A SUPERINTENDÊNCIA-GERAL DO CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) suspendeu preventivamente a Moratória da Soja, acordo setorial que impede a compra de soja produzida em áreas desmatadas da Amazônia Legal após julho de 2008. A decisão aconteceu na última segunda-feira (18).
No mesmo dia, o órgão instaurou um processo administrativo contra associações e empresas que integram o GTS (Grupo de Trabalho da Soja), grupo composto também por ONGs e o governo federal. A Abiove (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais), a Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais) e trinta exportadoras também são objetos da ação, como as tradings Bunge, Cargill e Cofco.
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O Cade investiga uma possível formação de cartel entre as exportadoras de soja, o que afetaria a livre concorrência. Na justificativa da medida cautelar que resultou na suspensão do acordo, a formação do GTS pelas empresas signatárias para monitorar o mercado constituiria “um acordo anti competitivo entre concorrentes que prejudicam a exportação de soja”. A investigação teve início após uma representação encaminhada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados.
Ao final do julgamento do processo administrativo, caso as investigadas sejam condenadas pelo Tribunal do Cade, elas poderão pagar multas de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões, no caso das associações, e de entre 0,1% a 20% do faturamento bruto de 2024, no caso das empresas.
‘Tiro no pé’
Firmada em 2006, a Moratória da Soja é considerada um dos principais instrumentos de preservação da floresta. De acordo com dados do GTS, até 2022, o acordo contribuiu para a redução de 69% de derrubada de mata nativa nos municípios da Amazônia monitorados, enquanto a área plantada com soja no bioma cresceu 344%.
Para o Greenpeace, signatário da moratória como representante da sociedade civil, o acordo nunca foi um obstáculo ao crescimento do agronegócio. Sua suspensão, aponta a organização, é resultado da pressão de setores ruralistas. “Os ataques à Moratória da Soja não são técnicos. Eles são políticos e favorecem justamente quem mais lucra com a destruição da Amazônia”, afirma Cristiane Mazzetti, coordenadora de florestas do Greenpeace Brasil, em posicionamento enviado à Repórter Brasil.
“É claro o interesse de diversos setores no enfraquecimento da moratória enquanto um mecanismo de regulação do mercado para defender as florestas brasileiras”, complementa João Gonçalves, diretor no Brasil da organização Mighty Earth.

Para Mazzetti, a suspensão do Cade não apenas estimula o desmatamento, mas também força os mercados a aceitarem soja oriunda de áreas desmatadas e retira do consumidor o direito de escolher produtos livres de devastação na Amazônia. O Brasil é responsável por mais de um terço da produção global do grão. “Avançar com o desmonte de um acordo eficaz, reconhecido internacionalmente e construído ao longo de quase 20 anos, em nome do desmatamento livre, é um tiro no pé”, avalia.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Abiove afirma ter recebido com surpresa a decisão do Cade de instaurar o processo administrativo e reforça seu compromisso com a legalidade. A entidade informa que tomará as medidas cabíveis de defesa e prestará os esclarecimentos necessários às autoridades. “A Abiove seguirá acompanhando atentamente os desdobramentos do caso, mantendo sua postura institucional de diálogo construtivo e respeito às normas vigentes”, diz trecho da nota.
Ruralistas comemoram
A Famato (Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso), que integra o sistema CNA (Confederação da Agricultura e Agropecuária do Brasil), afirmou em nota que a decisão “representa um avanço importante na defesa dos interesses do setor agropecuário”.
A Aprosoja-MT (Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso) também celebrou a medida do Cade. “Há anos, um acordo privado, sem respaldo legal, vinha impondo barreiras comerciais injustas aos produtores, sobretudo os pequenos e médios, impedindo a comercialização de safras cultivadas em áreas regulares e licenciadas”, diz trecho da nota publicada no site da associação.
Com o objetivo de zerar o desmatamento para a produção de soja, a moratória não permite a compra do grão produzido em áreas desmatadas no bioma amazônico, mesmo que a derrubada da floresta tenha ocorrido dentro dos limites legais do Código Florestal. Promulgada em 2012, a lei permite que até 20% da área de uma propriedade rural na Amazônia seja desmatada para atividades econômicas.
“O enfraquecimento da moratória da soja vai trazer um impacto ambiental incalculável”, reforça João Gonçalves, da Mighty Earth. “A Moratória da Soja é talvez o mais efetivo mecanismo de proteção ambiental que foi aplicado no Brasil nos últimos 20 anos. Se ela não existisse, a produção e o impacto da soja hoje na Amazônia seriam muito maiores”, completa.

A área plantada com esse grão no bioma amazônico em 2007 — ano anterior à data limite de desmatamento da moratória — foi de 1,6 milhão de hectares. Em 2022, esse número alcançou os 7,2 milhões de hectares, mas somente 250 mil hectares haviam sido plantados em áreas desmatadas após 2008, segundo dados da safra 2022/2023 sistematizados pelo GTS.
Hoje, quase dois terços da produção nacional de soja se concentram no Cerrado (49%) e na Amazônia (15%), aponta análise do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) baseada em dados do MapBiomas. “Amazônia e Cerrado são centrais para a produção agrícola brasileira na medida em que oferecem um bem essencial para o crescimento de qualquer plantio: a água. Sem floresta não tem chuva e, sem chuva, não tem produção”, afirma Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam. “Assim, o aparente ganho imediato com a expansão da soja sobre a floresta pode facilmente se transformar em um prejuízo duradouro para os produtores”, complementa.
Retrocessos na véspera da COP 30
Na avaliação de Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil, outra organização signatária da moratória, o Congresso brasileiro, impulsionado pela bancada ruralista, sinaliza ao mundo que o país enfrenta retrocessos internos que vão na contramão dos objetivos da COP 30 e da meta do governo brasileiro de zerar o desmatamento até 2030. “A decisão do Cade é um exemplo desses retrocessos, que se somam a outras medidas controversas, como o chamado ‘PL da devastação’ e a discussão do marco temporal”, pontua Voivodic.
“A moratória da soja é um instrumento complementar importante do PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal]. Com esta decisão, o Brasil perde um apoio significativo para atingir a meta, diretamente ligada às mudanças climáticas, já que a mudança de uso do solo é um grande emissor”, explica Lisandro Inakake, gerente de projetos do Imaflora, signatário da moratória.
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas manifestou preocupação com a decisão. O órgão argumenta que a longevidade da moratória comprova seu êxito e que não há elementos suficientes para caracterizá-la como cartel. “Longe de restringir o mercado, o acordo consolidou a imagem do Brasil como fornecedor confiável de soja livre de desmatamento e violações socioambientais”.
A Repórter Brasil procurou o Ministério da Agricultura e Pecuária, que não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Para o WWF-Brasil, a expectativa é que as empresas, mesmo sem implementar os procedimentos previstos no acordo, mantenham individualmente o compromisso de não comprar soja de produtores que desmataram — legal ou ilegalmente — após 2008. “Nosso papel como organização ambientalista é justamente acompanhar e cobrar dessas empresas coerência com seus compromissos individuais”, analisa Mauricio Voivodic.
“Obviamente cada empresa vai caminhar à sua maneira, então o impacto pode ser um pouco mitigado. Mas a mensagem que chega a uma parcela, ainda que pequena, de produtores da Amazônia dispostos a continuar destruindo a floresta é de que eles podem desmatar para plantar soja. E essa mensagem, no curto prazo, pode ter um impacto grande”, complementa.
Ofensiva contra a Moratória
Leis estaduais também têm tentado esvaziar a Moratória da Soja. Em julho de 2024, o governador de Rondônia, Marcos Rocha, sancionou uma lei que retirou incentivos fiscais de empresas que seguissem os critérios do acordo, abrindo caminho para iniciativas semelhantes no Mato Grosso e no Maranhão, aprovadas em outubro de 2024 e janeiro de 2025, respectivamente. Projetos com objetivos parecidos tramitam no Pará, em Goiás e na Câmara dos Deputados.

A ofensiva contra a moratória é liderada pela Aprosoja-MT, que enviou denúncia ao Cade de supostas práticas de “cartel de compra” das tradings e entrou com ação civil pública pedindo o fim do pacto e indenizações. Paralelamente, 127 câmaras municipais solicitaram auditoria ao Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, que apontou R$ 4,7 bilhões em incentivos fiscais recebidos por empresas signatárias entre 2019 e 2024, principalmente Bunge, ADM, Cofco e Cargill.
Em dezembro, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Flávio Dino suspendeu provisoriamente a aplicação da lei do Mato Grosso. Em abril, entretanto, ele reconsiderou parcialmente a decisão e restabeleceu os efeitos da norma, proibindo incentivos fiscais a empresas que atuem “em descompasso” com o Código Florestal. “O poder público deve respeitar a iniciativa privada; mas não é obrigado a conceder novos benefícios a empresas que resolvam exigir o que a lei não exige”, afirmou.
O processo ainda aguarda julgamento no STF. Em junho, a análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, que também é relator da ação sobre a lei de Rondônia. A retomada está marcada para esta sexta-feira, 22 de agosto. Há ainda uma terceira ação, sob relatoria do ministro Edson Fachin, sem data definida.
Irregularidades
Apesar de ser reconhecida como importante ferramenta de preservação ambiental, a moratória já foi desrespeitada em outras ocasiões pelas próprias empresas signatárias.
Investigações da Repórter Brasil já revelaram que tanto a Cargill como outras companhias compraram soja de produtores com área embargada (de uso proibido) por órgãos ambientais, mascarando a verdadeira origem do grão. Conhecida como “lavagem de soja” ou “soja pirata”, a prática se beneficiava de falhas nos sistemas de controle das empresas.
Outras investigação recente mostrou que a Cargill já sinalizava em seu último relatório de sustentabilidade que vem deixando de seguir regras previstas na moratória e já considera a compra de grãos cultivados em terras abertas até 2020.
*Colaborou Fernanda Sucupira