. Colacionamos disposições de interesse ao combate à escravidão contemporânea:

Art. 9º A inspeção do trabalho será promovida em todas as empresas, estabelecimentos e locais de trabalho, públicos ou privados, estendendo-se aos profissionais liberais e instituições sem fins lucrativos, bem como às embarcações estrangeiras em águas territoriais brasileiras.

Art. 13. O Auditor-Fiscal do Trabalho, munido de credencial, tem o direito de ingressar, livremente, sem prévio aviso e em qualquer dia e horário, em todos os locais de trabalho mencionados no art. 9º.

Art. 14. Os empregadores, tomadores e intermediadores de serviços, empresas, instituições, associações, órgãos e entidades de qualquer natureza ou finalidade são sujeitos à inspeção do trabalho e ficam, pessoalmente ou por seus prepostos ou representantes legais, obrigados a franquear, aos Auditores-Fiscais do Trabalho, o acesso aos estabelecimentos, respectivas dependências e locais de trabalho, bem como exibir os documentos e materiais solicitados para fins de inspeção do trabalho.

Art. 15. As inspeções, sempre que necessário, serão efetuadas de forma imprevista, cercadas de todas as cautelas, na época e horários mais apropriados a sua eficácia.

(…)

Art. 18. Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, em todo o território nacional:

I – verificar o cumprimento das disposições legais e regulamentares, inclusive as relacionadas à segurança e à saúde no trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de emprego, em especial:

a) os registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), visando à redução dos índices de informalidade;

b) o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), objetivando maximizar os índices de arrecadação;

c) o cumprimento de acordos, convenções e contratos coletivos de trabalho celebrados entre empregados e empregadores; e

d) o cumprimento dos acordos, tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil;

II – ministrar orientações e dar informações e conselhos técnicos aos trabalhadores e às pessoas sujeitas à inspeção do trabalho, atendidos os critérios administrativos de oportunidade e conveniência;

III – interrogar as pessoas sujeitas à inspeção do trabalho, seus prepostos ou representantes legais, bem como trabalhadores, sobre qualquer matéria relativa à aplicação das disposições legais e exigir-lhes documento de identificação;

IV – expedir notificação para apresentação de documentos;

V – examinar e extrair dados e cópias de livros, arquivos e outros documentos, que entenda necessários ao exercício de suas atribuições legais, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico;

VI – proceder a levantamento e notificação de débitos;

VII – apreender, mediante termo, materiais, livros, papéis, arquivos e documentos, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico, que constituam prova material de infração, ou, ainda, para exame ou instrução de processos;

VIII – inspecionar os locais de trabalho, o funcionamento de máquinas e a utilização de equipamentos e instalações;

IX – averiguar e analisar situações com risco potencial de gerar doenças ocupacionais e acidentes do trabalho, determinando as medidas preventivas necessárias;

X – notificar as pessoas sujeitas à inspeção do trabalho para o cumprimento de obrigações ou a correção de irregularidades e adoção de medidas que eliminem os riscos para a saúde e segurança dos trabalhadores, nas instalações ou métodos de trabalho;

XI – quando constatado grave e iminente risco para a saúde ou segurança dos trabalhadores, expedir a notificação a que se refere o inciso X deste artigo, determinando a adoção de medidas de imediata aplicação;

XII – coletar materiais e substâncias nos locais de trabalho para fins de análise, bem como apreender equipamentos e outros itens relacionados com a segurança e saúde no trabalho, lavrando o respectivo termo de apreensão;

XIII – propor a interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou o embargo de obra, total ou parcial, quando constatar situação de grave e iminente risco à saúde ou à integridade física do trabalhador, por meio de emissão de laudo técnico que indique a situação de risco verificada e especifique as medidas corretivas que deverão ser adotadas pelas pessoas sujeitas à inspeção do trabalho, comunicando o fato de imediato à autoridade competente;

XIV – analisar e investigar as causas dos acidentes do trabalho e das doenças ocupacionais, bem como as situações com potencial para gerar tais eventos;

XV – realizar auditorias e perícias e emitir laudos, pareceres e relatórios;

XVI – solicitar, quando necessário ao desempenho de suas funções, o auxílio da autoridade policial;

XVII – lavrar termo de compromisso decorrente de procedimento especial de inspeção;

XVIII – lavrar autos de infração por inobservância de disposições legais;

XIX – analisar processos administrativos de auto de infração, notificações de débitos ou outros que lhes forem distribuídos;

XX – devolver, devidamente informados os processos e demais documentos que lhes forem distribuídos, nos prazos e formas previstos em instruções expedidas pela autoridade nacional competente em matéria de inspeção do trabalho;

XXI – elaborar relatórios de suas atividades, nos prazos e formas previstos em instruções expedidas pela autoridade nacional competente em matéria de inspeção do trabalho;

XXII – levar ao conhecimento da autoridade competente, por escrito, as deficiências ou abusos que não estejam especificamente compreendidos nas disposições legais;

XXIII -atuar em conformidade com as prioridades estabelecidas pelos planejamentos nacional e regional.

Por seu turno, a Portaria nº 547, de 22 de outubro de 2021, do então Ministério do Trabalho e Previdência, disciplina a forma de atuação da Inspeção do Trabalho e dá outras providências, inclusive, regulamentando a atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel para a Erradicação do Trabalho em Condições Análogas a Escravo – GEFM (Seção I). A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em 2016, que a criação do GEFM, coordenado pela Auditoria Fiscal do Trabalho, é uma das iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo promovidas pelo governo brasileiro. O GEFM atua em todo território nacional desde 1995, quando o governo brasileiro admitiu a existência de trabalho escravo no país e foi iniciada a política pública de combate ao trabalho escravo. A Auditoria Fiscal do Trabalho coordena o grupo, atuando em parceria ao longo desses anos. Também participam das operações do GEFM a Polícia Rodoviária Federal – PRF, a Polícia Federal – PF, o próprio Ministério Público do Trabalho – MPT, o Ministério Público Federal – MPF e a Defensoria Pública da União – DPU.

No que tange especificamente ao procedimento operacional a ser adotado pela Inspeção do Trabalho nos casos de trabalho em condições análogas a escravo, a Auditoria Fiscal do Trabalho conta ainda com disposições emitidas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho,  do então Ministério do Trabalho e Previdência, insertas no capítulo V da Instrução Normativa nº 02 de 2021. É do referido instrumento que constam sistematizados indicadores técnicos não taxativos da ocorrência do ilícito em cada uma das hipóteses de configuração do trabalho análogo a escravo (Anexo II), os quais servem de referência a todos as demais instituições parceiras no combate ao ilícito. Fixam-se ainda, com base nos princípios da presunção de legalidade e autoexecutoriedade dos atos da Administração Pública, as medidas a serem tomadas quando do “resgate” de trabalhadores:

Art. 33. O Auditor-Fiscal do Trabalho, ao constatar trabalho em condição análoga à de escravo, em observância ao art. 2º-C da Lei n.º 7.998, de 1990, notificará por escrito o empregador ou preposto para que tome, às suas expensas, as seguintes providências:

I – a imediata cessação das atividades dos trabalhadores e das circunstâncias ou condutas que estejam determinando a submissão desses trabalhadores à condição análoga à de escravo;

II – a regularização e rescisão dos contratos de trabalho, com a apuração dos mesmos direitos devidos, no caso de rescisão indireta;

III – o pagamento dos créditos trabalhistas por meio dos competentes instrumentos de rescisão de contrato de trabalho;

IV – o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e da Contribuição Social correspondente;

V – o retorno aos locais de origem daqueles trabalhadores recrutados fora da localidade de prestação dos serviços; e

VI – o cumprimento das obrigações acessórias ao contrato de trabalho, enquanto não tomadas todas as providências para regularização e recomposição dos direitos dos trabalhadores.

Parágrafo único. Quando constatado que o recebimento das verbas rescisórias previstas no inciso III ocasionar situação de risco adicional ao trabalhador resgatado, deverão ser envidados esforços para que os pagamentos sejam feitos por meio de depósito em conta bancária em nome do trabalhador.

Art. 34. O Auditor-Fiscal do Trabalho providenciará, manual ou eletronicamente, a Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS ao trabalhador resgatado que não possua este documento, sempre que o encaminhamento às unidades descentralizadas do Ministério do Trabalho e Previdência possa implicar prejuízo à efetividade do atendimento da vítima.

Art. 35. Na hipótese de haver recusa do empregador em adotar as providências previstas no inciso I do art. 33 desta Instrução Normativa, e esgotados os esforços administrativos de sua competência para afastar os trabalhadores da situação de condição análoga à de escravo, o Auditor-Fiscal do Trabalho comunicará os fatos imediatamente à sua chefia de fiscalização, para que informe à Polícia Federal ou a qualquer outra autoridade policial disponível, e ao Ministério Público Federal, ressaltando a persistência do flagrante do ilícito.

Art. 36. Na hipótese de haver negativa do empregador em acatar as determinações administrativas previstas nos incisos I a VI do art. 33, o fato será comunicado ao Ministério Público do Trabalho, à Defensoria Pública da União e à Advocacia-Geral da União para a adoção das medidas judiciais cabíveis para a efetivação dos direitos dos trabalhadores.

Art. 39. Com o objetivo de proporcionar o acolhimento do trabalhador submetido à condição análoga à de escravo, seu acompanhamento psicossocial e o acesso a políticas públicas, o Auditor-Fiscal do Trabalho deverá, no curso da ação fiscal, observar a regulamentação vigente.

Art. 40. Os trabalhadores migrantes não nacionais que estejam em situação migratória irregular e que tenham sido vítimas de tráfico de pessoas, de trabalho análogo ao de escravo ou violação de direito agravada por sua condição migratória deverão ser encaminhados para concessão de autorização de residência no território nacional, de acordo com o que determinam o art. 30 da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, o art. 158 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, bem como as demais normas vigentes.

Art. 44. O Auditor-Fiscal do Trabalho habilitado no sistema de concessão de seguro-desemprego deverá cadastrar os dados do trabalhador resgatado para fins de concessão do benefício, conforme instruções da Coordenação-Geral de Gestão de Benefícios da Subsecretaria de Políticas Públicas de Trabalho e orientações da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, ambas vinculadas à Secretaria de Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência.

É inegável a atribuição legal relevantíssima dos Auditores-Fiscais do Trabalho de materializar a proteção aos trabalhadores e fazer cumprir fielmente a legislação tuitiva trabalhista. No que toca ao trabalho escravo contemporâneo, inclusive, é competência expressa da Inspeção do Trabalho realizar o resgate das vítimas, com a garantia integral de seus direitos, conforme dispõe o art. 2º C da Lei 7.998, de 11 de janeiro de 1990, com redação dada pela Lei nº 10.608, de 20 de dezembro de 2002.

Neste ponto, é importante ressaltar que por “resgate” não se entende meramente a retirada física do obreiro de seu local de exploração; mas sim um conjunto de procedimentos administrativos que reconhecem o trabalhador resgatado como uma pessoa detentora de direitos. Trata-se da aplicação, na prática, do princípio da centralidade vítima. De competência exclusiva da Auditoria-Fiscal do Trabalho, conforme convencionou chamar o art. 2º-C, caput, da Lei nº 7.998/1990, o “resgate” de trabalhadores da condição análoga à de escravo compreende uma gama de procedimentos, ressaltando-se dentre eles a rescisão dos contratos de trabalho, a reparação dos danos trabalhistas por meio do pagamentos das verbas rescisórias, a emissão das guias de seguro desemprego para trabalhador resgatado, o retorno ao local de origem caso tenham sido também vítimas de tráfico de pessoas e o encaminhamento dos resgatados para acolhimento pelos aparelhos de assistência social competentes, a fim de que a situação de vulnerabilidade desses trabalhadores seja reduzida, com objetivo de quebrar possíveis ciclos de exploração de trabalho a níveis desumanos. A lavratura de documentos fiscais também encontra previsão, subsidiando a estratégia da publicação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão.

Ainda, a execução da política pública de erradicação do trabalho escravo está a cargo, principalmente, do Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito do Poder Executivo, uma vez que os autos de infração são lavrados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho que integram a Pasta, sendo ela ainda que instituiu e mantém ambos os Cadastros atualmente regulados pela Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR nº 18/2024. Não se trata, portanto, de entidade estranha à causa. Pelo contrário, há vínculo efetivo.

No que tange à Advocacia- Geral da União, o legislador constituinte originário lhe conferiu a missão peculiar de promover a defesa judicial e extrajudicial da União, consoante o art. 131 da Carta Magna.

Por sua vez, a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, denominada de Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, estabeleceu, em seu art. 4º, VI, a competência do Advogado-Geral da União para desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União. Mais especificamente, o art. 1º da Lei nº 9.469/97, confere ao Advogado-Geral da União, diretamente ou mediante delegação, a competência para autorizar a realização de acordos ou transações visando prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais. Em seu § 4º, o dispositivo adota a lógica de que em matérias relevantes, como é o caso sob análise, o acordo ou a transação, sob pena de nulidade, dependerá de prévia e expressa autorização do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado a cuja área de competência estiver afeto o assunto (no caso, o Ministério do Trabalho e Emprego).

Além disso, o Estado brasileiro, representado internacionalmente pela União, se vinculou a diversos compromissos internacionais de reprimir o trabalho escravo contemporâneo – a exemplo das Convenções da OIT n. º 29 e 105, Convenção sobre Escravatura de 1926, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica -, todos vigentes e plenamente recepcionadas pela Carta Constitucional de 1988. Tais diplomas internacionais contêm dispositivos que preveem a adoção imediata de todas as medidas, legislativas ou não, necessárias para a erradicação do trabalho escravo.

Esse conjunto legislativo, associado aos preceitos constitucionais sobre acesso à informação e transparência, são mais do que suficientes para amparar normativamente a edição de portaria que simplesmente torna cognoscíveis pela sociedade atos administrativos naturalmente públicos, produzidos com atendimento dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da legalidade em sentido estrito, e em matéria de inegável importância social.

E, nessa esteira, nos parece claro asseverar que não é possível sustentar que acordos judiciais e termos de ajustamento de conduta que versem sobre trabalho em condições análogas às de escravo, prática repelida veementemente pela Constituição Federal de 1988 e por diversas convenções internacionais das quais o Estado brasileiro é signatário, não possam ser firmados pela União, representada pelo Ministério do Trabalho

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.