O MINISTÉRIO do Trabalho e Emprego divulgou nesta terça-feira (16) um relatório de investigação apontando que falhas graves na gestão do descanso da tripulação e o consequente risco de fadiga na VoePass (Passaredo Transportes Aéreos) podem ter contribuído para o acidente aéreo fatal do voo 2283, em 9 de agosto de 2024. A empresa recebeu dez autos de infração trabalhista.
A queda da aeronave ATR-72, em Vinhedo (SP), que ia de Cascavel (PR) para Guarulhos (SP), matou todos os 58 passageiros e os quatro trabalhadores da empresa: o comandante Danilo Santos Romano, o copiloto Humberto de Campos Alencar e Silva e as comissárias de bordo Debora Soper Avila e Rubia Silva Lima.
O relatório final do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), órgão da Força Aérea Brasileira, apontando as causas da queda, deve ser divulgado até o final de 2025. Um dos elementos analisados é problemas na aeronave que facilitariam a formação de gelo nas asas. Contudo, um acidente aéreo não costuma ter uma única causa.
O “Relatório Parcial de Investigação de Acidente de Trabalho Fatal”, elaborado pela Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo, concluiu que a empresa não possuía um sistema eficaz para gerenciar a fadiga da tripulação. A empresa teria organizado as escalas de trabalho de forma a reduzir o tempo de repouso necessário, fator que pode ter gerado cansaço o suficiente para afetar a capacidade de concentração e resposta imediata dos profissionais.
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Uma das principais irregularidades encontradas foi a prática de “pré-anotação” dos horários de trabalho, no qual a empresa registrava horários fixos para o início e fim da jornada, em vez de registrar os horários efetivamente praticados. Essa prática, considerada uma infração ao Artigo 74 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), impediu a VoePass de ter um controle real sobre as horas trabalhadas e os períodos de repouso.
A investigação detalhou a “reconstituição do repouso real” dos tripulantes de 1º de maio do ano passado até o dia do acidente, o que revelou períodos de descanso inadequados. A VoePass não considerava como parte da jornada de trabalho o tempo gasto em atividades essenciais antes do voo, como o deslocamento até o aeroporto, a passagem pelo raio-X e o trajeto até o avião. Essa omissão resultou na supressão de horas de trabalho e, consequentemente, de horas de repouso e sono, contribuindo para um estado de fadiga.
A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) cassou o certificado de operação da empresa, resultando no fim das atividades da companhia, em junho deste ano.
A reportagem tentou contato com a VoePass através dos canais disponibilizados, mas sem sucesso. O espaço está aberto para um posicionamento da empresa.
Situação pode se repetir em outras companhias aéreas
A fadiga é um dos principais riscos na aviação, pois compromete a resposta rápida dos tripulantes diante de situações críticas. Sua ocorrência está ligada a jornadas irregulares, períodos de descanso desordenados e até mudanças de fuso horário que resultam em recuperação incompleta e acúmulo de cansaço físico e mental.
Renato Bignami, um dos auditores fiscais do trabalho que assinam o relatório, afirma que foi constatada falta de controle efetivo das jornadas, além de descumprimento dos limites legais de trabalho e repouso, previstos na lei que regula o setor e na convenção coletiva dos trabalhadores.
“A investigação, realizada em contato permanente com o Sindicato Nacional dos Aeronautas, analisou fatores organizacionais e atividades da tripulação antes, durante e após as jornadas. Esse trabalho permitiu compreender as condições que favoreceriam a ocorrência de fadiga entre os tripulantes do Voo 2283 da Voepass, em 9 de agosto de 2024, como eventual concausa do acidente”, diz.
De acordo com Bignami, a possível ocorrência da fadiga no caso acende um alerta entre as autoridades trabalhistas, pois situação semelhante poderia estar ocorrendo nas demais companhias aéreas autorizadas a operar no território brasileiro.
Comandante e copiloto não descansavam o suficiente
O relatório destacou que os tripulantes eram submetidos a um padrão de trabalho com término tardio da jornada, muitas vezes já na madrugada, seguido por um reinício muito cedo no dia seguinte, sem tempo suficiente para descanso. O comandante Danilo Romano passou por essa situação em 24 dos 48 dias de trabalho analisados, ou seja, em 50% do tempo, enquanto o copiloto Humberto Alencar enfrentou o problema em 15 dos seus 49 dias, o que representa 30%.
O Ministério do Trabalho também apurou que houve ocasiões em que o tempo entre o horário de check in em um hotel e a interrupção do repouso de Danilo Romano foi menor que oito horas, considerado o mínimo pela comunidade científica para um descanso reparador.
A auditoria fiscal constatou que, em voos com partida de Guarulhos, os tripulantes da VoePass tinham que interromper seu repouso muito antes devido ao tempo necessário para preparação e deslocamento.
No dia do acidente, por exemplo, o comandante Danilo Romano interrompeu seu repouso às 4h20, 40 minutos antes do horário de sobreaviso considerado pela empresa, para um voo que partiria às 8h20. Essa interrupção prematura do repouso, antes do horário previsto, demonstra a dissonância entre os registros da empresa e a realidade vivida pelos trabalhadores.
No geral, os limites máximos de jornada praticados pela empresa estavam acima do permitido em lei sem acordo coletivo de trabalho, concedendo folgas sem o devido acordo com o Sindicato Nacional dos Aeronautas. A instituição, responsável pela categoria, vem denunciando a ocorrência generalizada de fadiga entre tripulações das companhias aéreas nacionais.
Padrão de trabalho gera problemas de saúde
A empresa recebeu dez autos de infração diante de falhas e irregularidades comprovadas por descumprimento de limites de jornada de trabalho, tempo mínimo de repouso e concessão indevida de folgas, entre outras irregularidades. Eles devem geram multas no valor de R$ 730 mil.
A empresa também foi notificada por deixar de recolher R$ 1 milhão em FGTS dos seus empregados. Ela ainda pode recorrer dessas autuações. Relatórios como esse subsidiam ações em órgãos como o INSS, buscando restituir aos cofres públicos o montante gasto como consequência do acidente.
O relatório do MTE concluiu que o modo de organização do trabalho da VoePass, com a adoção de jornadas “ultraflexíveis”, impactou negativamente o tempo de repouso e sono dos tripulantes. Esse padrão de trabalho, que inclui múltiplas etapas de voos curtos, é associado por estudos acadêmicos a um maior risco de fadiga e problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, segundo os auditores fiscais do trabalho.
Os auditores fiscais destacam ainda que a Reforma Trabalhista e a nova legislação para o setor aéreo tornaram as jornadas de trabalho mais flexíveis, o que impactou no descanso dos trabalhadores.
“Maior flexibilidade implica maiores riscos, sobretudo aqueles relacionados com jornadas de trabalho ultraflexíveis, como as praticadas pela aviação civil, e, portanto, maior responsabilidade e rigor das empresas, não o contrário, como vimos no caso”, diz Bignami.
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