Adultização: infância negra é negligenciada no Brasil, diz pesquisador

No Dia da Infância, professor João Marcos Bigon fala sobre a adultização de crianças negras, que além de entrarem muito cedo no mercado de trabalho, ainda precisam lidar com a sexualização precoce de seus corpos
Por Beatriz Vitória | Edição Carlos Juliano Barros
 24/08/2025

O YOUTUBER Felca retomou o debate sobre a chamada “adultização” de crianças e adolescentes — a exposição de pessoas com menos de 18 anos à erotização precoce e à exploração do trabalho nas redes.

Segundo o professor João Marcos Bigon, Coordenador Regional do Equidade.Info e Mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET-RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro), há um recorte racial que não tem sido levado devidamente em conta nesse debate. 

“Quando falamos de adultização, a infância pensada é sempre branca. As crianças negras quase nunca entram nessa matemática”, diz Bigon, em entrevista exclusiva à Repórter Brasil para marcar o Dia da Infância.

Além de serem cobradas a assumir responsabilidades, crianças negras são levadas a trabalhar desde cedo e também estão mais expostas à sexualização precoce de seus corpos, um processo marcado pelo racismo estrutural.

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Bigon afirma que a infância negra vem sendo historicamente negligenciada desde as primeiras leis abolicionistas, como a Lei do Ventre Livre (1871). Embora declarasse livres os filhos de pessoas escravizadas, a medida deixava as crianças à própria sorte, sem proteção ou garantia de direitos.

Mais de 100 anos após a abolição da escravidão, as crianças negras ainda estão em uma posição mais vulnerável do que as brancas. De acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua 2023, embora crianças e adolescentes pretos e pardos representem 59,9% da população de 5 a 17 anos, eles correspondem a mais da metade (65,2%) daqueles em situação de trabalho infantil.

A desigualdade se repete nas piores formas de trabalho infantil, segundo a PNAD: 67,5% das vítimas são negras. Além disso, crianças negras recebem em média menos pelo trabalho: R$ 707 por mês, contra R$ 875 das crianças brancas.

O professor João Marcos Bigon é Coordenador Regional do Equidade.Info e Mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET-RJ
O professor João Marcos Bigon é Coordenador Regional do Equidade.Info e Mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET-RJ (Foto: Reprodução / Redes Sociais)

“Pessoas negras são as mais expostas à vulnerabilidade social, à pobreza, à miséria, à extrema pobreza e às doenças. Consequentemente, as crianças provenientes desses contextos familiares serão afetadas por isso”, explica Bigon.

Leia a entrevista na íntegra.

O vídeo do Felca viralizou e reacendeu o debate sobre adultização de crianças. O que você pode falar sobre a adultização das crianças negras nas redes sociais?

A adultização de crianças negras em redes sociais se difere em alguns pontos específicos com relação a outras crianças. Por exemplo, não é incomum ver em redes sociais conteúdo de crianças negras em alguma situação de vulnerabilidade social, e o conteúdo ser tratado no lugar da superação, da comoção, e não [no lugar] de um olhar de cuidado com aquela criança, de um olhar para a infância.

Para além disso, há muito conteúdo também de crianças trabalhando, por exemplo, vendendo bala na rua, e se criam certos discursos sobre aquela situação, que não olham que aquilo é um contexto de trabalho infantil.

Há também a exposição de meninas, sobretudo na fase da infância e adolescência. Você abre os comentários e vê um abismo muito maior se ampliando: comentários de hipersexualização e que esbarram muito em comentários relacionados à pedofilia. Quando se trata de meninos negros, há um fator muito interessante sobre o corpo, sobre o físico deles. Há comentários clássicos, que as pessoas também fazem fora das redes sociais, como o “vai dar trabalho”, ou comentários relacionados à virilidade masculina.

Existe um universo de comentários, muitas vezes sutis, direcionados a crianças e adolescentes negros em redes sociais que passam muito despercebidos, sobretudo porque eles são feitos também na vida real. Não são comentários única e exclusivamente feitos em rede social, mas são feitos abertamente pelas pessoas fora das redes sociais.

Como a adultização de crianças nas redes sociais afeta as crianças negras? E qual a diferença para as demais crianças?

Quando se traz a raça para o centro da conversa, trazemos esse diferencial: é preciso compreender que é um problema que está fora da rede social, que a rede social incorpora e torna isso ainda mais exponencial.

A diferença para as crianças negras sendo adultizadas em rede social em relação a crianças não negras é que há uma comoção diferente, uma naturalização de certas situações quando essas crianças são negras, e não há a percepção de que esse problema, que está sendo discutido a princípio como um problema da rede social, é um problema da sociedade, um problema fora da rede social.

Por que o recorte racial muitas vezes fica de fora desse debate?

O recorte racial muitas vezes fica de fora desse debate porque ele já está de fora do debate fora das redes sociais. Mesmo quando se discute a adultização, este é um debate antigo dentro do universo da educação e das paternidades e maternidades, sobretudo das maternidades. Não é uma conversa nova. Embora o Felca tenha uma proeminência em debater isso no âmbito de uma análise de rede social, o debate sobre a adultização em si não é algo inédito.

A conversa sobre raça fica fora do debate de adultização porque ele já é um debate feito há muito tempo, a partir de uma mentalidade do “ser universal”, que é pensar a criança, a infância como uma infância sem cor, sem raça, uma infância branca. As crianças negras não são enquadradas, e as crianças indígenas menos ainda, nessa matemática de se pensar a adultização de crianças, seja dentro ou fora de rede social.

Então, quando a discussão vai para a rede social, já vai com toda essa carga de preconceito, discriminação e invisibilização que existe do lado de fora das redes sociais. As crianças negras não são incluídas na lógica de se debater a adultização, e quando essa conversa vai para a rede social, vai junto com tudo que está fora, que é invisibilizar a questão racial, torná-la algo que talvez orbite o tema, mas que não é central, mesmo considerando que o Brasil tem a maior população negra fora da África. Esse é um tema que deveria ser central em todos os debates da sociedade, sobretudo quando se fala de infâncias.

O IBGE mostra que 65% das crianças em situação de trabalho infantil são pretas ou pardas. Por que essa realidade atinge de forma tão desigual as crianças negras?

Essa realidade atinge as crianças negras de forma tão desigual porque as famílias negras ou as crianças negras são parte de famílias que estão protagonizando os índices de vulnerabilidade social no país. Pessoas negras são as mais expostas à vulnerabilidade social, à pobreza, à miséria, à extrema pobreza e às doenças, e consequentemente as crianças provenientes desses contextos familiares serão afetadas por isso. Por esse motivo, há um número expressivíssimo (65% é muita coisa) de crianças negras em situação de trabalho infantil.

O segundo ponto é que, na história da cultura e da sociedade brasileira, no contexto de pós-abolição, as leis de abolição, como a Lei do Ventre Livre, trouxeram um peso muito grande de “descarrilhamento” da história da infância negra para o país. É como se fosse o início de um modelo de infância negligenciada.

Antes da Lei do Ventre Livre, as crianças negras eram escravizadas, não tinham infância e não eram reconhecidas como seres humanos, estando diretamente ligadas ao trabalho duro, pesado, braçal, ou ao trabalho de serviço, de serventia, utilitarista. Depois, com a Lei do Ventre Livre, essas crianças teoricamente livres foram “jogadas à própria sorte”, muitas vezes sem seus responsáveis ou com seus pais ainda escravizados. Essa matemática não encaixa: se os pais eram escravizados e não livres cidadãos, quem criaria e educaria essas crianças que estavam livres? Elas eram invisíveis.

Olhando para a fundação das escolas, as crianças negras demoraram cerca de 200 anos para estudar de forma organizada nas escolas para todos, para serem inseridas no contexto da escola em constituição no país.

O IBGE também aponta que muitas dessas crianças acabam com frequência escolar menor que a média. Que impactos a adultização das crianças negras traz para a educação e o desenvolvimento delas?

Temos uma taxa de 69,1% dos que mais evadem do sistema de educação são negros, com proeminência no ensino médio. Isso está diretamente ligado ao fato de que são famílias que vivem em extrema pobreza, em situação de extrema precarização da vida em todos os aspectos. Moram em casas precárias, com obras intermináveis, em regiões conflagradas por guerra entre polícia e tráfico, entre vários outros fatores. Esse é um contexto mais urbano e do Sudeste, mas em contextos do Nordeste e Norte do país, pode-se falar também de ribeirinhos e quilombolas.

Esse contexto faz com que a escola perca certo sentido na vida. E isso acontece por diversos motivos. 

A escola trabalha com uma lógica de média e longa duração (estudar para o futuro) que não faz sentido para a criança e o adolescente negro. Essas crianças têm fome hoje, não sabem o que será da vida delas na semana que vem por causa de enchentes, guerras e, por conta disso, não podem ir à escola, o que acontece com uma certa frequência na cidade do Rio de Janeiro.

Todo esse contexto retira a ingenuidade, retira o mais essencial da infância, que é não saber o que acontece ao seu entorno e simplesmente descobrir a vida. Quando essas crianças e adolescentes negros são constantemente lembrados de que têm que sair com identidade, que não podem andar com determinada roupa em determinado lugar ou horário, eles perdem a inocência de um momento importante da vida e passam a ter toda a malícia, a estratégia, o olhar que nós adultos temos para a realidade. Nesse momento, a adultização ocorre ali constantemente e se mescla com a relação com a escola.

Quando a criança olha para a realidade em que toda a sua família trabalha muito, e que isso é extremamente necessário para ter o que comer e viver, ela começa a não entender qual a função da escola para ela. Ainda menos quando a escola é longe, ou quando o currículo escolar não contempla a criança ou o adolescente negro em seu panorama narrativo, não tem histórias sobre o povo negro, histórias de sucesso sobre o povo negro, ou uma perspectiva positiva sobre a história negra.

Tudo isso vira um somatório de coisas que reflete obviamente na evasão escolar. As crianças vão abandonando a escola, que é um momento importante da vida para elas entenderem que são crianças e adolescentes, e para entenderem a lógica da coletividade, conhecer o novo e conviver com o diferente. Ela perde tudo isso e se aproxima cada vez mais, não necessariamente de um mundo adulto, mas de um limbo existencial que faz com que a vida adulta seja antecipada não por uma questão lógica e natural da vida, mas por necessidades que ocorrem ali.

A sexualização precoce também é uma forma de adultização. Como isso atinge meninas negras e quais caminhos podem ajudar a enfrentar o problema?

A sexualização precoce atinge meninas negras em meio a um assunto maior, que é a hipersexualização de corpos de pessoas negras, sobretudo de mulheres, no país que é o país do carnaval. Ao discutir isso, precisamos abordar assuntos espinhosos como o carnaval, o funk, estilos musicais ou elementos da nossa cultura que se perdem um pouco na conversa sobre infância e preservação da inocência. 

É um problema social muito maior de um país que é fruto de violência sexual contra mulheres, abuso, assédio e pedofilia. Não podemos deixar de trazer esses assuntos como assuntos que fazem parte do pano de fundo da cultura brasileira. No período colonial, era muito comum que homens com idade para serem avôs de uma menina basicamente comprassem essa menina menor de idade para casar. Até hoje, em determinados locais do país, há turismo sexual para estrangeiros, o que acontece com certa frequência no Norte e Nordeste do país.

A sexualização vem muito de mãos dadas com a adultização, não só falando do corpo, mas partindo do princípio: se a menina já está em casa fazendo comida, se ela já pode ir aos lugares sozinha, se ela já pode fazer isso e aquilo, logo ela já é mulher, logo ela já pode ter relações sexuais ou já pode ser olhada com um olhar malicioso de quem quer ter relações sexuais com essa menina. 

O que precisamos urgentemente criar como caminho para enfrentar o problema é pensar políticas públicas de proteção à infância com direcionamento específico. Como políticas de combate à pedofilia, de combate à violência sexual contra crianças e todo tipo de violência contra crianças negras. É fundamental pensar nesse contexto, que estamos em um país que foi o último a abolir a escravidão, e que existem outros mecanismos de violência que se perpetuam até hoje e são frutos da escravidão.

Qual o papel da internet hoje, tanto como risco quanto como ferramenta de proteção, na vida de crianças negras?

A internet hoje desempenha dois papéis importantes. O primeiro papel, como risco, está relacionado a um debate em Brasília, até onde eu sei, sobre a regulamentação da faixa etária para uso de rede social. Qual idade esse adolescente deve ter para usar rede social? Primeiramente, há um problema sério de uma geração de pais e responsáveis que não querem lidar com seus filhos e entregam o celular, deixando a criança sem nenhuma regulamentação, sem controle de tela, usando sem tempo de vigilância, acessando todo tipo de rede social, vídeo e conteúdo. É preciso regulamentar uma faixa etária específica que proíba crianças de criar e usar redes sociais que não são para crianças, por exemplo. Não se trata de não usar nenhuma rede social, mas de ter um tipo de conteúdo próprio para criança que seja regulamentado, vigiado, organizado e focal.

Segundo, a rede social hoje é um espaço público. Diferente da rua, a rede social coloca o adolescente e a criança em contato com pessoas do outro lado do mundo, sem que se saiba quem são, qual a intencionalidade ou o uso que farão da rede social. Se não há uma regulamentação real, estamos falando de crianças que estão em seus quartos, na sala de casa, na varanda, conversando com pessoas em outra cidade ou país, sem saber quem são. 

A rede social é, atualmente, um espaço público. Sem uma regulamentação efetiva, crianças podem estar em seus quartos, salas ou varandas conversando com pessoas em outras cidades ou países, sem conhecer suas identidades ou intenções.

Quais políticas públicas ou iniciativas sociais são fundamentais para garantir o direito de ser criança às crianças negras?

Atualmente, eu desconheço política pública para crianças negras. A gente tem leis voltadas para a educação, mas elas são bem mais direcionadas para a gestão escolar e para professores e professoras sobre como, de alguma forma, contemplar a infância negra do que necessariamente para essas crianças. E aí, como professor, sou bem decepcionado com isso, porque o que a gente precisa é de política pública direcionada para as crianças, tendo elas como centro, não tendo elas como um resultado ou como objetivo final da política pública.

Iniciativas sociais, têm muitas. Então, eu acho que espaços de acolhimento para famílias negras, de apoio e instrução, para famílias negras ou famílias que têm crianças negras, são fundamentais. Isso inclui apoio para mães negras, mãe solo, apoio para paternidade negra. Também são importantes espaços instrucionais com apoio de psicopedagogas, de pedagogas, de pessoas da educação, da psicologia, que pensem em infância, que tratem da infância, que tenham um olhar sensível para a infância.

O meu sonho, na verdade, é que este país começasse um plano urgente de construção de política pública para crianças negras. Porque a gente pode discutir tudo: a gente pode discutir as cotas na universidade, a gente pode discutir as cotas no serviço público, a gente pode discutir ter o ministro negro no STF. Mas se a gente não discutir a infância negra, tudo isso vai ser um fim em si mesmo.

Leia também

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

Mais de 100 anos após a abolição da escravidão, as crianças negras ainda estão em uma posição mais vulnerável do que as brancas (Foto: Juca Varella/Agência Brasil)
Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.