A ALMEJADA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA já afeta 34% dos territórios protegidos no Brasil. Com a expansão dos projetos previstos para gerar energia renovável, como a solar e a eólica, poderão ser impactadas até 61% das unidades de conservação e áreas ocupadas por comunidades tradicionais.
É o que mostra estudo do PoEMAS, o Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade, que envolve pesquisadores da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), USP (Universidade de São Paulo) e outras instituições. O estudo “Cada qual no seu lugar: a interferência de projetos energéticos sobre os Territórios de Interesse Socioambiental” foi publicado nesta quinta-feira (21) e obtido em primeira mão pela Repórter Brasil.
A transição energética busca reduzir a dependência de fontes fósseis (como petróleo e carvão) na geração de energia, e aumentar a participação de fontes renováveis (como solar, eólica, hidrelétrica e as geradas por minerais aplicados em “tecnologias limpas”). O objetivo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa e atenuar as mudanças climáticas.
No Brasil, porém, a expansão da matriz energética ameaça territórios e populações com papel central contra o aquecimento global, como indígenas e quilombolas (que atuam na proteção ambiental) e assentados de reforma agrária (que empregam práticas sustentáveis na agricultura).
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Ao todo são 12 mil territórios de interesse social avaliados pela pesquisa, divididos em quatro categorias: territórios quilombolas (429); terras indígenas (637); unidades de conservação ambiental (2,7 mil); e assentamentos da reforma agrária (8,7 mil). Juntos, eles ocupam mais de 4,5 milhões de km² — área maior do que a ocupada pelos 27 países da União Europeia.
Desse total, 4,1 mil (ou 34%) já são atualmente impactados por projetos de transição energética. As áreas afetadas somam 179 mil km², maior que o território do Uruguai.
“A expansão e diversificação da matriz energética nacional vai ter como consequência o comprometimento dos serviços ambientais e sociais que territórios de interesse social prestam ao país”, afirma Bruno Milanez, coordenador do PoEMAS e um dos autores do estudo — assinado também por Camila Teixeira Gomes Vieira e Juliana Siqueira-Gay.
Essas áreas contribuem tanto para o equilíbrio climático, quanto para a manutenção da integridade ecológica e do bem estar da população, segundo Milanez. Isso porque estão envolvidas com a preservação da mata nativa, a proteção de nascentes de rios, a segurança hídrica nacional, a produção de alimentos a partir da agricultura de baixo carbono e a garantia de direitos às populações tradicionais.

Para identificar as áreas impactadas, a pesquisa listou projetos de geração de “energia limpa” existentes e planejados no Brasil. Foram considerados quatro tipos de empreendimentos: linhas de transmissão de energia; usinas eólicas (vento); usinas fotovoltaicas (solares); e mineração de metais usados em energia renovável (como lítio, nióbio e terras raras).
Não entram na conta as áreas ocupadas por hidrelétricas ou pelas culturas agrícolas usadas na produção de agrocombustíveis (como cana-de-açúcar, soja e milho).
Amazônia é a região mais afetada pela transição energética
De acordo com os pesquisadores, apesar de os projetos poderem mitigar as mudanças climáticas, eles causam impactos ambientais negativos com efeitos locais, regionais e até nacionais. Isso porque esses empreendimentos podem gerar desmatamento, reduzir a biodiversidade e a disponibilidade de água, entre outros transtornos.
No caso das usinas eólicas, por exemplo, há a geração de ruído e o “efeito estroboscópico” (incômodo visual) causados pelas pás dos geradores. “A literatura já descreve a ‘síndrome da turbina eólica’, que inclui sintomas como enjoo, vertigens, enxaqueca, ansiedade e aumento da sensibilidade gastrointestinal”, afirma o estudo.
Na lista de territórios afetados estão vários assentamentos rurais no Rio Grande Norte próximos a usinas de energia eólica. No estado, empresas têm mirado áreas de reforma agrária para a instalação das turbinas, como mostrou a Repórter Brasil.
“O Brasil parece se recusar a adotar uma rota de desenvolvimento que considere sua vulnerabilidade ambiental, social e econômica diante da crise ecológica”, alerta a pesquisa.

Para calcular a área afetada, o estudo considerou parâmetros descritos na Portaria Interministerial nº 60, de 2015, que estabelece limites de impacto de empreendimentos submetidos a licenciamento ambiental. Uma atividade de mineração na Amazônia Legal, por exemplo, tem potencial de afetar diretamente uma área a uma distância de 10 km do empreendimento, segundo essa portaria. Fora da Amazônia, a distância é reduzida para 8 km. Para usinas solares e eólicas, foram adotados os mesmos critérios.
No caso dos linhões de transmissão, foram considerados impactados todos os territórios sobrepostos ou a uma distância de até 8 km na Amazônia Legal, e 5 km fora dela.
As distâncias fixadas pela portaria de 2015 foram alteradas pela nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, sancionada com vetos por Lula em agosto, e cujos efeitos entram em vigor a partir de fevereiro de 2026. Apelidada de “PL da Devastação” por ambientalistas e movimentos sociais, os vetos presidenciais ainda serão analisados pelo Congresso. Para o estudo, os pesquisadores adotaram os parâmetros da norma anterior.
A Amazônia é a região mais atingida pela transição energética, segundo o estudo, devido ao “tamanho dos territórios afetados e pelo fato de muitos deles estarem em áreas de floresta preservada”.

Transição pode afetar ‘um Chile’
O estudo também projeta as áreas impactadas caso sejam efetivados todos os projetos eólicos, fotovoltaicos, de mineração vinculada à eletrificação e de linhas transmissão registrados na EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e na ANM (Agência Nacional de Mineração), ambos vinculados ao MME (Ministério das Minas e Energia).
Considerando esse cenário, mais de 7,3 mil dos 12 mil territórios seriam impactados — 61% do total. Já a área afetada chegaria a 771 mil km2 — maior do que o território do Chile.
Entre os locais que poderão ser impactados estão os quilombos Kalunga e Kalunga do Mimoso, localizados entre o norte de Goiás e o sul do Tocantins. Trata-se de uma das maiores áreas quilombolas contínuas do país, onde uma mineradora de São Paulo planeja a exploração de terras raras — conjunto de minérios usados na indústria de alta tecnologia.
Apesar da sobreposição com os quilombos, o projeto recebeu aval da ANM para executar a fase de pesquisas. As comunidades quilombolas, no entanto, sequer sabiam das pretensões da empresa, tampouco foram comunicadas pelas autoridades. O caso foi revelado pela Repórter Brasil.
Uma das conclusões do estudo é a de que a transição energética deverá acirrar as disputas territoriais no país. “O que se espera é que, sob um alegado combate às mudanças climáticas, ocorra a intensificação dos conflitos territoriais, o comprometimento da integridade socioambiental e a piora das condições de vida das pessoas no país e, possivelmente, no mundo”, diz a pesquisa.

Governo não tem dados sobre impacto
A Repórter Brasil questionou o governo federal sobre o impacto de empreendimentos energéticos em territórios protegidos ou de assentamentos. Nem Ministério de Minas e Energia, o MMA (Ministério do Meio Ambiente) e tampouco o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) têm estimativas sobre as áreas afetadas. Só a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) revelou um levantamento parcial.
O MME ponderou que considera no seu planejamento “os componentes relacionados à dimensão dos territórios especialmente protegidos, incluindo os assentamentos, unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas, em atendimento ao rigoroso arcabouço legal vigente no Brasil”.
Segundo o órgão, licenças ambientais exigidas em projetos de energia no país precisam atestar “a viabilidade socioambiental dos empreendimentos, devendo ser considerado o respeito aos direitos das comunidades tradicionais ou elementos essenciais para manutenção da proteção aos territórios”.
O MMA destacou a exigência do licenciamento ambiental para os projetos, no qual “são verificadas alternativas tecnológicas e locacionais, e estabelecidas medidas para evitar, mitigar, recuperar e compensar os impactos negativos” dos empreendimentos. “É preciso considerar que muitos projetos de transição são implantados em benefício das comunidades, inclusive em unidades de conservação que permitem essas atividades, a exemplo da geração de energia”, ressaltou o ministério.
O MMA informou ainda que trabalha, junto com Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, criado em 2023, numa estratégia para “integrar mitigação e adaptação, promover justiça climática”. Quando estiver pronta, essa estratégia será submetida a audiência pública. Não há uma data para isso.
Já a Funai reconheceu que mais de 50 processos tramitam no órgão para licenciamento ambiental de empreendimentos ligados à geração ou transmissão de energia elétrica que afetam terras indígenas. Contudo, não informou quais são essas áreas.
O órgão declarou que atua no licenciamento ambiental para assegurar que o “componente indígena” seja levado em conta, quando necessário.
O Incra, por sua vez, afirmou que integra uma mesa de diálogo criada pela Secretaria-Geral da Presidência, em 2023, para discutir impactos das energias renováveis com comunidades afetadas.
O MIR (Ministério da Igualdade Racial), responsável por políticas para quilombolas, não respondeu.

Transição precisa levar o todo em conta
Clarice Ferraz, pesquisadora associada do Grupo de Economia de Energia do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretora do Instituto Ilumina, diz que o Brasil erra ao planejar a transição energética com o foco apenas em reduzir as emissões de carbono. Para ela, dessa forma, a transição agrava a crise climática, pois ignora outros limites ambientais que deveriam ser respeitados.
“Além dos limites de emissões [de gases de efeito estufa], também há limites para o uso do solo, o uso da água doce e outros. Todos esses limites estão interligados”, explica. “Ao pensar em cumprir uma única meta, você não proporciona uma solução para o todo.”
Ferraz recomenda que a transição seja planejada para não causar mais problemas do que soluções. “Precisamos questionar o que é apontado como solução porque elas envolvem muita água, muita mineração, muitas outras coisas”, diz.
Cássio Cardoso Carvalho, assessor político do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), ressalta que a transição energética é liderada por grandes empresas mais preocupadas em retorno financeiro do que em impactos ambientais. Ele diz que essas empresas estariam pressionando e atormentando populações locais com seus projetos de “energia limpa”.
“Há contratos muitos longos com produtores rurais, com pagamentos irrisórios, falta de distanciamento entre torres de energia eólica e domicílios, adoecimento da população por conta do barulho e por perda do sono”, lista Carvalho, que é coautor de um estudo sobre projetos de energia eólica no Nordeste.
Gislene Moreira, professora da Uneb (Universidade Estadual Bahia), também acompanha o assunto. Ela integra o Observatório dos Conflitos Socioambientais da Chapada Diamantina, onde desentendimentos envolvendo usinas eólicas e solares se acirraram na última década.
Na avaliação do grupo PoEMAS, a crise é “multifacetada” e exigiria maior integração entre agências governamentais, movimentos sociais e organizações não-governamentais, o que não vem ocorrendo. “A política de transição energética do Brasil não poderia estar mais distante desse caminho.”
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