Ministro do Trabalho adia entrada da JBS na Lista Suja da escravidão

Luiz Marinho puxou para si próprio decisão sobre entrada de companhia em cadastro oficial do governo com empregadores responsabilizados por trabalho escravo; decisão é alvo de críticas
Por Leonardo Sakamoto*
 18/09/2025

O MINISTRO DO TRABALHO E EMPREGO Luiz Marinho avocou para si próprio a competência de decidir sobre uma autuação à JBS Aves por condições análogas às de escravo em granjas fornecedoras da empresa fiscalizadas em abril deste ano, no Rio Grande do Sul.

A decisão de Marinho barra a entrada da companhia no cadastro de empregadores responsabilizados por exploração de mão de obra escrava, a chamada Lista Suja, até que ele dê um parecer final. O MPT (Ministério Público do Trabalho) vê interferência política no resultado da fiscalização.

“Estamos diante de um precedente extremamente perigoso: empresas com grande porte econômico podem ter seus casos de trabalho escravo retirados da esfera técnica e transferidos para negociação política. Isso institucionaliza a impunidade seletiva e corrói toda a credibilidade do sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil”, afirma o procurador do trabalho Luciano Aragão, que está à frente da Conaete, a coordenadoria nacional para o combate ao trabalho escravo do MPT.

A legislação prevê que, após apurada a responsabilidade por trabalho escravo pela área técnica da Inspeção do Trabalho, seja garantido amplo contraditório e direito de defesa em duas instâncias administrativas, antes de a autuação ser confirmada e o empregador ter seus dados inseridos no cadastro. A JBS Aves não teve êxito nas duas instâncias e recorreu ao ministro.

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Desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada, uma “avocação” por um ministro do Trabalho, ou seja, a decisão do titular da pasta de tomar para si mesmo a palavra final sobre uma autuação e congelar a entrada no cadastro, nunca aconteceu. O período inclui os governos 1 e 2 de Lula, 1 e 2 de Dilma Rouseff, além das gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Um artigo da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) da década de 1940 permite que o chefe do Ministério do Trabalho tenha a palavra final, mas isso bate de frente com tratados internacionais que o Brasil ratificou, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

“A avocação pelo ministro do Trabalho do processo administrativo contra a JBS por trabalho escravo representa grave violação à Convenção 81 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que garante a independência técnica da fiscalização trabalhista”, afirma Luciano Aragão.

A reportagem conversou com auditores fiscais do trabalho que atuam no combate a esse crime desde 1995 em condição de anonimato. Eles afirmaram que, ao longo dos anos, diversos empregadores realizaram pedidos para que a chefia do Ministério do Trabalho avocasse para si a decisão sobre a procedência de autos de infração de trabalho escravo e lhes desse razão. E, em todas as vezes, a posição do Ministério foi pela negativa disso.

Questionado pela reportagem se isso poderia configurar ingerência política, o Ministério do Trabalho, através de sua assessoria de comunicação, informou que “o processo ainda está em fase de conclusão e tem recursos da empresa sendo analisados” e que “aguarda a apuração dos fatos”.

Outras empresas também estariam solicitando a análise pelo ministro, segundo fontes do governo.

Tráfico de pessoas e servidão por dívidas

As Nações Unidas consideram a Lista Suja um exemplo global — o instrumento é usado para gerenciamento de risco pelo setor empresarial. A permanência no cadastro é de dois anos, a menos que a empresa faça um acordo com o governo federal, comprometendo-se a mudar práticas e pagar indenizações aos trabalhadores. Nesse caso, fica em uma lista de observação. Uma atualização está prevista para o mês que vem.

A JBS Aves, do grupo JBS, foi responsabilizada por submeter dez pessoas a condições análogas à escravidão, no Rio Grande do Sul, em abril deste ano. Segundo os auditores fiscais do Ministério do Trabalho, os resgatados atuavam na coleta de frangos em granjas fornecedoras da empresa e tinham jornadas de até 16 horas diárias.

Também foi identificada a submissão a condições degradantes e a trabalho forçado, outros caracterizadores do crime, segundo o artigo 149 do Código Penal. A fiscalização apontou que as despesas de transporte e alimentação do grupo, desde seus municípios de origem até o local de trabalho, eram ilegalmente abatidas da remuneração, o que configura servidão por dívida.

A fiscalização, que contou com a participação da Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Rodoviária Federal, ainda identificou tráfico de pessoas.

Originalmente, os trabalhadores foram contratados por uma terceirizada, a MRJ Prestadora de Serviços. No entanto, a Inspeção do Trabalho classificou a unidade da JBS Aves de Passo Fundo (RS) como a principal responsável pelas infrações que caracterizaram o emprego de mão de obra escrava, já que era ela quem estabelecia os locais, cronogramas e horários da apanha do frango em suas granjas fornecedoras.

Questionada especificamente sobre a possibilidade de avocação por parte do ministro Luiz Marinho, a JBS não se manifestou. A nota emitida pela assessoria de imprensa afirma apenas que a Seara (marca do grupo empresarial) “suspendeu imediatamente o prestador de serviços em Passo Fundo, encerrou o contrato e bloqueou esta empresa assim que tomou conhecimento das denúncias”. O posicionamento informa ainda que “a companhia tem tolerância zero com violações de práticas trabalhistas e de direitos humanos”.

“A Seara verificou in loco as condições de trabalho, constatando o regular cumprimento da legislação em vigor. Todos os fornecedores estão submetidos aos nossos Código de Conduta de Parceiros e à nossa Política Global de Direitos Humanos, que veda explicitamente qualquer prática de trabalho como as descritas na denúncia”, conclui.

Área política vs Área técnica do MTE

Uma análise da consultoria jurídica do Ministério do Trabalho e Emprego, a que a reportagem teve acesso, reconhece “a existência de indícios robustos que apontam para a possibilidade de inclusão do peticionante [a JBS] no cadastro”.

O documento diz que “a potencial caracterização dessa gravíssima violação, considerando o porte e a relevância econômica da empresa envolvida, transcende o interesse meramente individual do caso concreto”. E que isso “pode gerar significativo impacto no próprio setor econômico em nível nacional, inclusive com possíveis desdobramentos internacionais”.

Segundo a consultoria, o caso representa legítimo exercício do poder avocatório pelo ministro para “reexame de matérias de excepcional relevância”. O que permitirá “segurança jurídica à decisão” e a “devida uniformização da interpretação legal”.

De acordo com Luciano Aragão, do MPT, a justificativa com base na relevância econômica da empresa é preocupante porque cria um sistema em que o poder econômico do infrator determina o grau de interferência política no processo sancionador.

Vale ressaltar que já passaram pela Lista Suja grandes empresas como OAS, MRV, Cutrale, Heineken, entre outras. Em todos os casos, a palavra final coube à área técnica, e não à política do ministério.

Em uma nota pública, a Associação Gaúcha dos Auditores Fiscais do Trabalho apontou que “causa profunda estranheza e preocupação” a avocação da competência pelo ministro. “Tal atitude colidiria cabal e frontalmente contra os princípios mais elementares da administração pública, como legalidade e a impessoalidade e correta condução dos procedimentos administrativos”, afirma.

Em visita ao Brasil no mês passado, o relator especial da ONU para formas contemporâneas de escravidão Tomoya Obokata, recomendou ao país garantir que não houvesse interferência política em questões relacionadas à Lista Suja.

Trabalho escravo no Brasil hoje

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Denúncias podem ser feitas de forma anônima pela Plataforma Ipê ou pelo Disque 100.

*Colaborou Carlos Juliano Barros

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