Mineradora Belo Sun sofre derrota em projeto de megamina de ouro no Pará

A pedido do Ministério Público do Pará, reintegração de posse de área cobiçada pela Belo Sun, sobreposta a um assentamento da reforma agrária, foi adiada pela Justiça estadual, e processo pode ser federalizado; em julho, a Justiça Federal confirmou a anulação do contrato de concessão de uso do perímetro onde a mina pode ser instalada, firmado entre o Incra e a mineradora em 2021
Por Igor Ojeda | Edição Carlos Juliano Barros
 18/09/2025

A MINERADORA canadense Belo Sun sofreu uma importante derrota em seu plano de criar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil, na Volta Grande do rio Xingu, no Pará. Em 8 de setembro, o Tribunal de Justiça do estado (TJ-PA) cancelou uma visita de conciliação sobre o despejo de um acampamento formado por trabalhadores sem-terra e indígenas, adiando a possível liberação de parte da área cobiçada pela empresa.

Chamado de Projeto Volta Grande, o empreendimento é alvo de críticas por conta dos potenciais impactos socioambientais e pela forma como a empresa obteve terras da União para implantá-lo. A região já sofre os efeitos da usina hidrelétrica de Belo Monte, em operação desde 2016. Em maio deste ano, a Justiça paraense rejeitou uma ação da Belo Sun pedindo a prisão de 40 manifestantes e membros de organizações ambientais contrários ao projeto. 

O cancelamento da visita de conciliação atendeu a um pedido do MP-PA (Ministério Público do Pará). Na manifestação enviada ao juiz do Tribunal de Justiça estadual que havia decidido pela reintegração de posse da área ocupada pelo acampamento, favorecendo a Belo Sun, o promotor Felipe Luiz Ribeiro Sampaio de Andrade defendeu que o processo seja encaminhado à Justiça federal. 

Estabelecidos na região desde junho de 2022, os trabalhadores reivindicam o assentamento das famílias acampadas pelo governo federal e a revogação do CCU (Contrato de Concessão de Uso) da área pretendida pela Belo Sun para a instalação da mina de ouro. 

O MP-PA pede que a reintegração de posse seja suspensa até que não haja mais possibilidade de recurso à decisão da Justiça Federal que anulou o contrato de concessão de uso firmado entre Incra e Belo Sun. Foto: Verena Glass/Movimento Xingu Vivo
O MP-PA pede que a reintegração de posse seja suspensa até que não haja mais possibilidade de recurso à decisão da Justiça Federal que anulou o contrato de concessão de uso firmado entre Incra e Belo Sun. Foto: Verena Glass/Movimento Xingu Vivo

Firmado em 2021 entre a mineradora e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o acordo cedeu à Belo Sun 2.428 hectares de terras da União — 1.439 dentro do PA (Projeto de Assentamento) Ressaca e outros 989 sobrepostos à gleba federal Ituna.

Em 10 de julho de 2025, em outra derrota para a Belo Sun, a Justiça federal em Altamira (PA) manteve a decisão judicial de novembro de 2024 que havia determinado a anulação do contrato de concessão de uso. 

A decisão entende que o CCU engloba propriedades adquiridas ilegalmente pela empresa, em razão de seu perímetro se sobrepor a um território destinado à reforma agrária — é justamente nesse local que os trabalhadores sem-terra estão acampados. Para a Justiça, a alteração da destinação da área para mineração não seguiu o procedimento adequado.

Tanto o MP-PA quanto o advogado de defesa dos acampados, Diogo Cabral, pedem que o despejo seja suspenso até que não haja mais possibilidade de recurso à decisão judicial. Caso o acordo de concessão seja de fato anulado em última instância, a Belo Sun não poderia mais requerer a área. 

“Digamos que aconteça um despejo e depois a Justiça declara nulo esse contrato. Seria uma situação grave. Na nossa leitura, o melhor a se fazer neste momento, por prudência, para não que não se cometa uma injustiça, é que se suspenda a tramitação dessa reintegração de posse”, concorda Diego Diehl, coordenador geral de Planejamento Estratégico da Ouvidoria Agrária Nacional, do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar).

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Em nota enviada à Repórter Brasil, a Belo Sun afirma que o acordo de concessão seguiu requisitos legais e regulatórios. “A empresa não concorda com a decisão que declarou a sua nulidade, e nos autos apresenta sua controvérsia sob análise do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.” A mineradora diz ainda que implementará as realocações necessárias no âmbito de programa específico previsto no processo de licenciamento ambiental, “de comum acordo com os envolvidos e com a preservação integral dos direitos de toda a comunidade, mantendo o a excelente relação que a Belo Sun desenvolveu ao longo dos últimos anos”. (Leia aqui a resposta na íntegra)

Também procurado pela reportagem, o Incra afirma considerar que, ao contrário do entendimento da Justiça federal, o próprio contrato de concessão de uso formalizou a alteração da destinação da área para mineração. “Por esta razão, o Incra apresentou recurso de apelação em face da sentença, que será apreciada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região”, diz o texto.

“De toda forma”, continua o Incra, “especialmente em relação à proteção territorial das áreas do PA Ressaca, o Incra atuará contra eventual tentativa ilícita de remoção das famílias, bem como vem atuando na mediação da situação envolvendo a área concedida, por meio da Câmara de Conciliação Agrária (CCA).” (Leia aqui a resposta na íntegra)

Ação judicial aponta série de irregularidades do contrato de concessão

A decisão da Justiça Federal que anulou o contrato de concessão foi fruto de uma ação civil pública movida em 2022 pela DPU (Defensoria Pública da União) e DPE-PA (Defensoria Pública do Estado do Pará). 

Para os órgãos, o acordo deve ser desfeito porque a mineradora se apropriou ilegalmente de terras públicas destinadas à reforma agrária e, também, de áreas da gleba federal Ituna que compreendem antigos garimpos e onde se formaram comunidades que exercem atividades de agricultura, pesca e extrativismo voltadas à subsistência. 

“A disputa não é sobre uma terra privada, mas uma dentro de um assentamento da reforma agrária. É um conflito sui generis. Eu advogo há quase 17 anos nesse tema e nunca presenciei um acampamento sem-terra dentro de um assentamento, foi a primeira vez”, comenta o advogado Diogo Cabral.

No pedido de federalização do caso, feito em 8 de setembro, o promotor do MP-PA afirma que não é “razoável” a Justiça estadual analisar um caso que envolve uma área de propriedade de um órgão federal, como o Incra.

Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil, com base em mapa elaborado pela Defensoria Pública do Estado do Pará. Fonte de dados: Incra; Sicar/PA
Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil, com base em mapa elaborado pela Defensoria Pública do Estado do Pará. Fonte de dados: Incra; Sicar/PA

Ainda segundo o MP-PA, o interesse federal na questão também se explicaria em razão de o Projeto Volta Grande ser de “grande porte com componente indígena e potenciais impactos sobre povos indígenas e ribeirinhos”. 

“Acrescente-se que o Rio Xingu, que faz imediata fronteira com a área objeto deste atual litígio, poderá ser gravemente afetado por tal empreendimento, cuja barragem de dejetos ficará a menos de 1 km do seu leito, e é um rio federal, já que banha vários Estados da federação”, complementa o MP-PA.

O órgão, portanto, coloca em questão não apenas a posse da Belo Sun sobre o CCU e a área onde os trabalhadores sem-terra se instalaram, como também o próprio empreendimento minerário que a empresa pretende implementar. 

Na ação em que pedem a anulação da concessão, a DPU e a DPE-PA acusam a mineradora, ainda, de requerer uma área (2.428 hectares) bem menor à apresentada pela própria empresa como de influência direta do Projeto Volta Grande no processo de licenciamento ambiental (4.131 hectares). 

De acordo com as defensorias, caso a área total do contrato ultrapassasse 2.500 hectares, ele deveria ser aprovado pelo Congresso. “Há, portanto, fortes indícios de burla à competência constitucional do Congresso Nacional para aprovar a concessão de uso de terras públicas com área superior a 2.500 hectares”, diz a ação.

Procurada pela reportagem, a Belo Sun não havia dado retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

Acampados cobram o Incra

“No momento, a situação no acampamento está um pouco tensa. A gente nunca sabe ao certo o que vai acontecer”, diz Francisco Tcharles Ferreira da Cruz, de 25 anos, um dos acampados no interior do PA Ressaca. Ele e a esposa chegaram ao local há dois anos. Há quatro meses, tiveram o primeiro filho. 

“O nosso maior sonho é ser assentado, para parar com essa intimidação. Estamos em um lugar onde até para plantar é complicado. Nosso sonho é que o Incra repare essa questão, que nos tire desse sufoco, porque a culpa disso tudo é do Incra. A Justiça já declarou que o contrato com a Belo Sun está anulado, o que falta para assentar a gente?”, questiona.

Segundo João Paulo Fortes Perina, defensor público da Defensoria Agroambiental de Altamira, os acampados são pessoas “extremamente marginalizadas”. “A Defensoria analisou o caso e percebeu que todos os acampados têm a pretensão de moradia e trabalho. Então, apesar de manifestações da Belo Sun em sentido contrário, consideramos se tratar de um legítimo exercício de uma manifestação social exigindo a reforma agrária”, explica.

De acordo com um levantamento do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, mais da metade dos agricultores acampados já foi vítima de trabalho escravo análogo ao de escravo. “São históricos de longa data, de passarem por fazenda, trabalho em servidão. São aqueles que foram resgatados ou conseguiram escapar, e que esperam encontrar uma terra para seguirem vivendo sem voltarem a ser submetidos a trabalho degradante”, diz Luiz Cláudio Brito Teixeira, integrante da organização. 

Em março de 2023, o Incra cadastrou 98 famílias acampadas como possíveis beneficiárias da reforma agrária. Elas reclamam que desde então nenhuma outra providência foi tomada pela autarquia. 

O Incra cadastrou 98 famílias acampadas como possíveis beneficiárias da reforma agrária, mas elas reclamam que desde então nenhuma outra providência foi tomada pela autarquia. Foto: Diogo Cabral/Arquivo pessoal 
O Incra cadastrou 98 famílias acampadas como possíveis beneficiárias da reforma agrária, mas elas reclamam que desde então nenhuma outra providência foi tomada pela autarquia. Foto: Diogo Cabral/Arquivo pessoal 

“O Incra se omitiu muito durante todo esse tempo. Deixou a coisa correr solta, mesmo quando entrou o novo governo [do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023]. Porque o cadastro das famílias gerou uma expectativa muito grande, mas o Incra não tomou as medidas administrativas para dar andamento ao processo, inclusive para retomada da área que foi objeto de nulidade”, critica o advogado Diogo Cabral. 

“Nesse período, os trabalhadores continuaram sendo vítimas de violência, de ameaças, de todo tipo de violação de direitos. Estão a Deus dará, produzindo alimentos saudáveis, com muita dificuldade, sendo hostilizados de maneira permanente pela empresa de segurança da Belo Sun. E o Incra tem responsabilidade sobre essa situação”, completa, referindo-se às denúncias de assédio, intimidação e violência contra a Invictus, que presta serviço à mineradora.

Na nota enviada à Repórter Brasil, o Incra afirma que o cadastro nacional de acampados foi retomado em 2023, “depois de mais de seis anos de paralisação da política nacional de reforma agrária”. (Leia aqui a resposta na íntegra)

Procurada, a Invictus não respondeu até a publicação da reportagem. O texto será atualizado caso um posicionamento seja enviado.

Diego Diehl, da Ouvidoria Agrária Nacional, diz que os termos do contrato com a Belo Sun firmado em 2021 impedem que o Incra atue para anulá-lo. Ele explica que a mineradora poderia entender qualquer movimento da autarquia nesse sentido como uma rescisão contratual e requerer o pagamento de altos valores financeiros como indenização. 

“Também temos nossas críticas a esse contrato que foi celebrado, e torcemos para que a Justiça tome a melhor decisão. Estamos tentando desarmar uma bomba que foi armada no governo passado e que não é simples de ser desarmada”, finaliza  Diehl.

O Incra não havia enviado um posicionamento até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

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